Dois morros imponentes enfrentam-se à beira do Atlântico e precipitam-se para o oceano em vertiginosas escarpas que acabam engolidas pelo mar. Os rasgões cravados nas montanhas, feitas das negras rochas de basalto, denunciam as antigas escoadas de lava que despontaram há mais de um milhão de anos e que se foram acumulando aqui ao longo do tempo. E as lâminas impressas na rocha, torcidas como os vincos de um papel amarrotado, são o produto da atividade sísmica que abala a ilha. Sem uma coisa ou outra, os Açores não existiam.
Estamos na baía de Entre Morros, concelho de Velas, onde está o epicentro da crise sísmica que abala este lado da ilha fez esta quarta-feira onze dias. Aqui em São Jorge, a ilha passa pelas quatro estações do ano num só dia — já dizem os açorianos que, em março, “manhã é focinho de cão, tarde é verão”. Ao fim da manhã, é outono. O orvalho cai delicadamente nas ervas que forram as montanhas basálticas de verde. Nas vivendas construídas na base do morro, são poucos os sinais de vida; e o campo de futebol e parque de skates, um apontamento de modernidade no centro deste cenário idílico, não tem vivalma. O silêncio que se abate na baía só é quebrado pelas ondas do mar a desmancharem-se junto às rochas, o chilrear dos pássaros e o pasto das ovelhas.
Este é o ponto de encontro com a equipa de vulcanólogos que o Observador acompanhou ao longo de uma tarde, na insistente tarefa de monitorizar a crise sísmica. E o miradouro com vista desarmada para o Atlântico é também a primeira paragem na zona sul de Rui Silva e Vittorio Zanon, ambos do Instituto de Investigação em Vulcanologia e Avaliação de Riscos/Universidade dos Açores, no concelho de Velas. O dia já vai longo para a equipa — uma das três que recolhe medições pela ilha em busca das raízes da crise sísmica e do que aí vem: o procedimento que se preparam para fazer aqui foi o mesmo que fizeram toda a manhã na costa norte de São Jorge. É o mesmo que se faz dia após dia desde 19 de março. E tem sempre a mesma missão: descobrir se uma eventual subida de magma está a fazer anunciar-se com uma subida de gases à superfície.
Usam dos instrumentos: um que parece uma chaleira sem fundo conectado a um pequeno monitor de bordas amarelas, outro com uma agulha e dois discos metálicos em seu torno, também ele ligado a um ecrã azulado. O primeiro mede o fluxo de dióxido de carbono: Rui Silva pousa a peça redonda e metálica no solo e a pequena hélice no seu interior aspira o solo para saber a quantidade de dióxido de carbono libertada por segundo neste local. Enquanto isso, Vittorio manuseia o segundo instrumento e o som metálico de um dos discos a bater no outro vai ecoando pela baía. Esta é a máquina que analisa a quantidade de dióxido de carbono presente no solo.
Como farejar uma erupção vulcânica prestes a eclodir da superfície da Terra
Aqui em São Jorge, a Terra transformou-se num laboratório vivo desde que uma crise sísmica despontou em Velas. Quando um fenómeno semelhante a este se registou em La Palma, Rui Silva e Vittorio Zanon estavam nas Canárias à espera de uma erupção vulcânica: ela nunca foi prevista, mas os indicadores gritavam nos últimos dias que a questão já não era se o Cumbre Vieja ia explodir — era quando. Rui, açoriano residente em São Miguel, ajudou os cientistas espanhóis nas medições que anunciavam o desastre iminente em La Palma. Já Vittorio conta, desiludido, que acabou internado por ter pedras nos rins na primeira semana da erupção; e que voltou a sofrer com o mesmo problema na semana anterior ao surgimento na nova crise sísmica nas Canárias. “Da próxima vez que tiver pedras nos rins, vou à procura de uma erupção”, brinca.
Em La Palma, houve um enxame de sismos no início do ano passado, outro em agosto e um terceiro nos dias antes da erupção vulcânica; e todos eles brotavam de profundidades cada vez mais próximas à superfície. Aqui em São Jorge, os terramotos estão quase todos concentrados entre os sete e os 12 quilómetros e, segundo Vittorio, “não temos até agora nenhuma evidência” de que a catástrofe de La Palma se vai repetir em território açoriano. Os únicos dados são precisamente os publicados pelos cientistas nas Canárias, que afirmaram ter identificado a intrusão de 20 milhões de metros cúbicos de magma no sistema vulcânico de Manadas — quase o dobro que havia na bolsa que alimentava o Cumbre Vieja.
Mas os dois vulcanólogos relativizam os mapas coloridos publicados pelos investigadores do instituto das Canárias, que avisam para uma deformação da superfície terrestre na zona afetada pelos terramotos e teorizam sobre a entrada de magma na fissura. Na origem do mapa estão as imagens captadas pelo satélite Sentinel-1, da Agência Espacial Europeia, nos três momentos em que sobrevoou os Açores: a 17 de março, dois dias antes do início da crise sísmica; a 21 de março, dois dias depois de ter começado; e no último domingo, dia 27.
São “medições indiretas”, mais indiretas ainda que as preparadas pelas autoridades científicas para descobrir à superfície o que está a acontecer em profundidade. Por isso, Vittorio e Rui alertam que os dados devem ser interpretados com cautela. Há deformações, mas o que significam ainda se está por perceber e, mesmo assim, podem não bastar: “Nenhuma única metodologia está suficientemente desenvolvida para chegar a uma conclusão por si só”.
As respostas mais concretas devem chegar nos próximos dias. O Centro de Informação e Vigilância Sismo-vulcânica dos Açores instalou na quinta-feira passada duas estações que medem as deformações em terra firme — são os recetores GNSS, que enviam sinais da sua localização para o satélite. Mas são precisas duas a três semanas para as medições darem frutos: “Os satélites dos GPS têm um erro associado e é preciso uma série de dias para perceber a tendência”, clarifica Rui. Por enquanto, as outras medições não evidenciam um problema (se todas elas dessem sinais de alerta, então sim um desastre podia estar a caminho); e nunca as análises geoquímicas como estas mostraram valores anormais. O que seria então um sinal incontornável de que vem aí uma erupção vulcânica em São Jorge? Vittorio ri-se da pergunta: “Pedras nos rins”.
Os campos de pastos onde a crise sísmica pode culminar num vulcão
Há três equipas a percorrer a ilha de São Jorge todos os dias, várias vezes ao dia quando necessário, para auscultar a Terra. A geodésica analisa as deformações dos terrenos, a geofísica estuda as características dos sismos; e a geoquímica é a que fareja por gases libertados pelo magma em ascensão e é aquela que Rui e Vittorio integraram por empréstimo de uma quarta equipa: a de vulcanologia e petrologia, que só entra em campo em caso de erupção vulcânica.
A partir de quinta-feira, dois novos instrumentos entrarão no arsenal de material que os cientistas da geoquímica utilizarão para estudar a crise sísmica: detetores de radão, um gás radioativo que pode ser emitido pelo magma em ascensão. Sozinho, o radão não consegue subir — é demasiado pesado. Mas pode fazê-lo à boleia das moléculas de dióxido de carbono, representando assim mais um indicador a que os cientistas podem estar atentos para estudar o vulcanismo açoriano. De resto, embora esta seja uma estreia na ilha de São Jorge, as medições de radão são a norma em locais com vulcanismo ativo, como o Etna, o Strombolli e o Cumbre Vieja.
Deixando Entre Morros para trás, e após uma breve paragem ainda dentro da vila de Velas, os dois vulcanólogos encaminham-nos de carro para a cordilheira que rasga São Jorge a meio. Vamos à boleia de Gonçalo Tocha, realizador de cinema que está a rodar um filme sobre as ilhas do triângulo dos Açores há três anos. O caminho é sempre este para os investigadores, todos os dias, e baseia-se num mapa com borrões esverdeados publicado no início do milénio, a partir de medições feitas a cada quilómetro ao longo da ilha que determinaram quais eram as quantidades habituais de dióxido de carbono no terreno. “Há áreas em que não há rigorosamente nada e outras em que a concentração de dióxido de carbono estava relativamente alta na altura. É um estudo antigo, mas é a nossa base”, explica Vittorio.
Nisso, os vulcões são “como pessoas”, compara Rui: “Há pessoas que já têm tensão mais alta e outras tensão mais baixa e isso é normal. E há vulcões que libertam mais gases e outros que libertam menos”. Na ilha de São Miguel, por exemplo, a freguesia da Ribeira Quente está completamente assente numa zona de enorme libertação de dióxido de carbono pelo solo. Lá é normal. Cá, os mesmos valores, seriam exorbitantes.
Mas há fatores que tornam tudo mais complexo — desde logo as condições climatéricas e a pressão atmosférica. Neste momento, a chuva é um parâmetro que está “a chatear bastante”, assume Vittorio, e que está a obrigar os cientistas a regressar várias vezes ao dia a locais onde as medições simplesmente não são possíveis: “A água pode criar um tampão que impede o dióxido de carbono de subir e o concentra, pode diluí-lo… Fizemos algumas medições de manhã em que, quando enfiámos a agulha, jorrou água”, contou o vulcanólogo. Depois, há o nível biogénico, isto é, a quantidade de dióxido de carbono que o material orgânico já liberta quando respira ou quando entra em decomposição — das folhas aos fungos e animais.
À medida que subimos a cordilheira de São Jorge, a primavera surge finalmente nas montanhas. Já se vê o Pico ao largo e, do outro lado, está uma das maiores preocupações dos investigadores: a encosta verdejante, ocupada pelas vacas, que pode servir de palco a uma erupção vulcânica nos próximos tempos. A zona de maior perigo é esta porque é aqui que se tem registado grande parte dos terramotos desde o início da crise sísmica, conta Rui: a região vai de Velas até à Fajã do Ouvidor, na costa Norte, e abraça toda a cordilheira.
Depois de fazer as medições que lhe competiam, enquanto Vittorio ultimava as suas tarefas em plena montanha, Rui Silva aproximou-se de um campo que descaía suficientemente pela montanha para servir de janela para o Atlântico. Aquela vista é especialmente importante para ele: Rui é de São Jorge e a família vive na Calheta, o concelho vizinho ao de maior preocupação. “Os meus amigos dizem que enquanto eu estiver aqui e não disser aos meus para saírem, também ficam”, conta ao Observador. Mas a incerteza inquieta-o: “Esta é a minha terra”, atira simplesmente, fitando a encosta.
A história de amor que desvendou os segredos da erupção de 1808
Mas os primeiros sismos da crise não despontaram aqui: o epicentro registou-se nas montanhas da Urzelina, a freguesia engolida pela lava de uma erupção vulcânica em 1808. Foi lá, já nas proximidades do Pico da Esperança (o ponto mais alto da ilha, com 1.053 metros de altitude), que Vittorio encontrou há muitos anos um dos segredos mais bem guardados da vulcanologia açoriana: as três grandes crateras cravadas nas montanhas de onde o manto terrestre cuspiu os primeiros materiais piroclásticos e a lava na erupção de há 214 anos.
A descoberta começa com um romance: Vittorio é casado há sete anos com uma portuguesa natural de São Jorge que também é vulcanóloga e cuja família também trabalhava nesta área científica. As antigas fontes de lava, com uma profundidade nunca medida, agora cobertas de uma vegetação rasteira incapaz de esconder as rochas negras de basalto, foram-lhe reveladas pelo sogro: “Vou-te mostrar ali uma coisa que te vai interessar”, repete Vittorio, procurando imitar o pai da mulher com uma voz grave entre o sotaque italiano que conserva.
Era uma fratura que partiu a superfície terrestre da ilha de São Jorge a meio — “Trrrrac” —, abrindo as portas ao magma que estava disponível imediatamente abaixo da superfície, primeiro no monte junto à estrada para o Pico da Esperança, depois uns metros mais à frente, em Velas. A paisagem passou a fazer parte do passeio dos namorados. E é o pano de fundo para o estudo que o vulcanólogo publicou anos depois, em 2018, o primeiro a esclarecer que o magma subiu primeiro na Urzelina e depois em Velas; e a descrever o exato local onde ocorreu a erupção nessa freguesia. “Descobri graças aos relatos populares, que diziam ter sentido cheiro a enxofre. Se não não chegava até lá, porque o local não foi conservado”, explica.
No estudo, o cientista descreveu como, após ter explodido à superfície naquele local, libertando até as chamadas bombas — um piroclasto de grande dimensões cuspido a alta velocidade que ainda hoje sobrevive no local —, a lava de 1808 viajou por um sistema labiríntico e subterrâneo de fissuras nas rochas e veio a ressurgir junto a Velas. Mas a erupção foi menos ameaçadora ali, mais controlada, “como as bolhas que se soltam da panela quando se faz um doce de ovos”, exemplificou o vulcanólogo, porque o magma já tinha perdido muitos gases pelo caminho.
O cenário pós-apocalítico da erupção da Urzelina, última paragem antes de nos separarmos dos vulcanólogos, pode repetir-se em São Jorge. Basta que duas condições se reúnam: uma fissura que frature a superfície na sequência de um sismo e uma subida de magma vinda do manto. Rui e Vittorio vão continuar a caminhada, montanha acima, montanha abaixo, em busca destas respostas. O carro branco em que seguem, sujo das lamas que enfrenta todos os dias desde 19 de março, consegue ainda assim destacar-se entre as areias negras deixadas para trás pelas entranhas da Terra em 1808. Os vulcanólogos seguem para o Pico da Esperança, cumprido religiosamente o mapa do dióxido de carbono sem sequer precisarem de olhar para ele. Passam das quatro da tarde e o calor aperta. Já é verão em São Jorge.