Índice
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Após as sugestões deixadas para o jazz instrumental, entramos agora no domínio do jazz vocal, uma categoria que justifica tratamento separado, pois há quem aprecie jazz instrumental e não dê atenção ao jazz vocal e vice-versa. Entre as razões que permitem explicar esta diferença na recepção está o facto de o jazz vocal ter fronteiras mais difusas que as do jazz instrumental, uma vez que se confunde frequentemente com a pop. Muitos cantores fizeram carreira entre os dois mundos, frequentemente iniciando actividade num registo mais jazzy e aproximando-se da pop quando, no início dos anos 60, esta começou a suplantar claramente o jazz no gosto das gerações mais jovens; outros ainda, perante o declínio do interesse pelo jazz, encontraram refúgio no gospel ou na soul.
A distinção nem sempre é fácil e pode gerar discussões tão longas quanto inconclusivas. O imponente The Penguin Guide to Jazz, de Brian Morton & Richard Cook, que conheceu 10 edições, sucessivamente revistas e expandidas, entre 1992 e 2010, e pode ser visto como a Bíblia do jazz, optou por omitir completamente Frank Sinatra, Peggy Lee ou Nancy Wilson. É uma opção legítima, ainda que seja difícil negar as características jazzísticas de alguns álbuns de Sinatra, como sejam Songs for swingin’ lovers (1955-56) ou os dois que gravou com Count Basie, Sinatra-Basie (1962) e It might as well be swing (1964). Mas não é menos legítimo que seja precisamente por Sinatra que se iniciem as presentes sugestões.
Tal como nas sugestões referentes ao jazz instrumental, deixar-se-ão de fora as incontáveis e pouco interessantes compilação de best offs e considerar-se-ão apenas reedições que restituem álbuns na íntegra.
Frank Sinatra
“Sinatra está acabado. Foi triste. Do cume ao abismo, numa única lição terrível” – a certidão de óbito foi passada em 1952 pelo colunista Burt Boyar e a sua opinião seria então partilhada por muita gente do meio musical. Sinatra ganhara fama e proveito a partir de 1940 a cantar para o público adolescente, mas, tendo já entrado na sua quarta década de vida (nascera em 1915) deixara de ser apelativo para as bobby soxers (a designação provém das bobby socks, meias enroladas até ao tornozelo que faziam parte obrigatória da sua indumentária e que se tornavam mais conspícuas por nas festas escolares, que decorriam usualmente no pavilhão desportivo, os dançarinos serem obrigados a descalçar-se para não danificar o soalho de madeira), que o idolatravam com o mesmo fanatismo que hoje é dispensado a Justin Bieber ou aos One Direction.
No início dos anos 50, Sinatra actuava para salas desconsoladoramente vazias, a sua relação com a Columbia, a editora com que assinara em 1943 e a quem dera uma fortuna a ganhar, ia de mal para pior e as dificuldades financeiras – resultantes do divórcio e de impostos em atraso – avolumavam-se.
Porém, em 1953, a estreia de “From here to eternity” (“Até à eternidade”), de Fred Zinnemann, que lhe valeu um Oscar como actor secundário, deu um novo fôlego à sua carreira. Ainda antes da estreia do filme, Sinatra abandonara a Columbia e assinara um contrato de sete anos com a Capitol – foi neste período que produziu os discos pelos quais mais merece ser lembrado.
O primeiro álbum foi Songs for young lovers, gravado em Novembro de 1953 (e antecedido por algumas sessões que produziram singles não menos memoráveis), o último, Point of no return, foi registado em Setembro de 1961, numa altura em que começara já a editar, em paralelo, na Reprise, editora que fundara em 1960 com o fito de ter completo controlo sobre a sua música.
[“A foggy day”, um clássico de George & Ira Gershwin, em Songs for young lovers, por Frank Sinatra]
https://www.youtube.com/watch?v=IhV2kN08Zp8
Boa parte do triunfo dos anos Capitol de Sinatra tem de ser partilhado com Nelson Riddle, arranjador que trabalhara antes com Nat King Cole e que deixou impressão indelével em Swing easy! (1954), In the wee small hours (1955), Songs for swingin’ lovers (1955-56), Close to you (1956), A swingin’ affair (1955-56), Only the lonely (1958) e Nice ‘n’ easy (1960), contando os restantes álbuns Capitol com arranjos dos também conceituados Billy May e Gordon Jenkins.
São estes 16 álbuns magistrais (mais 63 faixas extra) que podem ser escutados em The Capitol years (Big12), em 12 CDs por pouco mais de 15 euros.
Em alternativa, existem duas caixas que oferecem boa parte dos álbuns Capitol mais alguns dos primeiros anos na Reprise: a caixa de nove CDs Masterworks 1954-1961 (Masterworks, cerca de 20 euros) com 15 álbuns completos, 43 faixas bónus, som remasterizado e livrete de 20 páginas:
e a caixa de dez CDs The best 1954-1962 (Documents, cerca de 15 euros) com 16 álbuns completos:
Avid
A série Classic Albums da Avid arruma três ou quatro álbuns originais em dois CDs e, o que é pouco frequente nas reediçõs económicas, fornece fichas das sessões de gravação (datas e músicos) e reproduz as notas de capa originais, embora em formato microscópico, nem sempre na íntegra e com algumas gralhas.
Um dos lançamentos mais meritórios é o dedicado a Ernestine Anderson, falecida em Março passado, após uma carreira que se estendeu por umas inacreditáveis seis décadas. As suas primeiras gravações são de 1947, as derradeiras de 2010, mas nunca soou tão bem como na viragem das décadas de 1950-60, em que surge ao nível de Ella Fitzgerald ou Sarah Vaughan. É esse período, correspondente ao contrato com a Mercury, que este duplo CD recupera: It’s time for Ernestine (um álbum Metronome de 1956 reeditado pela Mercury como Hot cargo), The toast of the nation’s critics (1958) e duas jóias de 1960 há muito esgotadas, My kinda swing e Moanin’ moanin’ moanin’.
[“It don’t mean a thing (if it ain’t got that swing)”, um clássico de Duke Ellington & Irving Mills, por Ernestine Anderson, em My kinda swing]
https://www.youtube.com/watch?v=WWKtGS9ZL1c
Da longa e recheada carreira de Betty Carter, a Avid dá-nos a ouvir os quatro primeiros álbuns: Meet Betty Carter & Ray Bryant (1955, Epic/Columbia), Out there with Betty Carter (1958, Peacock), The modern sound of Betty Carter (1960, ABC) e o desinteressante Ray Charles & Betty Carter (1961, ABC).
De Chris Connor escolheram-se também os primeiros passos: Chris (1953), Sings lullabies of Birdland (1954), This is Chris (1955), na Bethlehem, e Chris Connor (1955), o primeiro de vários álbuns para a Atlantic.
[“Lullaby of Birdland”, de George Shearing & George David Weiss, por Chris Connor, em Sings lullabies of Birdland]
O disco dedicado à voz ingénua e juvenil de Blossom Dearie inclui três álbuns Verve (Blossom Dearie, Give him the ooh-la-la, Once upon a summertime), Plays for dancing (1955, Felsted) e excertos de um disco com um grupo vocal que Dearie formou, durante a sua estadia em Paris entre 1952 e 1954, os The Blue Stars of France (que teriam descendência nos Les Doubles Six e nos The Swingle Singers). O interesse deste último fica-se pela bizarria, para ouvidos portugueses, de incluir “Les lavandières du Portugal”, canção que se tornaria um êxito em 1955 na voz de Jacqueline François e que põe “as lavadeiras de Setúbal” a beber manzanilla (o sucesso da canção inspiraria em 1957 um inenarrável filme francês).
[“Once upon a summertime”, canção de Johnny Mercer, Michel Legrand, Eddie Barclay & Eddy Marnay, do álbum homónimo de Blossom Dearie]
Ella Fitzgerald foi alvo de três títulos da Avid: entre eles não se conta nenhum dos célebres Songbooks, mas não falta matéria de interesse em Like someone in love (1957), em Hello love (1957-59), nas duas colaborações com o infalível Nelson Riddle – Ella swings brightly with Nelson e Ella swings gently with Nelson, ambos de 1961 –, num álbum em que troca as orquestrações luxuriantes pela singela companhia do piano de Paul Smith – Let no man write my epitaph (1960), reeditado posteriormente como The intimate Ella – e ainda em dois registos ao vivo – Ella in Berlin: Mack the knife (1960) e Ella in Hollywood (1961) – em que Ella, sem as roupagens orquestrais, revela a sua faceta mais jazzy e fogosa.
O volume The complete studio recorded duets, relativo às colaborações com Louis Armstrong, é de escasso interesse, pois apenas restitui na íntegra Ella & Louis (1956), estando Ella & Louis again (1957) e Porgy & Bess (1957) restituídos apenas parcialmente.
[“I won’t dance”, de Jerome Kern & Dorothy Fields, por Ella Fitzgerald, em Ella swings brightly with Nelson]
Billie Holiday está representada com quatro álbuns Verve: Music for torching (1955) e Velvet mood (1955) são discos de estúdio em que é acompanhada por um estupendo sexteto com Harry Edison, Benny Carter, Jimmy Rowles e Barney Kessell; At Jazz at the Philharmonic (1945-46) e At Newport (1957) são discos ao vivo. Há quem entenda que os álbuns Verve de meados da década de 1950 dão a ouvir uma Billie Holiday em decadência – mas o desgaste vocal é mais que compensado pelo pathos intenso que Holiday confere a todas as canções.
[“Come rain or come shine”, por Billie Holiday, em Music for torching]
https://www.youtube.com/watch?v=RQRLubS8EwM
Lena Horne (não confundir com a também estimável Shirley Horn) é outra cantora cuja carreira descreve um vasto arco, cujo início se situa em 1933, quando, aos 16 anos, se juntou ao coro residente do Cotton Club, e cujo derradeiro registo, orgulhosamente intitulado Being myself (Blue Note), data de 1998. Pelo meio teve intensa actividade como actriz de cinema, carreira que teve um fim quando o clima de paranóia anti-comunista instaurado em Hollywood levou à sua inclusão na “lista negra”. As dificuldades enfrentadas no cinema acabaram por levá-la a redireccionar os seus múltiplos talentos para o jazz e, mais tarde, para a Broadway.
A Avid juntou quatro álbuns RCA do seu melhor período: Stormy weather (1956-57), At the Waldorf Astoria (1957, ao vivo), Give the lady what she wants (1958) e A friend of yours: Songs by Burke & Van Heusen (1959).
[“Stormy weather”, de Harold Arlen & Ted Koehler, do álbum homónimo de Lena Horne, gravado em 1956-57 – uma das muitas versões que gravou de uma canção a que ficou indelevelmente associada]
[Outra interpretação da mesma canção por Lena Horne, 13 anos antes, no filme Stormy weather (1943)]
https://www.youtube.com/watch?v=zJvYo5pZEfE
Da longa discografia de Carmen McRae foram seleccionados quatro álbuns Decca, de início de carreira: Torchy! (1956), After glow (1957), Mad about the man (1957-58) e Birds of a feather (1958). Este último tem a particularidade de coligir canções com alusões ornitológicas e de contar com o saxofone tenor caloroso e sensual de Ben Webster.
[O canto da cotovia: “Skylark”, de Johnny Mercer & Hoagy Carmichael, do álbum Birds of a feather, de Carmen McRae]
https://www.youtube.com/watch?v=41uQvy1mO94
Anita O’Day fez questão de não se encaixar no estereótipo da diva irradiando glamour e afectação e sempre se considerou como mais um membro da banda. O seu espírito rebelde e inconformado manifestou-se cedo: saiu de casa aos 14 anos para fazer vida como concorrente nas maratonas de dança em voga nos EUA durante a Grande Depressão (uma febre que seria retratada, décadas depois, no filme Os cavalos também se abatem). Depois de cantar em nightclubs, o seu talento acabou por dar nas vistas, levando-a a ser convidada a juntar-se à orquestra de Gene Krupa em 1941, de onde transitou, três anos depois, para a orquestra de Stan Kenton. A posse e consumo de estupefacientes levaram-na a passar breves temporadas na prisão no final dos anos 40, início dos anos 50, mas não impediram que iniciasse uma marcante e prolífica discografia em nome próprio para a Verve. Foi a esta que a Avid foi buscar oito álbuns: The lady is a tramp (1952, também conhecido como Anita O’Day sings jazz), An evening with Anita O’Day (1954-55, também conhecido como Songs by Anita O’Day), Anita (1955, também editado sob o título This is Anita), Pick yourself up with Anita O’Day (1957), Anita sings the most (1957, também editado com o título Sings for Oscar, por o registo contar com Oscar Peterson), Cool heat (1959), Waiter, make mine blues (1960) e Incomparable! (1960).
A escolha de “The lady is a tramp” para título do seu segundo álbum não podia ser mais certeira, pois O’Day identificava-se certamente com a letra da canção de Rodgers & Hart: “Os círculos sociais giram depressa demais para mim/ A minha Hobohemia é onde me sinto bem […] Gosto de sentir a brisa fresca e livre no cabelo,/ A vida sem cuidados, e se não tiver um cêntimo, tudo bem”.
[“The lady is a tramp”, de Richard Rodgers & Lorenz Hart, do álbum homónimo de Anita O’Day]
https://www.youtube.com/watch?v=DTdBKPus6_0
A fama de Annie Ross está ligada sobretudo ao trio vocal Lambert, Hendricks & Ross e à meia dúzia de álbuns que este gravou entre 1957 e 1962, mas a sua carreira a solo não é menos merecedora de atenção, como atesta o volume que a Avid lhe consagrou e que reúne Annie by candlelight (1956, Nixa), Annie Ross sings a song with Mulligan! (1957-58, World Pacific), Gypsy (1959, World Pacific), A gasser! (1959, Capitol), excertos de Singin’ ‘n’ swingin’ (1952, Savoy), um álbum colectivo partilhado com Dorothy Dunn e Shelby Davis, e o EP Nocturne for vocalist (1956, Nixa). Esta selecção tem o atractivo de dar a ouvir Ross na companhia de dois colossos do saxofone: o barítono de Gerry Mulligan em Annie Ross sings a song with Mulligan!, o tenor de Zoot Sims em A gasser!.
[“All of you”, de Cole Porter, por Annie Ross & Gerry Mulligan, no álbum Annie Ross sings a song with Mulligan!]
https://www.youtube.com/watch?v=hyyyEbeYVdo
Os apreciadores de jazz poderão estar em desacordo quanto aos méritos relativos das diferentes cantoras e até discutir sobre a pertença ou não de algumas delas ao universo do jazz, mas no que todos estão de acordo é que a Santíssima Trindade é formada por Ella, Billie e Sarah, pelo que nenhuma discoteca de jazz vocal poderá estar completa sem a voz assombrosamente pujante e calorosa de Sarah Vaughan. O duplo CD Avid Essential collection de Sarah Vaughan junta os pouco conhecidos Make yourself comfortable (1956, Mercury) e Wonderful Sarah (1957, Mercury) aos dois volumes de Sarah sings Broadway: Great songs from hit shows (1958, Verve)
[“But not for me”, canção de George & Ira Gershwin, inserida no musical Girl crazy (1930), na versão de Sarah Vaughan em Sarah sings Broadway: Great songs from hit shows]
As já mencionadas colaborações entre Frank Sinatra e Nelson Riddle entre 1953 e 1956 são o assunto de dois volumes Avid: The essential collection: The Nelson Riddle years reúne Songs for young lovers (1953), Swing easy! (1954) e Songs for swingin’ lovers (1955-6) e a nada dispicienda produção de singles de 1953-55 (14 faixas). O outro volume oferece In the wee small hours (1955), Close to you (1956), A swingin’ affair (1955-6) e mais cinco faixas provenientes de singles. Tudo aqui é superlativo – a voz de Sinatra está no auge das suas capacidades, deslizando sem esforço sobre a rica tapeçaria orquestral urdida por Riddle –, mas os restantes álbuns Capitol não lhes ficam atrás, pelo que a melhor opção serão as caixas completas mencionadas no início deste texto, ou, para quem queira gastar um pouco mais (e ter livretes com mais informação e fotos), as edições dos álbuns originais individuais na Capitol ou as reedições na Black Coffe.
[“I’ve got you under my skin”, de Cole Porter, por Frank Sinatra, no álbum Songs for swingin’ lovers]
A esmagadora dominância feminina no panteão vocal do jazz é fácil de perceber quando se ouvem os “rivais” de Sinatra. Onde este exibe uma naturalidade desarmante, uma expressividade judiciosamente medida e uma elegância aristocrática, os outros confundem elegância com afectação e expressividade com dengosidade ou histrionismo e são tão rígidos e postiços como um manequim. A maioria irradia brilhantina e unto e soa como um galã de radionovela a tentar seduzir uma secretáriazita ingénua com a “canção do bandido” – e, desgraçadamente, esta postura parece ter-se cristalizado como modelo do jazz singer masculino e continua a prevalecer nos nossos dias, como atestam Kurt Elling ou José James.
A diferença abissal entre as grandes cantoras destes “anos de ouro” do jazz vocal e os seus parceiros masculinos fica cruelmente exposta nos registos em dueto – como é o caso de Sarah Vaughan & Billy Eckstine em Sing the best of Irving Berlin (1957, Mercury).
[“Isn’t this a lovely day”, de Irving Berlin, por Sarah Vaughan & Billy Eckstine, em Sing the best of Irving Berlin]
https://www.youtube.com/watch?v=dcssecUgdNo
Ainda assim, Billy Eckstine, senhor de uma espessa e melosa voz de baixo-barítono, é dos nomes masculinos menos desinteressantes desta época, pelo que valerá a pena investigar o volume que a Avid lhe dedica e reúne, além do já mencionado duo com Sarah Vaughan, No cover no minimum (1960, Roulette), One more with feeling (1960, Roulette), a colaboração com Count Basie Basie/Eckstine Incorporated (1957, Roulette) e a colaboração com Quincy Jones At Basin Street East (1961, Mercury). Por esta altura, Eckstine tinha já um respeitável curriculum atrás de si, uma vez que formara em 1944 a sua própria big band, um fertilíssimo viveiro que acolheu, em início de carreiro, alguns nomes que viriam a moldar o futuro do jazz, como Art Blakey, Miles Davis, Dizzy Gillespie, Dexter Gordon, Fats Navarro ou Charlie Parker, e que também foi um passo decisivo na carreira da então muito jovem Sarah Vaughan.
Jimmy Rushing pertence a uma estirpe bem diversa dos crooners dengosos e eminentemente urbanos – era um blues shouter, de vozeirão imponente, profundamente enraizado na tradição dos blues e da América rural. A fama de Rushing foi cimentada nos 13 anos – 1935-1950 – que passou na banda de Count Basie, mas os álbuns Columbia reunidos pela Avid dizem respeito a uma fase um pouco mais tardia. São eles Jimmy Rushing & The Smith Girls (1961), uma homenagem às históricas cantoras de blues Bessie Smith, Clara Smith, Mamie Smith e Trixie Smith, The jazz odyssey of Jimmy Rushing (1957), Little Rushing & The big brass (1958) e Brubeck & Rushing (1960), uma colaboração com o quarteto de Dave Brubeck, de todo inesperada – de um lado, uma voz visceral e terrosa, do outro, um ensemble cerebral e polido.
[“Blues in the dark”, de Count Basie & Jimmy Rushing, por Jimmy Rushing & Dave Brubeck, em Brubeck & Rushing]
Nem só de grandes nomes se faz o catálogo Avid e aí reside um dos seus grandes méritos. Cantoras como Lurlean Hunter e Teddi King tiveram uma carreira praticamente circunscrita à década de 1950 e estão hoje caídas no quase completo esquecimento. Lee Wiley desenvolveu intensa actividade nas décadas de 1930 e 1940, teve um “regresso” na década de 1950 e hoje apenas é motivo de interesse para “arqueólogos”. Morgana King gravou uma trintena de álbuns, três deles na Reprise de Frank Sinatra, os mais tardios já na década de 1990 (e teve também longa carreira como actriz – foi a esposa de Don Vito Corleone em “O padrinho”, de Coppola), mas é um nome pouco lembrado nos círculos jazzísticos, talvez por se considerar que “cai” para o lado da pop.
[“Body and soul”, de Johnny Green, Edward Heyman, Robert Sour & Frank Eyto, por Morgana King, em Sings the blues]
https://www.youtube.com/watch?v=Azkm-qQYu3o
Deste lote, o volume Avid dedicado a Lurlean Hunter é dos mais sedutores. A carreira da cantora foi breve, pelo que o duplo CD contém o essencial dos seus registos. Hunter nem sequer tem direito a uma entrada na Wikipedia de língua inglesa (surge apenas na de língua alemã), mas basta escutar uma faixa como “Kiss me again” para perceber quão injusta é tal omissão.
[“Kiss me again”, de H. Blossom & V. Herbert, por Lurlean Hunter, em Stepping out, de 1957]
Not Now
A Not Now, mais uma editora britânica especializada em reedições de obras no domínio público, propõe “pacotes” que reúnem seis álbuns originais em três CDs e são, infelizmente, quase desprovidos de informação. Entre os mais recomendáveis estão The complete Verve albums: 1957-1961, de Blossom Dearie, A collection of her finest Decca recordings: 1955-1958, de Carmen McRae, The Verve years: 1957-1962, de Anita O’Day, e The Mercury recordings: 1954-1960, de Sarah Vaughan, a que se soma The essential, de Dinah Washington (dois CDs com quatro álbuns registados para a EmArcy entre 1956 e 1959).
[“Ain’t misbehavin’”, de Fats Waller, Harry Brooks & Andy Razaf, por Dinah Washington no álbum What a diff’rence a day makes! (1959)]
Esta série inclui um Ella Fitzgerald: The Verve recordings: 1956-1959 que pode parecer tentador mas é de escasso interesse, pois embora cubra o período em que Ella gravou os songbooks de Cole Porter, Richard Rodgers & Lorenz Hart, Duke Ellington, Irving Berlin e George & Ira Gershwin, trata-se de uma mera compilação de greatest hits. E os Songbooks por Ella – entre 1961 e 1964 gravaria ainda os de Harold Arlen, Jerome Kern e Johnny Mercer – são, como os álbuns Capitol de Sinatra, todos indispensáveis e para possuir na íntegra, não em excertos. A melhor solução continua a ser adquiri-los individualmente nas edições originais da Verve, que, hoje em dia, desceram para preços razoáveis.
[Uma quíntupla masterclass em elegância, swing, expressividade, dicção e colocação de voz: “Night and day”, de Cole Porter, por Ella Fitzgerald, em The Cole Porter songbook (1956)]
Há ainda a considerar The essential Brunswick recordings, de Billie Holiday, que não restitui álbuns, uma vez que diz respeito ao período 1935-1939, em que ainda não existiam LPs de 33 rpm, apenas singles de 78 rpm. Contém 66 faixas correspondentes às gravações de Holiday para a Brunswick, uma subsidiária da Columbia, e o som é, como seria de esperar de gravações tão antigas, baço.
Quem queira conhecer melhor estes primeiros anos de Holiday, que assistiram à metamorfose da rapariguinha talentosa mas insegura numa cantora de tremenda intensidade e aura trágica, tem como alternativa a edição oficial, mais dispendiosa mas profusamente documentada e ilustrada (e com qualidade de som ligeiramente superior, graças ao aturado trabalho de restauro). Os “completistas” quererão ter as 230 faixas da caixa de 10 CDs Lady Day: The Complete Billie Holiday on Columbia 1933-1944, onde se incluem, as gravações Brunswick e também as da Vocalion e Okeh, duas outras subsidiárias da Columbia. Os restantes contentar-se-ão com a selecção de 80 faixas em 4 CDs de Lady Day: The Master Takes & Singles.
[“Love me or leave me”, de Walter Donaldson & Gus Khan, por Billie Holiday, numa gravação de 1940]
Precioso & raro
Não se inserindo no perfil de “baixo custo” das séries acima recomendadas, vale a pena mencionar as reedições de jazz vocal da colecção Precious & Rare, da editora Le Chant du Monde. Esta centra-se no início de carreira de grandes cantoras de jazz e é exemplar em termos de apresentação e trabalho “arqueológico”. Num digipack de cartão acomodam-se dois CDs com som restaurado e remasterizado e um livrete de 36 páginas, recheado de textos de enquadramento, fichas técnicas detalhadas das sessões de gravação, fotos de época e reproduções do artwork original. Em vez de se ficar pelos álbuns originais, inclui também verdadeiras raridades: singles de 78 e 45 rpm, emissões radiofónicas ou participações em álbuns colectivos. Portanto, quando o invólucro promete Sarah Vaughan: The complete 1947-1950, o conteúdo corresponde. Claro que este esmero se paga, mas 15 euros é, ainda assim, uma quantia módica pelo que é oferecido.
A Precious & Rare tem tido o mérito de recordar os primeiros passos de cantoras que viriam a fazer carreiras longas, prolíficas e plenas de sucesso, como Betty Carter, Abbey Lincoln, Carmen McRae, Nina Simone, Sarah Vaughan ou Nancy Wilson.
Destes nomes vale a pena destacar o de Nancy Wilson, talvez a menos conhecida das cantoras de primeira grandeza. A sua pouca visibilidade nos dias de hoje é ainda mais difícil de explicar por ter tido uma carreira intensa e produtiva, tendo gravado cerca de 70 álbuns em meio século – a sua primeira gravação data de 1956, a derradeira, Turned to blue, de 2006.
The complete 1956-1960 dá a ouvir, além de algumas sessões soltas, os três primeiros álbuns de Wilson, todos na Capitol: Like in love (1959), Something wonderful (1960) e The swingin’s mutual! (1960), este último com o quinteto de George Shearing e com uma atmosfera intimista, serena e requintada que faz dele um marco da história do jazz vocal.
[Segredos murmurados ao ouvido: “The nearness of you”, de Hoagy Carmichael & Ned Washington, por Nancy Wilson & George Shearing, em The swingin’s mutual!]
Mas a colecção Precious & Rare tem também contemplado cantoras bem menos conhecidas, como Betty Roché (The complete 1941-1961), que teve o seu momento de glória na orquestra de Ellington, nos anos 40 (cantando na estreia da revolucionária suíte Black, brown & beige, no Carnegie Hall), mas cuja carreira em nome próprio foi tão breve que estes duplo CD reúne todos os seus registos; Dakota Staton (The complete 1954-58), que teve o seu melhor momento na viragem das décadas de 50-60 e depois se dissiparia numa carreira intermitente, progressivamente dominada pelo gospel; a já mencionada Ernestine Anderson, cujo The complete 1947-1958 contém, além de numerosos singles, os álbuns It’s time for Ernestine (também conhecido como Hot cargo) e The toast of the nation’s critics (também disponibilizados pela Avid);
[“Mad about the boy”, de Noel Coward, do álbum It’s time for Ernestine (Hot cargo), de 1956, por Ernestine Anderson]
e Ethel Ennis, que, como Anderson, foi uma cantora de grande quilate que não obteve o reconhecimento que mereceria e cuja visibilidade declinou rapidamente a partir de meados da década de 1960, acabando por praticamente abandonar a música. The complete 1955-58 contém os álbuns Sings lullabies for losers, Change of scenery e Have you forgotten?.
[“For all we know”, de J. Fred Coots & Sam M. Lewis, do álbum Have you forgotten?, de 1958, por Ethel Ennis]
Ao ouvir estas vozes calorosas, sensuais e dúcteis, com um infalível sentido de swing e controladas por uma inteligência que as coloca sempre ao serviço das canções e sabe escolher a expressão certa para cada uma delas, é tentador concluir que o jazz vocal que hoje domina as atenções e os tops de vendas é um território povoado de decalques anémicos e afectados, meras sombras de uma grande tradição perdida.