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“Noite de Reis” foi também a peça que trouxe o encenador Ricardo Neves-Neves para o campo dos clássicos: uma criação pensada desde 2019, coprodução entre o Teatro da Trindade e o Teatro Eléctrico, arquitetada com respeito face ao original, mas também com traços (textuais e cénicos) que a atualizam e a transpõem para os nossos dias
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“Noite de Reis” foi também a peça que trouxe o encenador Ricardo Neves-Neves para o campo dos clássicos: uma criação pensada desde 2019, coprodução entre o Teatro da Trindade e o Teatro Eléctrico, arquitetada com respeito face ao original, mas também com traços (textuais e cénicos) que a atualizam e a transpõem para os nossos dias

Estelle Valente

“Noite de Reis” foi também a peça que trouxe o encenador Ricardo Neves-Neves para o campo dos clássicos: uma criação pensada desde 2019, coprodução entre o Teatro da Trindade e o Teatro Eléctrico, arquitetada com respeito face ao original, mas também com traços (textuais e cénicos) que a atualizam e a transpõem para os nossos dias

Estelle Valente

Uma "Noite de Reis" para mostrar o que Shakespeare já sabia bem: rir é sempre melhor do que chorar

Ricardo Neves-Neves encena Shakespeare pela primeira vez e leva "Noite de Reis" ao Teatro da Trindade em Lisboa. Segue-se Coimbra e Loulé. O encenador explica-nos onde está a piada na vida real.

Tudo serve de disfarce nesta farsa humana, cuja mensagem parece, porventura, mais importante hoje do que no tempo em que foi escrita por William Shakespeare. Considerada por muitos como a melhor comédia do dramaturgo britânico – concluída, supõe-se, por volta de 1601 (pouco depois de “Hamlet”) –, “Noite de Reis” foi também a peça que trouxe o encenador Ricardo Neves-Neves para o campo dos clássicos: uma criação pensada desde 2019, coprodução entre o Teatro da Trindade e o Teatro Eléctrico, arquitetada com respeito face ao original, mas também com traços (textuais e cénicos) que a atualizam e a transpõem para os nossos dias. Entre o riso fácil, que marca compasso ao longo da trama, exploram-se premissas como identidade de género, diferenças entre classes e os eternos dilemas das relações amorosas, numa teia complexa de personagens que nos fazem, afinal de contas, olhar para nós enquanto espetadores da própria vida que se desenrola. Estreia-se esta quinta-feira, dia 26 de janeiro, no Teatro da Trindade, em Lisboa (em cena até 19 de março; segue-se o Convento de São Francisco, em Coimbra, a 14 de fevereiro, e o Cineteatro Louletano, em Loulé, a 9 e 10 de setembro).

Voltemos à sua história. Não estamos exatamente a pairar no ar, embora o que se veja em palco, num plano inicial, sejam duas grandes nuvens e se escute o som de um mar revolto em plena tempestade. Em Shakespeare, já isso é uma característica que contextualiza: é o elemento natural isolado, muitas vezes usado pelo autor, que lança a trama, separa ou retira personagens de cena que, de repente, reaparecem por entre a tormenta e mudam o curso da história. No meio de um naufrágio, uma jovem mulher, Violeta, chega ao reino imaginário de Ilíria levada pelo mar. Acredita que o irmão gémeo, Sebastião, morreu afogado no dilúvio. Salva à justa, disfarça-se de rapaz, de seu nome Cesário, e arranja trabalho na casa de um nobre, o duque Orsino, como mensageira de uma paixão não correspondida deste com Olívia.

O que se segue? Pois bem, aquilo que descreveríamos como hábito de uma comédia vanguardista e revolucionária, dentro da chamada commedia dell’arte. Entre as mensagens que leva até a casa de Olívia, e a paixão que sente pelo duque, Cesário (Violeta) ganha a afeição amorosa desta. O triângulo amoroso é resolvido, pois claro, com o reaparecimento de Sebastião, que trará por fim luz aos amores conjurados – e mais não convém dizer.

Ainda que esta seja a primeira vez que, como encenador, Ricardo Neves-Neves pega num texto de Shakespeare, estão lá todos os elementos que lhe permitiram transformar a obra numa criação autoral

Estelle Valente

Entre outras personagens que fazem parte da peça, ressalta a importante relação da temática do amor com a música. “Se a música é o alimento do amor, continuai a tocar. Deem-ma em abundância para acalmar este apetite”, diz logo de início Orsino, estendido numa banheira cheia de espuma. Os prazeres terrestres abundam nesta “Noite de Reis”, onde se equilibra a força da razão perante a vida com a força do caos e da embriaguez (literalmente). Mas é a música que singulariza a encenação. Funciona como lugar-comum que todos compreendemos: “Quando sofremos de amor, há sempre aquela dor que é amparada pela música. Enterramo-nos mais no sofrimento com a ajuda de uma canção ou vivemos uma grande paixão a que temos uma música associada. A música e o amor estão ligados de uma maneira muito próxima e isso está presente nesta peça”, explica Ricardo Neves-Neves ao Observador.

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Um teatro popular contemporâneo

Por cima do palco, num plano superior, um pequeno ensemble de instrumentistas, todas mulheres, dão forma às referências musicais que abundam. Com direção musical da pianista Mrika Sefa, natural do Kosovo, a banda sonora cruza repertório do tempo de Shakespeare com canções recentes, como o clássico “Mr. Sandman”, passando pela pop britânica das Spice Girls. Espelha-se um encontro com a cultura inglesa, ora não fosse Shakespeare um símbolo de terras de sua majestade, mas onde também ressoa o universo italiano de Nino Rota e Federico Fellini. Já em palco, e ao contrário do ensemble, o elenco de 13 elementos é todo ele composto por atores do sexo masculino.

No tempo de Shakespeare, o acesso ao palco era vedado às mulheres por ser visto como lugar de pecado; por outro lado, diz o encenador, era uma forma de explorar o lado homoerótico e de atração pela androgenia que está plasmado na escrita do texto. “Quando pensei nesta criação, tinha acabado de sair de uma peça, ‘Banda Sonora’, cujo elenco era todo composto por mulheres, mas a verdade é que foi a pesquisa sobre o tempo de Shakespeare que nos levou a ir ao encontro desta forma”, sintetiza o encenador. Ainda que esta seja a primeira vez que, como encenador, pega num texto do dramaturgo nascido em 1564, estão lá todos os elementos que lhe permitiram transformar a obra numa criação autoral, onde se desmontam convenções e inclinações estéticas próprias de um teatro popular de época.

“Nunca concordei com a visão daqueles que atribuem à comédia um valor menor e que até a chegam a classificar como subgénero na arte. A comédia é resultado de sensibilidade e inteligência, das nossas emoções e do nosso lado racional."

Ao longo da peça surgem, por isso, ecos de contemporaneidade. Abandona-se o tempo em que se situa, para se imbicar numa criação que é intemporal e que faz parte de um léxico universal, sujeita a várias interpretações. Nesse processo de construção, explica o encenador, o texto deixa de ser um objeto intocável. “A primeira vez que vi o Pártenon, em Atenas, vi um turista apagar um cigarro nas próprias rochas e eu penso dessa forma: não se toca, mas eu toquei com as minhas mãos… Quando são obras que já foram feitas tantas vezes e sobretudo Shakespeare, que até pode nem ter existido ou cujos textos podem ter sido modificados, entramos num espaço em que é possível tratar a obra por tu, sem a desrespeitar. Acredito que o espírito e a sua natureza se mantêm, narrativa e linguagem, sendo há outros elementos que fomos acrescentando pela forma como fomos construindo este espetáculo”, salienta.

Aos figurinos de época (de Rafaela Mapril) e a um cenário que conjuga músicos, atores e uma estética senhorial (cenografia de Ana Paula Rocha), juntam-se uma linguagem e uma dinâmica contemporâneas, desde as expressões usadas pelas personagens, à maquilhagem e aos adereços, entre os quais se inclui uma moto ou uma bomba de asma. Se fazem parte do tempo de Shakespeare? Não; mas também não significa que não possam fazer parte de um imaginário estético que diz respeito à criação artística contemporânea, onde tantas épocas e eras surgem estilizadas.

Sem fragilidade não haveria comédia

“O que digo aos atores é: imaginem que o espetáculo é feito por um extraterrestre que esteve a observar humanos e quando regressa vai contar como é que eles vivem. Só que ele esteve cá mil anos e viu que andávamos a cavalo, de mota… e mistura aquilo tudo. Não especifica de que época são as motas ou a bomba de asma. Quando isto se reproduz, gera-se má informação, quase propositada, mas que me dá gozo. Depois, há que levantar a questão: porque é que vamos fazer a Noite de Reis pela milésima vez? E a resposta é: primeiro, porque o teatro é efémero e, depois, porque mesmo que tenha a natureza do tempo em que foi escrita, também pode e deve integrar a natureza da nossa experiência.”

Mais de 400 anos depois, Shakespeare volta a pairar sobre as nossas cabeças e rir continua a ser – recorrendo ao velho provérbio – melhor do que chorar

Estelle Valente

O seu trabalho como encenador, neste caso, assemelha-se ao de um tradutor que adota diferentes expressões ou que adapta essa tradução a um tipo de natureza dramatúrgica, mais ou menos lírica, mais ou menos ligada à linguagem da época. Por outro lado, Neves-Neves lida de forma segura com a complexa arquitetura para evocar a importância do teatro popular contemporâneo. “Usamos vários códigos do que é o teatro popular, mas com uma sofisticação que a sociedade contemporânea tem e pede. Quando falamos de teatro popular parece que ainda associamos a um género, que se pensarmos no universo português, se liga à Beatriz Costa e ao Teatro de Revista num imaginário dos anos 1920, 1930, mas a sociedade hoje é muito diferente do que era. Tem um cariz contemporâneo esse teatro, hoje, mesmo sendo um espetáculo que chega a toda a gente, e mesmo que tenha referências mais cultas ou de um certo lirismo na linguagem.”

Voltamos ao princípio da comédia sob disfarce. “Ah, disfarce, bem vejo como és maligno”, diz a personagem de Cesário (Violeta) a certa altura da peça. Em sentido oposto, Ricardo Neves-Neves destapa a comédia como género teatral, tantas vezes remetido para um lugar de menor importância. Tal como as personagens, também nós, espectadores, somo falíveis, o que no seu entender explica a existência e resiliência deste formato. “Nunca concordei com a visão daqueles que atribuem à comédia um valor menor e que até a chegam a classificar como subgénero na arte. A comédia é resultado de sensibilidade e inteligência, das nossas emoções e do nosso lado racional. O que nos faz rir é, ao mesmo tempo, a distorção da razão, como uma estrada paralela, e um lado misterioso que nos finta as emoções sem nos darmos conta. Aquilo que nos faz rir é semelhante a uma espécie de raio que se atravessa e foge. A verdade é que se não fôssemos seres humanos, e por isso frágeis, a comédia, porventura, não existiria”.

Mais de 400 anos depois, Shakespeare volta a pairar sobre as nossas cabeças e rir continua a ser – recorrendo ao velho provérbio – melhor do que chorar.

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