É difícil imaginá-lo da forma como se descreve na fase que viveu há mais de 10 anos, talvez por causa das personagens que o ligaram à imagem de um homem bem disposto, divertido e simpático. Mas Vítor Emanuel, o empreiteiro Peixoto da novela “Festa é Festa” da TVI, conta que, naquela altura, era alguém angustiado, ansioso, triste, isolado e perdido.
A depressão seria diagnosticada apenas muitos meses mais tarde, depois de um episódio em que os sintomas físicos o assustaram: sentiu-se mal, desmaiou, diz que o corpo “apagou-se” e que esse foi o maior sinal de alerta. Foi “salvo” pela médica que o atendeu nas urgências e que percebeu que o quadro clínico estava relacionado com a saúde mental.
Ouça aqui a entrevista em podcast.
Vítor Emanuel e a depressão. “Não é uma decisão. Sem dares conta, já estás lá”
Numa entrevista inserida na série “Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental“, uma iniciativa do Observador e da FLAD, gravada na Livraria Déjà Lu, na Cidadela de Cascais, Vítor Emanuel admite que, na fase mais difícil, chegou a tentar refugiar-se na bebida e pensou em suicídio, muitas vezes nas longas viagens que fazia de carro, sem destino, a fumar cigarros, uns atrás dos outros, à procura de um caminho para ele próprio. Diz que ir trabalhar era “doloroso” e conta que, num desses dias, depois daquilo que descreve como “o apagão”, só conseguiu ir com o pai ao volante e a mãe na parte de trás do carro a segurar-lhe a mão, tinha ele na altura 39 anos.
Os medicamentos ajudaram-no a “voltar à vida” e a retomar a “normalidade”. Hoje, os filhos são uma das principais razões para estar atento aos sinais e garantir que continua bem: “Tenho um dever para com aqueles dois seres, o dever de os guardar, salvaguardar, fazer crescer, de os levar até onde eu puder e até quando eu puder”.
[Veja aqui a entrevista completa a Vítor Emanuel]
Quando é que percebeu que as coisas que sentia não eram só aquilo que às vezes desvalorizamos como “as agruras da vida”, mas podiam ser sintomas de uma doença?
Acho que não tenho a noção nem do momento exato nem sequer de se fui eu que dei conta disso. Acho que fiquei mesmo fechado nessa redoma, que se calhar era uma coisa da vida, se calhar era uma coisa que eu tinha de sofrer ou que tinha de levar comigo para onde quer que fosse. As pessoas que me rodeavam, sobretudo as de sangue, é que começaram a ter verdadeiros sinais de alerta da minha parte, sem eu dar conta — e, por consequência, devagarinho, tentaram levar-me para que eu desbloqueasse essa espécie de casca de ovo. Quando tudo me começou a acontecer, criei uma casca de ovo, completamente sólida, e deixei-me estar lá dentro.
Que sinais eram esses?
Isolamento, angústia e ansiedade, que hoje, à distância, fico a achar “como é que é possível alguém conseguir lidar com isso?”
Por causa da intensidade ou por ser muito frequente?
Por ambas. Pela intensidade e pela constância, ou seja, pela quantidade de vezes que isso acontecia. Dou assim um exemplo, não sei se isto poderia ser avaliado ou medido numa unidade qualquer: eu cheguei a “clicar-me” para trabalhar e tenho quase ideia — não absoluta, mas deve lá ficar muito perto — de que não se passava nada comigo e que ninguém de fora, sem tanta proximidade ou intimidade, pudesse aperceber-se de alguma coisa. Fazia o trabalho e, mal acabava, “panicava”, mas assim ao ponto de não saber o que queria fazer a seguir, para onde tinha de ir a seguir, com quem queria estar a seguir, se sozinho estava bem, se acompanhado estava bem. Cheguei a fazer telefonemas, por exemplo, para a minha irmã, a oito quilómetros de distância, a ver o prédio dela e a falar com ela para me tentar acalmar, e ela a tentar acalmar-me. E isto é muito “fora”, porque eu não sei explicar, ainda hoje não percebo como é que a nossa mente faz — porque isto tem a ver com mente, não tem a ver com mais nada. É lógico que depois traz pormenores físicos, mas é esta máquina estranhíssima que muda azimutes em permanência, e que, por mais que tu não queiras, é nesses caminhos mais obscuros, se assim se pode dizer, em que tu te encontras, e é para onde ela te leva.
Além da ansiedade e da angústia, quando se tem uma depressão tem-se também sempre uma tristeza — essa ideia que associamos sempre à doença?
Sim. Eu disse um sim tão assertivo porque estou a falar de mim, não sei se, no conjunto, é o mesmo que se passa com outros seres que, infelizmente, passaram ou passam por um dano desses, porque não é uma coisa por iniciativa, não é uma tomada de posição ou de decisão. Sem se dar conta, já estás lá. Por isso, eu não consigo responder, porque não tenho mesmo ideia de que resposta pudesse dar a isso.
Quanto tempo é que esteve dentro dessa casca de ovo? Meses, anos?
Um ano e qualquer coisa.
Em que as coisas vão crescendo, ganhando intensidade?
Sim. A ideia que eu tenho é que, pelos relatos que me são dados — lá está: não digo durante a totalidade, um ano e seis meses a atravessar esta situação, mas não acredito que ela tenha começado da mesma maneira como acabou, e pelos meios todos, fossem eles qual fossem, o estado também se foi alterando, digamos assim. O que eu senti foi cada vez mais querer o isolamento e esse isolamento trazia-me a ansiedade e a angústia, deixava-me extremamente nervoso, a começar a ter os chamados ataques de pânico, a ter ataques de choro, inclusivamente a pensar nas coisas mais estranhas, a pensar em desistir. É uma janela que está aberta para todos nós. Essa é a ideia que eu acho que já tinha e hoje, para mim, é assumida. É o livre arbítrio, escolhes bem ou mal, escolhes o bem ou escolhes o mal — no sentido figurado ou romântico, eu ponho uma janela. Mas só salta quem quer. Derrapa-se muito, escorrega-se muito, tem-se momentos, parece-me a mim, de grande coragem, em pensamentos, mas, desde o pensamento à concretização, ao mesmo tempo que é uma linha tão ténue, é uma linha que, ao estar lá… faz-me lembrar a minha área, que é a televisão: 30 segundos em televisão, numa branca, parece que é uma semana em que não se abre a boca, em que não se diz nada, mas aquilo fica lá, está presente, consegues visualizar, consegues inclusivamente dramatizar a coisa, “guionar”. Se eu fizesse assim, assim, assim, a quem é que eu causo mais danos, a quem é que eu causo menos danos.
Quando se pensa em suicídio, pensa-se também — e é isso que pode travar alguém que esteja perante essa ideia — nos danos que se vai causar a outras pessoas? Pensou na sua irmã, por exemplo?
Sim. Especialmente pensei, no momento em que foi, em três pessoas específicas: pai, mãe e irmã. Apesar de amar a minha sobrinha de paixão, mas não estava a fazer parte da equação, no sentido em que a intensidade de laço maternal ou paternal estava presente nestas três unidades, pai, mãe ou irmã, até porque ela é mais velha do que eu. Provavelmente iria magoar ou entristecer mais pessoas, mas acho que, a dada altura, um dos inputs internos é pensarmos em nós, eu próprio. “Mas queres ou não queres? Vai ser bom ou não vai ser bom?” É tão estranho. Eu estava em sofrimento, fosse ele qual fosse, se calhar nem sei identificá-lo, mas, ao mesmo tempo, trazes outro sofrimento, tu próprio, ao pensares que queres acabar com aquele sofrimento, mas se calhar estás à procura de um outro para sobrepor àquele. Tudo bem que ele tem um final mais curto, porque, se formos a vias de facto, fosse ele qual fosse o sofrimento de tomar essa decisão, em pouco tempo eventualmente acabaria. O outro não, o outro era duradouro, intermitente, volta, cresce, desaparece, volta novamente, vem mais ou menos intenso, chora-se mais, chora-se menos, isolamo-nos mais ou menos.
Esse sofrimento, a ansiedade, a angústia, a tristeza, o isolamento — e imagino que, ao mesmo tempo, a solidão — que impacto têm na vida prática do dia a dia? Era funcional?
Não, não. É completamente estapafúrdio, como diz a minha filha, não faz absolutamente sentido nenhum. Daí eu sofrer mais. Conforme disse há pouco: eu não sei como é que fiz, mas sei que, quando era para trabalho, “chipava-me”, conseguia fazer ali uma coisa qualquer, mas com uma velocidade para todos os níveis, uma velocidade de “onde é que é?” — uma coisa com que brincamos muito em set, “onde é que eu me ponho, o que é que eu digo, o que é que eu faço? Ação”. Estou aqui, fiz isto, disse isto, está feito, muito obrigado, bom dia. E a minha velocidade de “chipar” para entrar e fazer era a mesma velocidade que eu necessitava para, quando acabasse, sair, porque eu ali não estava bem. E, basicamente, era não querer dar o flanco. É uma espécie de uma falsa carapaça. Há carapaças que nos deixam fortes e resistentes a uma quantidade de coisas, independentemente de sofrermos um dano qualquer, emocional ou físico, mas tentamos aguentar-nos e ela está lá para isso mesmo, para contrabalançar, para equilibrar. Aqui não, aqui era completamente falso, porque mal tu me dissesses “então pronto, Vítor, está feito, adeus”, eu antes de sair, a carapaça já tinha caído, eu já saía sem ela, não a levava comigo.
Essa carapaça, criou-a e vestia-a porquê? Pelo estigma, porque não queria que as pessoas percebessem?
É provável que seja por aí. Não quis dar o flanco, não quis dar parte fraca. Sabia que não me sentia bem, mas não queria que ninguém soubesse, não queria que ninguém detetasse, não queria que ninguém me dissesse nada. Há pessoas que, em vários momentos da vida, por outras razões, passam por outras coisas parecidas ou semelhantes. Das coisas mais irritantes que existem, para o lado de cá, seja eu ou seja quem for, é, muitas vezes, estar a ouvir coisas com as quais não nos identificamos, com as quais é tão claro para nós que “é tão fácil falar de fora, mas não queres trocar?”
Que tipo de coisas?
“Eh pá, não estejas assim, a sério. Vai espairecer, vai dar uma volta.” Dar uma volta? Eu cheguei a sair, dias e dias a fio — hoje não sei como seria, ao preço a que está o gasóleo, acho que tinha ido declaradamente à falência em dois meses —, mas cheguei a fazer viagens de me meter dentro do carro e, de repente, quando dava conta, estava em Lagos, estava em Faro, estava em Coruche. Cheguei a andar aqui na marginal, a fazê-la três, quatro vezes — Lisboa, Cascais; Cascais, Lisboa; Lisboa, Cascais. A fumar cigarros. E se tu me perguntares: “Mas lembras-te de mais alguma coisa?”, há poucas coisas de que eu me lembro.
Há um “borrão” nesse período?
Há uma espécie de um borrão. Lembro-me de estar a conduzir e querer refletir ou querer fazer introspeção e, a dada altura, não é isso que acontece, cada vez parece que empola mais aquela bolha de veneno e depois vêm as crises de choro e depois estás num dos cenários “idílicos” para os tais pensamentos estranhíssimos, no sentido de mudar qualquer coisa, olhares e pensares “podia ser ali” ou “posso acelerar um bocado mais, travar, guinar de repente”. E nunca aconteceu, mas tantas vezes visualizei tudo, fiz os meus desenhos.
O trabalho, nessa altura, era um refúgio ou era uma obrigação?
Era uma obrigação.
Dolorosa?
Muito. Era tão estranho. Houve uma altura em que morei aqui nuns apartamentos do conhecido hotel Equador e acordava de manhã, chorava baba e ranho, tomava banho, saía, metia-me dentro do carro, ia trabalhar, durante o caminho chorava imenso, antes de lá chegar. Se não me conseguisse controlar antes, ficava dentro do carro até tirar tudo de cima de mim, como se fosse pó. Estava um fumador compulsivo e o cigarro estava a ser o escape, era fumar dois, três cigarros de seguida, parecia que aquilo me trazia alguma coisa, era entrar, “bom dia, bom dia, bom dia”, vestir, maquilhar, maquilhar, maquilhar, fazer, fazer, fazer, ir embora, voltar a fazer o mesmo processo. Tentar escapes — um deles, que eu tentei, mas até isso é tão estranho porque me enjoou, era a bebida. Era capaz de beber aquilo que, se calhar hoje, durante um mês ou dois, não bebo. Sozinho, em casa. Serve para quê? Na verdade, não serve para nada, e é dispendioso.
Adormecia essa dor e às vezes literalmente?
Ora lá está. E esses momentos eram os de libertação. E o que é que aconteceu? Nada, eu estava a dormir. Isto porque não tinha nada comigo, não tinha acompanhamento, não estava com um médico, não estava medicado, não tinha consultas de psicologia.
E havia alguém com quem falasse?
Não, porque eu fugia. Toda a gente que quisesse falar comigo era por telefone. “Então, está tudo bem? Está” — vestia-se a tal carapaça, aí ainda mais fácil, porque é à distância. Salvo quando alguém queria ou tentava fazer uma videochamada, mas é fácil desistir da mesma, e faz-se uma coisa completamente escorreita de falar simplesmente ao telefone, em que se veste aquele boneco, diz-se “sim, sim”, e depois tens 50 mil desculpas: “Então vamos jantar? Eh pá, esta semana não posso”. Mentira, podias fazer até ter três jantares por dia, um às 8h, um às 11h e outro à meia noite, e conseguias estar com três pessoas ao mesmo tempo, ou juntar as três ao mesmo tempo. Quando, eventualmente, isso acontecia, para um ou outro mais próximo, são conversas redutoras, redutoras para mim mesmo, sobre mim mesmo, que, a dada altura, ainda empolam as tais observações do lado de lá, que são feitas de coração e com o máximo de atenção e de responsabilidade, digamos assim, porque é essa a vontade do ser humano que está do lá de lá— “sai daí!” —, mas só enterra mais, só carrega.
Porque cria a perceção de “ninguém me compreende, ninguém sabe o que estou a viver e ninguém me pode ajudar”?
É isso. E mais, se calhar aí ainda ponho outra coisa, noutro sentido, acho que fiquei um bocadinho com isso: quando alguém às vezes debita muito texto no sentido de querer orientar ou querer dar uma dica, “está bem, mas diz-me como é que se faz, faz para mim”. “Se é assim tão fácil, é só estalar os dedos, então estala lá os dedos. Ah, olha que bom, estou bem.” Não é verdade, e acho que não é só para mim, porque não existe essa magia, do lado de lá, em nenhum outro ser humano, de estalar os dedos e pronto, estás curada, estás bem, podes seguir. Não é o que acontece. Aliás, no meu caso, em pessoas em quem tu depositas mais confiança, de que gostas mais, por quem mais intensidade emocional e sentimental tens, ainda se torna pior. Porque, a dada altura, ficas a pensar: “Então mas eras tu mesmo, tu é que tens de me resolver isto, porque eu já percebi que não sei o que é, não sei por que é, não sei como é que se faz, não nada.” É não, não, não. É os “nãos” e os “ses”, fica-se muito nisso. “E se, e se”, o que é mentira porque nunca terás resposta nenhuma. E o “não”, que é o tal chavão, que é o princípio da negação. A negação não é só porque se diz não, é o princípio para mim, vejo-o assim. Depois, a partir daí, é que é um não declarado, é um não em permanência.
Muito por causa de alguns papéis que desempenhou, sobretudo na televisão, o público tem uma imagem de si de alguém muito bem disposto, muito simpático. Isso torna tudo pior?
Completamente. Não atravessando uma fase destas, que não desejo a nenhum ser humano — aliás, nada de mal desejo a quem quer que seja —, já é complicado lidar com isso, porque uma figura pública ou alguém que aparece em permanência no “quadradinho” é um ser humano. Ponto. Tem sangue igual, tem os órgãos iguais, sente quase tudo à semelhança, depois cada um tem o seu estereótipo, dói igual. Já é complicado por causa disso mesmo, porque há dias bons, há dias maus, há dias mais stressantes, há dias em que estamos muito felizes, há dias em que estamos um bocadinho mais tristes, há dias em que fomos magoados, há dias em que magoámos, e isto tudo leva a uma quantidade de pensamentos de resolução, mas estamos no nosso perfeito cenário de máquina de calcular científica, resolvemos tudo. São equações, nós resolvemos tudo. Aqui não, aqui existe “uma debilitação”. “Ok, está a acontecer, e agora?” Não sei. E quando tu te começas a fechar cada vez mais, mais complicado se torna, porque cada vez vês menos a luz ao fundo do túnel, ou a máquina de calcular científica ou o que quer que seja, a cábula para resolver a situação. E isso torna-se intenso ao ponto de levar sobretudo para aquelas situações, que eu acho que são as piores: a ansiedade e a angústia, que para mim não são iguais, porque a ansiedade é o que traz, a dada altura, a mola para um ataque de pânico — que é um palpitar, uma coisa que não se controla; a angústia é mais na linha da tristeza, é o semblante que fica para baixo, é o não esboçar sorrisos ou ter vontade sequer de sorrir. É uma pescadinha de rabo na boca.
Perdeu trabalho por causa disto?
Ia perdendo, mas mesmo no final de isto ser o Vítor Emanuel sozinho, até alguém deitar a mão ao Vítor Emanuel.
Porque é que ia perdendo?
Porque dois dias antes de ir concretizar esse trabalho, que já estava “fechado” e para o qual eu tinha sido contratado, tenho “o apagão”.
O que é “o apagão”?
Tinha um amigo ao meu lado, que ainda hoje, se falarem disso ao pé dele, a lágrima cai-lhe. Ele achou que eu estava morto, diz que me viu azul. E eu apaguei-me. Tive um shutdown. Foi um desmaio como eu nunca tive na vida. Lembro-me de me sentir mal, de lhe dizer que me estava a sentir mal e, a partir daí, lembro-me de que comecei a vomitar, a vomitar, e depois, a dada altura, eu próprio despejei tudo quanto era líquidos e sólidos que eu tivesse, por todo o sítio por onde pode sair, foi por onde saiu.
E isso era uma demonstração física daquilo que estava a viver em termos de saúde mental?
Foi o que me disse a Tânia Ferreira — que foi a médica que me apanhou —, que nós somos uma máquina tão especial, tão exemplar, que, quando alguns de nós têm a sorte de essa mesma máquina funcionar como funcionou para mim, é a sétima maravilha. O corpo avisou-me uma, duas, três. Então, antes que aconteça alguma coisa mais penosa, mais gravosa, “eu vou tratar de ti, queres ver?” E desliga tudo. Depois, a partir daí, é uma como se fosse uma reaprendizagem.
O que é que aconteceu nesse dia? Tem esse desligamento geral e precisa de cuidados médicos. Teve cuidados médicos logo nessa altura?
Logo de manhã. É um processo super-hiper-rápido. Voltando ao início: se eu dava conta ou não dava conta? Não, eram as pessoas que estavam de fora, nomeadamente mãe e pai. E há uma altura — mãe é mãe, como se costuma dizer — em que a minha mãe apertou tanto comigo que fez de maneira a que eu fosse ver a minha médica de família , que já não via há imenso tempo, três dias antes desse apagão. Até este apagão, temos três episódios fantásticos, que são horríveis. Conseguimos a consulta, eu vou ver a Dr. Isabel…
Como é que a sua mãe o convenceu, disse-lhe que o Vítor tinha um problema ou foi mais subtil, como as mães às vezes são?
Da maneira como a minha mãe consegue, neste tipo de situação, dar-me a volta: pôr a lágrima no olho. “Ui, eu não posso estar a fazer isto, ela não merece.”
Mas disse-lhe o que achava que se passava consigo, disse-lhe que achava que havia um problema, falou sobre algum dos seus sintomas?
É muito básico: “Eu acho que tens qualquer coisa e acho que tens de resolver, porque aquilo que te está a acontecer, da maneira como tu te comportas e o que está a passar-se à tua volta, nós sentimos” — porque éramos capazes de jantar três vezes por semana, e nomeadamente o icónico almoço de domingo, e eu estava sempre a desaparecer, não estava presente. Entre outras coisas, como fazer as conversas mais curtas do mundo, que seria um título para um livro ou para um filme: “Então, está tudo bem? Está tudo bem. Precisas de alguma coisa? Não, está tudo bem. E queres falar? Não, está tudo bem. Boa noite”. Isto jamais era uma conversa que algum dia eu tivesse tido com a minha mãe ou que hoje em dia eu tenha com a minha mãe, foi nesta fase que eu tinha este tipo de conversas, e ela conseguiu levar-me pelo lado emocional. Porque, mesmo naquele marasmo todo em que eu me encontrava, olhar para ela e vê-la a chorar e a demonstrar-me “eu não sei fazer nada, não te sei resolver a situação, não te sei tratar, não te sei pôr bem, vamos lá”. E fomos. Fiquei sozinho com a médica, ficámos a falar, falei, falei, falei, chorei, chorei, chorei. Não me perguntes o que é que lhe disse, não faço a menor ideia, sei que saí de lá com um rol de medicamentos e que ela fez, numa análise curta, por carinho — porque eu sei que a Dra. Isabel gostava de mim como ser humano, e vice-versa. E lembro-me de que o meu pai sentou-se comigo, fomos a uma farmácia para aviar a receita, eu tinha o meu carro ali naquela zona, ele tinha o carro dele ao pé da farmácia, ele olhou para mim, não proferiu uma palavra, eu disse-lhe “então adeus”, e fui-me embora. Meti-me dentro do carro e nesse dia comecei a tomar aquilo que a médica me tinha dito para tomar — não sei dizer o quê.
Apesar do borrão que está em cima desse momento, houve um diagnóstico? Tem ideia de lhe ter sido dito que tinha uma depressão?
Não tenho, de todo. Na minha vontade emocional de não querer que a minha mãe passasse por aquilo, eu fui. Mas acho que estive lá dentro, independentemente de eu conhecer a pessoa e ter confiança com a Dra. Isabel, foi “despacha lá isto que eu quero ir embora”.
Então chega com os medicamentos a casa e toma-os direitinho?
Eu penso que sim. A dada altura pôs-se isso em questão, nunca se conseguiu identificar. Sei que tinha antidepressivos, tinha ansiolíticos, tinha “SOS”. Desses todos, até porque ficou mais para a frente, há um que me ficou na memória, que se chama Victan, que era um SOS. Depois tinha outro que ficou na história para mim, não sei dizer o nome, mas era a “estrelinha”, um antidepressivo forte, tanto que eu depois no desmame tive de chegar até um quarto de comprimido, não podia ser a metades nem de um dia para o outro. Só quando fiz um mês ou um mês e meio de um quarto de comprimido é que larguei esse medicamento na sua totalidade.
Nesse dia, três dias antes do apagão, começa a tomar os comprimidos. Não teve nenhum problema com essa ideia?
Não. Desde pequenino que me dizem que eu sou maluco, por isso, se calhar, por estigma ou não, ou por tatuagem interior ou não, a história de me chamarem maluco, fosse por passar por uma situação parecida ou algo que tivesse a ver com o parecer louco ou tresloucado, nunca me faz sentido. É como a pequenez. Eu sei que não sou um homem grande, sou capaz de ter tido o bullying um pouco na escola primária, mas não me lembro de ter algum problema com o meu tamanho muito cedo, bem resolvido. Sou pequeno, sou pequeno. Chego aonde os outros chegam e, em muitas das coisas, achei sempre muito mais divertido, porque eu era muito mais veloz, conseguia-me dobrar e baixar mais depressa, nunca fui por aí. O chegar mais alto, fisicamente, não se consegue à primeira, consegue-se à segunda.
Então os medicamentos para si não eram estigmatizantes, mas não foi contar a outras pessoas o que estava a tomar.
Não, nunca contei a ninguém. Só depois, no episódio do terceiro dia, é que as pessoas mais perto ficaram a saber e sabiam que depois teria de fazer aquele processo, que foi de oito ou nove meses, acho que não chegou a um ano.
E ainda se tentou perceber, quando há o “apagão”, se os medicamentos podiam ter tido alguma influência, se podia estar a tomá-los mal?
Não se chegou a essa conclusão devido também ao “apagão”, que me fez uma limpeza de uma quantidade de coisas. Porque há a primeira toma mal chego a casa, sei que depois à noite eu teria de fazer uma toma qualquer também, e fiz. De manhã, fiz novamente a toma, depois fiz a toma à tarde — isto no segundo dia —, faço a toma à noite e, quando faço a toma à noite, é nessa altura que estou a sair. Ia para um evento para Lisboa, em Santos. Vou com esse amigo, parámos nas bombas da A5, jantámos uma coisa rápida, bebemos coca-cola, chegámos ao sítio, estacionámos, fumámos um cigarro e tenho a sensação de que eu aí estava a querer ficar mais solto ou estava meio dopado, digamos assim. Sei que ainda fizemos ali umas brincadeiras e, a dada altura, avançámos para ir para o espaço e eu mexo nos bolsos e percebo que me esqueci da carteira. Ele abre-me o carro, fui à porta do pendura, dobrei-me, tirei a minha carteira, meti no bolso, fechei a porta, estou a começar a querer sair do pé do carro, encosto-me e digo “não me estou a sentir bem, espera”. E foi uma espécie de um elástico, efeito-consequência. Comecei a ficar muito nauseado, muito maldisposto, a dada altura tentei encontrar um sítio porque percebi que era isso que ia acontecer. Segundo me diz o meu amigo, vomitei quatro ou cinco vezes, estava de joelhos e parecia que tinha molas porque já não saía nada, e o meu organismo começou a ficar cada vez pior e, a dada altura, apaguei-me. E depois lembro-me de o ter ao pé de mim, estava uma amiga nossa, que era apresentadora desse evento, a quem ele ligou para ver se ela conseguia fazer alguma coisa. Tenho os dois ao pé de mim, a falar comigo, ela não podia mais porque tinha compromissos, eu disse “não há problema nenhum”. Não me conseguia mexer e começou a chegar mais gente, e eu estava mais ou menos visível e ele ajudou-me a arrastar-me. Fiquei quase como deitado atrás do carro. “Queres que eu chame uma ambulância? Não quero, não quero.” Mas queria entrar para o carro e não conseguia, foi ali uma azáfama, até que consegui e fiquei nos bancos de trás, deitado. E ele disse “não, eu vou chamar uma ambulância”. Eu estava ali numa intermitência qualquer, não sei se eram pequenos desmaios. Sei que, passado muito tempo, ele diz que eu tinha insistido variadíssimas vezes “leva-me para casa”, e chegou uma ambulância. Isto era uma sexta-feira à noite ou um sábado — e este apontamento também gostava que servisse para alguma coisa: nem tudo o que acontece na noite tem a ver com drogas ou com bebida ou com más índoles.
Achou que quem o viu naquela situação automaticamente pensou que era isso?
Eu tenho uma imagem de estar deitado, com a cabeça pendurada nos bancos de trás, ter uma ambulância ao lado e ter alguém assim à janela a dizer “e então? ‘tás bem ou não ‘tás bem?”. Lembro-me desta imagem e acho que isto não se faz, eu não o faria. Primeiro porque passa por uma espécie de pseudo-julgamento. Segundo porque eu acho que se eu estava desequilibrado, ali também existe um desequilíbrio, especialmente sendo quem é e executando a função que tem de executar, que é ajudar, salvar, proteger.
Sentiu esse estigma, não associado à saúde mental, até das pessoas da ambulância que estavam ali para ajudar?
É, foi estranho. Até que o meu amigo estava a perceber — e sabe que essas coisas me fazem sofrer — e chegou ao pé de mim, eu agarrei-o e disse-lhe “eu não quero, manda-o embora, leva-me para casa”. E fomos para casa. Não me conseguia levantar. De cada vez que tentava, parecia que o mundo rodopiava à velocidade que rodopia, mas eu estava a conseguir visualizar. Chegámos ao prédio onde eu morava, ele ajudou-me a subir, meteu-me no elevador, abriu-me a porta de casa e eu saí cuspido para o meu quarto, e conforme entrei, assim fiquei. Depois disso só sei uns apontamentos: ele ficou na minha casa até às quatro, cinco da manhã, sem eu proferir palavra e ele só ia confirmar se eu estava a respirar ou não. É nessa altura que ligou para a minha irmã e disse-lhe que eu não estava bem e já não sabia o que fazer, mas também tinha de ir para casa, precisava de ajuda. A minha irmã saiu de casa dela, veio para o pé de mim, tinha um horário um bocadinho mais longo e os meus pais também tiveram de ficar a saber o que se estava a passar porque, a dada altura, a minha irmã teve de ligar e disse “vocês têm de vir para casa do mano e ficar com ele, porque eu também tenho de ir trabalhar e passa-se aqui alguma coisa”. Quando eles chegaram, era como se a minha cabeça fosse um saco plástico com água e com um peixinho lá dentro. Qualquer movimento que faças, tudo mexe. Por isso, deitado era como eu tinha de estar. E, nesse momento — ou seja, estamos a caminho do terceiro dia —, eu não me lembrava de que tinha de ir trabalhar, tinha esse projeto que estava fechado, os meus pais ficam comigo, tentam dar-me de comer, eu vomitava, até que a minha mãe lembra-se de me começar a fazer perguntas de mãe: “Tens compromissos? Tens aí uma agenda? Posso ajudar a ver, há alguém a quem se possa ligar?” Até que, a dada altura, começo a lembrar-me de que tinha qualquer coisa. E lembro-me da pessoa que me contratou e digo à minha mãe: “Agarra no telefone, liga para ele e diz que vai tudo correr bem, amanhã estou lá, só estou muito mal disposto hoje, mas amanhã está garantido”, porque supostamente eu deveria estar a falar com ele para combinarmos as coisas todas e acertarmos horários, como era, se tinha de levar alguma coisa extra. A minha mãe liga, começou a querer falar com ele para explicar tudo, até que, do lado de lá — e eu sei que ele não fez por mal —, salta-lhe a mola e diz: “Mas você não está a fazer um trabalho de mãe”, o que a chocou a ela, mas ainda bem que o fez, porque isso causou este input em duas horas, que foi a minha mãe ficar nervosa, perceber o que ele queria, que era ambulância já, vai para o hospital, não se sabe o que é. A parte profissional dele era: “Eu preciso desse homem amanhã. Ponto”. E era um trabalho grande, estava muita coisa em questão, não só financeiramente, para todos, mas no sentido profissional estava muita coisa em jogo. Passado duas horas, tenho a ambulância à porta. Entrei no hospital de Cascais à uma e qualquer coisa da tarde e saí depois às 4h da manhã, já pelo meu pé. Tinha ligeiros ataques de pânico. Não sentia ansiedades, não sentia angústias — já estava a ser medicado —, mas tinha pequenos ataques de pânico. Então como é que eu fui trabalhar? Fui trabalhar no outro dia de manhã, banhinho tomado, barbinha feita, o meu pai a conduzir, a minha mãe atrás de mim a dar-me a mão e eu sossegadinho e a concentrar-me o caminho todo, chegar, ir buscar um bocadinho daquela carapaça que também já era meu apanágio e começar a trabalhar. Os meus pais ficaram o tempo que puderam — isto foi num espaço aberto, um espaço comercial grande. Então, de quando em vez, passavam à minha frente para eu saber que eles estavam lá.
Dava para estarem sem serem demasiadamente impositivos.
Exatamente, só para me darem segurança. E eu a aplicar-me, a fazer as coisas. Depois, quando eles já não puderam mais, tinham de ir embora, veio a minha sobrinha, e tenho imagens brutais de filme de cinema: havia umas escadas rolantes e, de vez em quando, lá vinha ela e acenava-me, “tio, eu estou aqui, sei que sou mais nova, mas estou aqui”.
Que idade tinha na altura?
Isto foi há 11 anos, por isso eu tinha 39, 40 anos, por aí.
Esse momento absolutamente extremo foi o início da sua cura?
Foi, porque eu sou salvo pela Tânia Ferreira, como eu costumo dizer — aliás, nós fizemos amizade, eu adoro a Tânia, foi ela que me apanhou no hospital de Cascais e já chegou a ir ver espectáculos meus, eu cheguei a ter, logo no início, muitos convites, vinha aqui ao hospital, até porque moro aqui na zona, ia almoçar com ela, lá na zona dos médicos.
Ela quando o apanha na urgência percebe que aquilo não é só um problema físico, uma indisposição, uma gastroenterite, uma coisa qualquer.
Ela tirou a bitola, como eu costumo dizer, quando falou com a minha mãe. Porque comigo só falou depois, já lá muito mais à frente. Porque eu depois de chegar ao hospital de Cascais tenho ali um momento em que não sei se me apaguei ou se me puseram a dormir, sei que, quando acordei, tinha intravenosas com medicação e não sei se estava a desidratar, se não. Até porque houve uma altura, cada vez mais próxima disto, em que eu cada vez comia menos. Cheguei a pesar 59 ou 60 quilos, o que, para mim, que fui desportista até aos 25 ou 26 anos, era impensável. E mais: com a maturidade da idade, já não era um jovem, já não tinha 20 anos, portanto tem-se alguma tendência para ganhar um bocadinho mais de peso e nunca tinha estado assim. Aliás, lembro-me de quando entrei nesse projeto de que estávamos a falar, durou quatro dias, não chegou a uma semana, tinha o guarda-roupa todo escolhido para mim, já tinha havido provas e tudo, e se as coisas me estavam em bom, ficaram largas. Estava mais franzino, as camisas em vez de ficarem justinhas já parecia que estavam largueironas, as calças que não necessitavam de cinto tinham de levar cinto. Foi incrível.
O que é que mudou a partir desse dia? Por exemplo, no tratamento. Continuou a tomar os mesmos comprimidos? Passou a ter um acompanhamento mais especializado?
O que aconteceu a partir daí foi a felicidade desta Tânia, que deu direito a amizade, e que, a dada altura, quase que houve uma terapia psicológica em relação à coisa, porque de quando em vez falávamos ao telefone, encontrávamo-nos, cheguei a vir ao hospital, a medicação poderia ter sido acertada pontualmente, não consigo especificar agora porque não me recordo, mas a coisa começou a funcionar muito bem para o meu lado. Os ataques de pânico eram a única coisa que, de vez em quando, me dava, o resto eu comecei a desenvolver. Ao final de um mês, dois, comecei a aceitar um convite para jantar.
Porque se sentia com mais energia, com menos angústia? O que é que se começa a sentir quando se começa a fazer um tratamento para uma depressão?
Acho que ainda é mais interior: no meu caso, eu nem dava conta. “Eu estou a fazer isto?” Como se diz bem e depressa: e não passar cartão. Telefonavas-me e dizias: “Vítor, queres jantar?” E eu: “Está bem”. Ops, eu disse está bem? Vou mesmo?
E demorou muito tempo?
Um mês e qualquer coisa até este tipo de coisas, eu começar a degustá-las, sem saber que as estava a degustar. E depois, a dada altura, passou a ser uma normalidade. Mas não podia faltar a medicação. Houve, pontualmente, aquele dia em que nós não fazemos no horário certo ou que havia um esquecimento, e aí eu sentia uma espécie de um travão de mão.
E nunca fez de propósito, por já se sentir bem?
Não, não. Porque, antes de eu chegar a uma fase dessas, tive estes quid pro quos, que me avisaram de que não podia. É que é do dia para a noite. Deitas-te esquerda e acordas completamente direita. A estrelinha, como eu lhe chamo, era o comprimido dos meus sonhos, que eu não dava conta. Era um comprimido de tomar à noite, a seguir à refeição. Às vezes eu estendia um bocadinho mais, porque já estava bem. Se estivéssemos aqui a falar e chegasse àquela altura, eu diria “olha, desculpa, tenho de ir tomar a estrelinha”. E depois eras tu que me dizias, no dia a seguir, “tão giro, estavas a falar e de repente adormeceste”.
Nesse tratamento bastaram os medicamentos ou fez terapia? Bastava-lhe a terapia que ia fazendo com a médica que o atendeu em Cascais?
Bastou isso.
Mas sentia que às vezes as conversas eram terapia?
Sim, eu percebia, até porque havia sempre o momento de “então agora diz-me lá, estás a sentir-te bem, como está a tua cabeça? Em relação àquilo que estás a tomar, sentes que se calhar agora eram dois, podemos passar para só um? Se calhar este já não está cá a fazer nada, queres experimentar uma semaninha para ver se a coisa funciona?”
Quando chega o momento de deixar todos os medicamentos, teve medo?
A mim não me deu, porque estava numa fase da minha vida de mais uma mudança, de mais um extra, de mais um “inserimento” no meu hardware, que é a mãe dos meus filhos. Pouco antes de eu acabar com a medicação, houve um “bater de pestana” — porque eu já ia a jantares, porque senão eu acho que não tinha acontecido nada — e foi uma das pessoas que, quando começou a haver o interesse mútuo de, se calhar, existir uma relação, teve de haver partilha de coisas. “Olha, eu venho daqui e vou para ali.”
A vida levou-o ao buraco onde esteve, mas também foi essencial, quando voltou a acontecer a vida, para sair desse buraco? Conjugou-se tudo nessa altura?
É uma maneira muito bonita de ver — e, se calhar, a mais prática e mais valiosa ou a que mais validade tem, ir por aí.
Mas porque fez o seu próprio trabalho?
Acho que, numa determinada altura, sim, eu fiz o meu trabalho. E o meu trabalho foi, no shutdown e no “apagão”, quando me reergui, comecei por aceitar tudo aquilo que me era dito, nomeadamente pela Tânia. Quando a Tânia chegou ao pé da minha cama, num determinado momento, para me tirarem as intravenosas e para fazer uma pequena conversa comigo. Antes de me dar alta, lá mais para a frente, às 4 ou 5 da manhã — porque os meus pais avisaram que eu tinha de ir trabalhar, quase como se fosse uma cortisona ou um ópio da vida, a ideia era safar isto (e a verdade é que, no meu meio, às vezes fazemos estas loucuras, tanto a nível físico como a nível local, “embora lá resolver isto, the show must go on“, mas depois às vezes os dividendos não são bons) —, quando me deu alta disse: “Isto que eu te vou passar é uma prescrição, tem de ser feita como deve ser, tu não podes levar isto a brincar, isto não é uma brincadeira”. É quando entra a tal explicação de que falei há um bocado: “Tu tiveste uma felicidade fantástica e maravilhosa para o lado bom, que foi o corpo ter-te avisado e ter sido teu amigo, foi devagarinho. Quando tu já não quiseste, ele impos-te a sua vontade. Mas também te correu bem”. Imagina que aquilo me acontece e era eu que ia a conduzir? Os danos podiam ter sido complicadíssimos. Imagina que estou encostado a uma varanda ou algo do género? Tudo aquilo que me tinha passado pela cabeça, naquele momento a coisa podia-se dar. Imagina que venho a descer umas escadas, o que quer que seja, tudo podia ser diferente.
Porque levou tudo tão a sério a partir daí, foi isso que foi fazer o seu trabalho?
Levei a sério o que ela me disse. “Toma a medicação e depois vamos falando. Depois se quiseres mais coisas…” — no acompanhamento, umas consultas de psicoterapia ou meditação, por exemplo. Só que depois, a dada altura, eu pensei que não era o meu caminho, estava a funcionar. Quando entrámos naquela parte engraçada de pensar os medicamentos que podíamos tirar, é uma alegria.
E agora, vive tranquilamente ou aprendeu que convém sempre manter um olho por cima do ombro, não vá alguma coisa destas voltar a acontecer?
Nunca pensei nisso, que engraçado. Mas é provável que, no meu subconsciente, faça algo assim do género.
Está atento a sinais seus? Está atento a não se colocar em determinadas situações?
A segunda, acho que essa é uma das grandes aprendizagens. Já era das coisas que eu gostava, não dar importância demasiada às coisas que não me interessam, às coisas de que eu não gosto e às coisas com que não concordo. Não me meto numa confusão, ponto. Porque não gosto de confusões, não gosto de gritos, de confronto físico, de confronto verbal. Se tenho direito de escolha, o meu direito de escolha é sair fora. Não quero. Para criar, construir, edificar, não preciso de entrar numa frente dessas, eu consigo fazer de uma maneira muito mais brilhante, harmoniosa, muito mais satisfatória e sorridente, com a tal imagem, que ainda por cima, como tu já disseste, és conhecido como brincalhão, o divertido, o bem disposto. Então não quero. Faz lembrar aquela história: “Olha que giro, estás a ver este abismo? Salta que eu depois vou a seguir”. E o palerminha saltou, pronto, já não volta. Não, eu não quero isso para mim. Então não estou — salvo raras exceções, no sentido em que, naquilo que está ao teu alcance, tu tens de intervir, para segurança de terceiros ou para uma coisa qualquer. Agora, ir à procura, não, não quero. Isso e outras coisas. Por exemplo, eu sei que lido mal com uma coisa que é comum a quase todos os mortais, a falta de poder de resolução. Vou dar um exemplo: lido mal, foram quase duas noites sem dormir, por causa do que aconteceu com a Jéssica. E o que aconteceu com a Valentina? E o que aconteceu com 300 mil crianças? Se calha, só neste país. Não estou a descurar dos outros, ainda agora saiu uma notícia daquele menino que fez mudar a lei em Inglaterra, devido aos maus tratos, a violência gratuita e monstruosa e bárbara para com uma criança que, de repente, fica sem pernas. Estas coisas fazem-me confusão, mas eu não tenho poder de resolução. Vou falar — eu falo. Faço um post, faço uma carta aberta, mas às vezes ainda me revolta mais, porque não faz nada. Ou, por outra, eu não vejo acontecer nada. Estamos no século 21, eu sou pai — e mesmo não sendo pai, a coisa sempre me faria confusão, porque sempre fez.
O facto de ser pai, porque não era naquela altura, também lhe deu uma espécie de nova razão para não se permitir voltar a passar por aquilo?
Aí potenciou, foi o milagre dos milagres, mas isso eu vi mal a minha Nô nasceu. Tenho a noção de que, ao final de uma semana, olhei para mim mesmo no espelho, como se costuma dizer, e vi que não era o mesmo. A dada altura, interessei-me tanto — mas isto acho que é do senso comum e já ouvi relatos semelhantes — que, quando soube que ia ser pai, “queres ver que agora também estás a sentir as dores e o parto da mulher?”. Eu “engravidei”, tive más disposições, tive dores nos rins. Na última ecografia, a barriga estava enorme e era a última ecografia da Leonor. E eu saí de casa e disse “eu conduzo”. E quando cheguei ao carro começou-me a doer tanto que eu andava mais grávido do que ela, foi ela que levou o carro para o hospital e me ajudou a sair do carro e fomos os dois fazer a ecografia. E ela é testemunha.
A paternidade é então uma coisa que o muda e que o deixa mais atento para que isto não aconteça?
Não posso. Há quem não concorde muito com aquilo que eu vou dizer agora, mas eu tenho um dever para com aqueles dois seres, o dever de os guardar, salvaguardar, fazer crescer, de os levar até onde eu puder e até quando eu puder.
E isso obriga-o a cuidar de si.
Porque senão acontecem coisas tão terríveis como aquelas de que falei — e, dentro desse espectro, acontecem mais uma quantidade de derivados. E, se eu os quis, é para isto, eu tenho este dever para com eles.
Agradecimentos: Pestana Hotel Group
“Labirinto – Conversas sobre Saúde Mental” é uma série de entrevistas do Observador em parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento. Em cada conversa, os convidados — figuras públicas de várias áreas, da política ao entretenimento — fazem um relato pessoal e detalhado da forma como lidaram ou lidam ainda com problemas de saúde mental — os sintomas, os tratamentos, as recaídas e a recuperação — num esforço para combater o estigma associado a este tipo de doenças.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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