Assim que pisou o palco do jantar de lançamento das candidaturas autárquicas do Chega ao distrito de Santarém, a 28 de setembro de 2021, Milena Castro não escondeu o nervosismo e até o justificou. Era a primeira vez que discursava em público e nunca tinha sido “política”, dizia ao microfone, ao mesmo tempo que acalentava esperança de poder contribuir para um concelho de Benavente menos dormitório e mais garantístico dos “costumes” e “tradições”. Milena apresentou-se como empresária no setor do Ambiente, casada e mãe de três filhos, mas deixou de fora uma informação relevante: que tinha sido condenada pelo crime de recetação — num processo em que o tribunal deu como provado que comprou sucata roubada a um grupo criminoso liderado por um militar da GNR de Samora Correia.
Segundo os estatutos do Chega, o registo criminal pode ser pedido a qualquer momento e qualquer referência é incompatível com um mandato político, como se lê no artigo 45.º sobre as incompatibilidades e impedimentos. “Sempre que a direção nacional o entenda, pode esta solicitar a qualquer membro de órgão do partido a demonstração de registo criminal, sendo impedimento a existência de qualquer averbamento com o exercício de mandato, o qual se considera imediatamente perdido”, lê-se.
O coordenador da comissão de Ética do Chega, Rui Paulo Sousa, garante ao Observador que a “direção nacional do partido não tinha conhecimento desta situação” e que “a mesma vai ser analisada após o qual serão tomadas as necessárias medidas caso se justifiquem”. O também deputado diz ainda que, “em relação aos cadastros dos possíveis candidatos, os mesmos foram pedidos e entregues na sua maior parte”, mas admite que “poderá, contudo, e comprovando-se esta situação, ter existido alguma falha no decorrer do processo.”
A vereadora do Chega, quando contactada pelo Observador, reiterou que desconhecia que o “material era roubado” e que era apenas uma “funcionária de escritório”. Milena Castro diz ainda que enviou o registo criminal para o portal do Chega e que o mesmo está limpo — tendo depois enviado esse mesmo exemplar para o Observador. Questionada sobre como é possível não ter registo criminal — uma vez que foi condenada e não recorreu da decisão — a autarca limitou-se a dizer: “Isso não sei.”
Milena Castro, de 49 anos, é agora vereadora pelo Chega na câmara de Benavente. “O concelho de Benavente tem vindo a perder a sua identidade e a qualidade de vida das suas gentes, o crescimento populacional dos últimos anos não foi acompanhado pelos fatores que garantem estabilidade e condições de vida à sua população. Não queremos que o concelho de Benavente seja apenas um dormitório de quem trabalha noutras localidades, quem vive no concelho deverá usufruir de tudo o que as nossas quatro freguesias têm de melhor, garantindo uma integração nos nossos costumes e nas nossas tradições”, disse quando se apresentou publicamente.
Apesar de dizer que não tinha experiência política quando decidiu concorrer nas autárquicas em Benavente, Milena Castro já tinha sido candidata em 20.º lugar pelo PNR, partido de extrema-direita, nas legislativas de 2019 pelo círculo do Porto.
O seu companheiro integra, também pelo Chega, a Assembleia Municipal de Benavente e já enfrentou em tribunal um processo pelo mesmo crime. João Cruz foi absolvido. O caso da mulher não teve o mesmo desfecho num processo que remonta ao ano de 2014 e que conta com 23 arguidos condenados, entre eles Milena, acusada de um crime de recetação de sucata furtada de uma empresa no concelho onde agora é vereadora. Segundo o acórdão a que o Observador teve acesso, a agora vereadora trabalhava à data para a empresa do marido, da área do Ambiente.
Tribunal deu como provado que sabia que o material era furtado
Manhã de 3 de outubro de 2014. Milena Castro estava de serviço na empresa do companheiro, a PR30 – Soluções Ambientais, Unipessoal Lda, em Samora Correia, quando Júlia Benve, também arguida do processo, ali apareceu. Júlia está identificada como sendo uma doméstica, de origem moçambicana, e acabou também por ser condenada pelo crime de recetação em coautoria.
Segundo o tribunal, Júlia terá perguntado a Milena se estaria interessada em comprar vários quilos de sucata que tinham sido furtados na empresa Incompol — que fabrica peças para automóveis e que tinha contratado os serviços de um terceiro para vender a sucata antes de ser alvo de uma série de furtos. No grupo dos assaltantes, segundo o tribunal, estava o marido de Júlia e dois outros acusados, todos a cumprir ordens de um elemento da GNR que chegou mesmo a levar o carro patrulha para os furtos.
Milena aceitou e, segundo acusou o Ministério Público, recebeu 740 quilos de sucata de alumínio novo pelo qual pagou 592 euros, emitindo uma fatura da compra. “Agiu de forma livre, consciente e deliberada, querendo ficar com os metais para a sociedade PR30 – Soluções Ambientais Unipessoal, Lda, bem sabendo que se tratava de metais subtraídos à sociedade Incompol”.
O processo acabou por juntar em tribunal vários outros crimes praticados pelo grupo, pelo que a primeira decisão é já de 18 de março de 2019. O coletivo de juízes de Santarém, presidido por Helena Nogueira, condenou Milena a 150 dias de multa, o que significou o pagamento de 1.050 euros pelo crime.
Esta foi das condenações menos graves do caso. Nuno Tsinina Nunes, que além de guarda da GNR fazia segurança na Incompol, foi condenado a uma pena única de prisão de sete anos e 200 dias de multa (1400 euros) por 11 crimes de furto qualificado, peculato, falsificação, abuso de poder e dever de sigilo.
O tribunal deu como provado que foi ele que recrutou um grupo de assaltantes, entre eles o marido de Júlia, para fazer vários roubos na empresa onde prestava segurança privada. O militar chegou a mudar o cadeado do portão da empresa para poder ter sempre acesso ao local, tapar o sistema de videovigilância e até a levar carros da GNR para o local do crime.
Outros três militares do posto de Samora Correia foram também condenados, não só por terem percebido o esquema de Nuno Tsinina Nunes e dos seus assaltos e de não o terem denunciado, mas também porque com ele cometeram outros crimes. Os quatro chegaram a entrar em esquemas de burlas com seguradoras, assinando falsos autos de acidentes para outros arguidos (que comunicavam às seguradoras acidentes que nunca tinham sofrido e assim eram indemnizados).
Coarguida de um vendedor de automóveis que já cumpriu pena sob identidade falsa
Entre os arguidos do caso está também um vendedor de automóveis que era já conhecido pelas autoridades. Manuel Fernandes, segundo o seu relatório social, nasceu em Alcântara numa família cigana (comunidade que o Chega ataca de forma permanente publicamente). Casou aos 19 anos, mas aos 17 já tinha problemas com a justiça. Cumpriu várias penas de cadeia, a maior parte por tráfico de droga, e algumas sob uma identidade falsa. Um dia, na prisão, conseguiu sair em liberdade provisória para ir ao funeral da filha (atropelada acidentalmente por uma carrinha celular) e conseguiu fugir, lê-se no seu relatório social, que consta no acórdão de quase 300 páginas a que o Observador teve acesso.
Neste processo, Manuel Fernandes começou por ser apanhado numa escuta, em julho de 2014, com Nuno Tsinina Nunes. Pergunta-lhe informações sobre a matrícula de um carro, informação que só ele como militar da GNR podia obter. Acabou condenado por um crime de roubo qualificada por ter combinado, depois, com os amigos da GNR, intercetar uma carrinha cheia de peças de vestuário e calçado de marca, e ter-se apoderado da mercadoria.
O Ministério Público decidiu juntar todos os crimes e arguidos num só processo porque todos eles estavam ligados aos militares da GNR de Samora Correia. Por isso, a agora vereadora do Chega, que é também secretária da Mesa da Assembleia Geral Distrital de Santarém, sentou-se no banco dos réus com todos estes 22 arguidos, entre militares da GNR e assaltantes já cadastrados.
No relatório social feito para o processo, Milena Castro disse estar desempregada por se ter demitido da empresa onde ajudava o companheiro. Disse também que passava o dia ocupada a ver televisão, a fazer caminhadas e a ler. E que nunca antes tinha tido problemas com a Justiça. Já perto das eleições autárquicas, assumiu-se publicamente como uma empresária no setor do Ambiente.
Companheiro de Milena chegou a ser acusado pelo mesmo crime, mas tribunal absolveu-o
Enquanto Milena aceitava comprar material furtado na Incompol, o seu companheiro, João Cruz, estava a ser julgado em tribunal por um processo semelhante aberto dois anos antes, em 2012.
João Cruz — o companheiro da vereadora do Chega, que também tem no cadastro criminal uma condenação por ofensas à integridade física —, foi acusado por ter comprado diverso material por 70 euros a um casal também arguido no processo. Lino Serro e Anabela Simões são acusados de furto qualificado. Neste caso, a sucata tinha sido furtada na Lusogrua, uma empresa que não laborava já há cerca de um ano.
Milena foi testemunha do companheiro e justificou em tribunal que ele não estava há muito tempo no negócio, que o material estava ferrugento e por isso era difícil perceber a sua origem. Admitiu ser frequente aceitarem comprar material a particulares.
A decisão da Secção Criminal da Comarca de Santarém, em Benavente, é de novembro de 2014 (um mês depois de Milena ter aceitado comprar mais uma carga de material) e absolveu os três arguidos. O tribunal considerou não haver provas de quando o material foi furtado, muito menos provas que permitissem condenar João Cruz a um crime de recetação por saber da proveniência do material. O mesmo não aconteceu a Milena Castro que, cinco anos depois, foi condenada.