No exato momento em que escrevo este texto, 32777 pessoas fizeram buscas por eventos relacionados com Taylor Swift na última hora – assim anuncia uma vinheta num site de bilhetes para concertos e, reforço a ideia, isto só num site, imagine-se no total dos lugares na web destinados a bilhetes para concertos. É possível até que “concerto” já não seja a palavra correta para isto – ir a um concerto correspondia a deslocarmo-nos a um local para ouvir música ao vivo e para ver os respetivos intérpretes em carne e osso, mas neste caso, talvez a música seja só a banda-sonora da celebração de uma religião (a religião Taylor Swift) e de uma aparição (Taylor Swift comparecer ao concerto confirma-nos que ela existe e está entre nós). Será, certamente, mais uma hipótese de confirmação da omni-presença de Swift.
Se os meus olhos viram bem, os preços dos bilhetes disponíveis para os concertos de 24 e 25 de maio, no Estádio da Luz, em Lisboa, vão dos 373 euros aos 1295 euros, o que equivale a dizer que há pessoas dispostas a pagar um salário para ver uma moça a cantar. É possível que a moça esteja lá longe, mas com a ajuda de ecrãs gigantes e colunas espalhadas pelo local, consegue-se ouvi-la como se estivesse mesmo à nossa frente, e vê-la como se fosse um peixinho num aquário no Oceanário – nítida, mas a uma distância segura, de modo a permanecer inalcançável.
A probabilidade de os concertos serem um êxito é pelo menos tão grande quanto a de a audiência ser maioritariamente constituída por raparigas: é uma probabilidade gigantesca. E é gigantesca porque as medidas que são usadas para aferir do sucesso dos concertos de Taylor Swift são medidas Swiftianas – não se trata de avaliar se a música é boa, se o alinhamento faz sentido no concerto; todos esses motes que eram usados na crítica musical tradicional foram trocados por uma espécie de auto-profecia que sustenta o mito Swiftiano: tudo em que Taylor Swift toca é ouro e isso é demonstrado pelos números das vendas ou dos streamings, pelos bilhetes vendidos, pelos prémios colecionados.
Esta metrificação do sucesso impõe-se graças ao número de gargantas que utiliza este tipo de argumentação para erguer Swift ao estatuto de rainha: as (ou os) seus fãs são tantos e fazem tanto barulho que ter uma conversa racional sobre Swift se revela um diálogo impossível. O mito Swiftiano diz-nos que ela é a maior artista ao cimo da Terra, que sabe falar ao coração das raparigas (que faz com que as raparigas se sintam entendidas ao escutar as suas canções) e cada concerto, cada disco, cada vídeo serve apenas para – junto das fãs – reforçar essa mesma ideia. Esse mito Taylor Swift alimenta-se de si próprio e nem sequer permite que se discuta o mérito artístico das suas canções. Quem não for particularmente fã de Taylor Swift leva com o argumento “mais de 114 milhões de discos vendidos” (contando com vendas digitais) ou “mais de 100 mil milhões de streams”.
Os números são de factos impressionantes – se nos reportarmos só à Eras Tour, bom, só aí já vão mais de 100 concertos, e quem não viu ao vivo pode assistir ao concerto, desde que tenha Disney+, onde Taylor Swift: The Eras Tour, o filme-concerto da digressão, está disponível para streaming. E ainda assim, mais e mais cidades vão sendo adicionadas à digressão, enquanto Swift vai acumulando discos – recentemente foi editado The Tortured Poets Department, que foi alvo de críticas menos entusiastas que o costume, mas de certa maneira isso é falhar o ponto: Taylor Swift já não é uma artista que vive de discos que são espiolhados pelos fãs à procura do sentido da vida – Taylor Swift criou o multi-verso Taylor Swift, em que os discos são só uma parte, a parte em que as canções novas servem para alimentar mais conversa acerca da vida íntima de Taylor (ela namorou com este?, essa canção será acerca daquele tipo?), o que, por sua vez, faz crescer o discurso em torno de Taylor Swift, o que por sua vez aumenta as vendas e streams dos discos e a procura de bilhetes para os concertos e o merchandising vendido, cujos números quebrarão recordes, fazendo falar-se mais de Taylor Swift, etc.
Mas os números não explicam este fenómeno, pelo menos por completo – até porque sempre houve mulheres a vender muitos discos, de Diana Ross e Martha Reeves até Tina Turner ou Madonna. O que é que mudou? A dimensão global que Taylor Swift ou Beyoncé têm, mas também o absoluto controlo sobre a sua obra e mesmo sobre os seus direitos de autor. Se virem os créditos musicais e líricos de cada tema de Beyoncé, encontram sempre o nome dela em cada canção — o que lhe garante que cada vez que aquela canção toca, ela ganha com isso. Foi por isto – por uma questão de direitos de autor – que Taylor Swift regravou os seus discos antigos, por isso e para ter controlo sobre a sua obra.
Não era assim nos anos 60 das mencionadas Diana Ross e Martha Reeves: elas quando muito conseguiram convencer editores a deixarem-nas ser as intérpretes de determinadas canções, mas não escreviam nem compunham; no máximo, faziam força para haver mais mulheres a compor e a escrever – e não recebiam direitos de autor.
O que é que isto implica em termos da pop que era feita versus a pop que é feita atualmente? Um simples exemplo pode ser elucidativo: na década de 60, as Crystals editaram um single que se revelou de imenso sucesso, He hit me and it felt like a kiss. A canção foi composta e produzida por homens (mais especificamente, foi produzida por Phil Spector, que mais tarde viria a ser condenado pelo homicídio de uma mulher). Releiam o título da canção, que era igualmente o refrão da mesma, e pensem o que seria ser mulher e ouvir um refrão assim, cantá-lo e celebrá-lo, pensem no que isso diz sobre o que era aquela sociedade e o papel da mulher nela. Conseguem imaginar Taylor Swift a cantar que um homem lhe bateu e que isso lhe soube como um beijo?
Isto não significa que não houvesse mulheres a fazer o que queriam – Joni Mitchell fez tudo como quis, quando quis e não há um tipo da folk dos anos 60 que não afirme que ela era a melhor de todos. Ainda assim, temos que admitir que Mitchell era um caso excecional e não era propriamente pop – ou seja, o seu impacto na cultura popular não era o mesmo que aquele que hoje em dia Taylor Swift produz.
As coisas foram mudando: Madonna, Tina Turner, quando finalmente se separou do marido, conseguiram tocar em algo que durante muito tempo foi visto como feminino e tornaram-se ícones globais. No final dos anos 80 a indústria estava meio perdida, apareceram os Nirvana e, durante uns 3 anos, Cobain foi o Cristo dos rapazes zangados e deprimidos. Mas mal Cobain deu um tiro na cabeça, já as adolescentes estavam a cantar Britney Spears e, sem o saberem, Max Martin, que se tornou o maior compositor-produtor dessa era de r’n’b sofisticado. Esse foi o ponto de viragem, porque não só o hip-hop e o r’n’b tomaram de vez as tabelas de vendas como se criou um mercado para adolescentes (que depois acompanham vida fora o/a artista da sua preferência), como a indústria tornou tanto o hip-hop como o r’n’b cada vez mais pop. Não por acaso, Taylor Swift colaborou com Max Martin quando quis tornar-se mais pop – é ele o autor de Shake It Off, que é um ótimo single pop.
O rock perdeu o seu lugar de força criativa — e curiosamente foram as mulheres que pegaram nesse legado e para termos certeza disto basta ouvir Angel Olsen ou Snail Mail. As raparigas, diz-se, começaram a rever-se em artistas como Beyoncé ou Taylor Swift – na net é comum encontrar swifties que dizem que os homens não têm equivalente, que não existem artistas masculinos que cantem as dores dos homens – não é bem assim, eles existem e, dos clouddead a Bill Callahan a solo, passando pelos The National ou The Walkmen, fizeram bons discos; só que não têm a dimensão que Taylor Swift tem (até porque a indústria musical voltou a estar dividida entre mainstream e underground). O que podemos dizer é que se calhar não existe uma figura pop masculina agregadora dos anseios masculinos com a dimensão de uma Taylor Swift. Talvez Kanye a tenha tido, quando cantou “A toast for the douchebags”, em Runaway (muitos rapazes reviram-se nesse verso).
Beyoncé e Taylor Swift já não são mais meras compositoras ou intérpretes, são uma espécie de executive producers dos seus discos e da imagem e de si mesmas: sabem o que querem, chamam quem querem para as ajudar a alcançar os seus objetivos (melhorar um beat, pôr aquela linha de guitarra, etc). Estão em absoluto controlo de cada passo que dão. Se calhar, Lillly Allen e M.I.A. também fizeram o que quiseram, mas eram demasiado inqualificáveis para ter tanto público; Angel Olsen nunca será vista — erradamente — como uma ícone mundial; Björk é entendida como uma tipa esquisita com talento e não como um ser genial.
E assim chegámos a este ponto: no mundo dos artistas convencionais as canções são as rainhas – e assim que um artista começa a produzir piores canções, o amor do público esfria-se e lá se vai o estatuto de estrela ou super-estrela; mas no mundo de Taylor Swift a estrela é Taylor Swift e as canções já são quase secundárias face à possível aparição da rainha numa terra perto de si. Taylor vive para reaparecer, o que permite aos fãs voltarem a conversar sobre Taylor. Ocasionalmente, isto implica novas canções.
Nesta digressão, e como o nome indica, as canções são divididas em eras – do início country, passando pela fase pop de 1989, até à inflexão pela folk, cada era tem a sua côdea de atenção neste projeto revisionista megalómano, em que cada concerto costuma durar três horas. Há uma versão de 10 minutos de All Too Well (de Red, de 2012), uma série de canções de 1989, que por acaso foi editado há uma década (Shake It Off, Blank Space e Bad Blood costumam aparecer), um par saídas de Reputation, de 2017 (Look What You Made Me Do e …Ready for It?), temas do inevitável Lover, de 2019 (Lover, Me! e You Need to Calm Down), outro par (Cardigan e Exile) de Folklore (de 2020), e algumas de Midnights (de 2022), sendo que ainda é incerto o que Taylor fará com o recente The Tortured Poets Department, quais canções deste álbum recente escolherá, num total de cerca de 40 canções, isto sem incluir os interlúdios que permitem a mudança de cenários, interlúdios durante os quais são exibidos vídeos, de modo a que nunca haja um momento de paragem e se mantenha sempre o nível no épico.
Mas talvez Eras corresponda, no seu gigantismo, ao fim de uma era – estamos enfiados num mundo em que Taylor Swift é omni-presente há mais de uma década. Vimos as suas canções serem dissecadas não como se possuíssem o segredo para a vida, mas como se fossem pedaços de código para a interpretação da vida da própria Taylor; e vimos Taylor incessantemente, lemos as discussões online sobre que canção menciona que namorado e que zanga com que artista. Taylor, enquanto assunto, permeou quase todos os aspetos da nossa vida e tornou-se o fim e o princípio da vida da artista Taylor Swift.
É possível que tenhamos chegado a um momento de sobredosagem de Taylor Swift – ela pode continuar a adicionar cidades à digressão (enquanto houver uma cidade com um local suficientemente grande para a receber e que ainda não a tenha recebido haverá gente para a ver) mas é difícil imaginar como é que este império pode crescer.
Com The Tortured Poets Department assistimos, pela primeira vez, a críticas pouco favoráveis e, ao contrário do que imaginávamos, não houve nenhuma tentativa de assassinato dos críticos que emitiram opiniões menos abonatórias; as Swifties fizeram menos barulho do que imaginávamos; houve até algumas fãs a balbuciar algum desagrado com a escassez de grandes canções no disco.
Há uma espécie de cansaço acumulado – Taylor, a avaliar por algumas letras do último disco, está um pouco saturada de ter a sua vida espiolhada a cada segundo, e muito possivelmente o mundo está cansado de ter de debater cada passo de Taylor. Andamos há demasiado tempo a dar atenção a pop em que artistas fazem insinuações sobre a sua vida privada, em particular a amorosa – foi uma fase que talvez esteja a chegar ao fim; quando ouvimos Espresso, de Sabrina Carpenter (que vai ser o êxito de verão), não há uma frase que seja sobre a sua vida pessoal – é uma canção leve, de travo revivalista do disco-sound, em que nenhuma palavra é auto-referencial – e já está na altura de voltarmos a ter pop que fala da vida e não do artista que cantou a canção.
A Eras Tour é um colosso e continuará a sê-lo durante algum tempo. Os próximos discos de Taylor Swift continuarão a vender bem, mas menos. O mundo da pop gosta de ter os seus reis e rainhas, mas chega sempre o momento em que o mundo se cansa, em que se farta do mesmo assunto, em que precisa de um novo tema de conversa. Enquanto isso não acontece, cá estaremos a enumerar os feitos de Taylor Swift, como se de proezas atléticas se tratasse. Atléticas, mas não obrigatoriamente musicais – esse é um assunto cada vez mais menor no mundo de Taylor Swift.