Vitorino Salomé lançou esta sexta-feira, 19 de abril, o seu novo álbum, Não sei do que é que se trata, mas não concordo! O título é o regresso a uma atitude eternamente inconformada, um espírito jovial de um músico com quase 82 anos, nascido e criado no seio de uma família musical e contestatária, no Alentejo profundo, a partir do qual haveria de descobrir o mundo.
Assistiu à transformação da sociedade ocidental quando se mudou para Paris em 1968, naquele que foi um ponto de viragem de dimensão internacional. Cantava nas ruas para fazer dinheiro, já envolvido com José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, José Mário Branco, Fausto e Sérgio Godinho.
Haveria de se tornar parte da formação ao vivo de Zeca Afonso, com o qual percorreu o país em ações clandestinas, até se dar a tão esperada madrugada do 25 de Abril de 1974. Vitorino preparava o seu primeiro disco, que haveria de ser lançado em Paris, mas com a revolução não mais voltou à capital francesa.
Viveu os tempos quentes do PREC, lançou em 1975 o seu primeiro álbum, logo com a versão de “Menina Estás à Janela”, e foi um dos músicos daquela geração que revisitaram as raízes musicais portuguesas para as transformar noutras coisas, na época da Reforma Agrária, em que o mundo rural fervilhava e em que estas canções se tornavam a banda sonora de uma revolução. Ao longo dos anos, atuou pelo mundo, colaborou com inúmeros artistas, gravou dezenas de projetos, tornou-se cada vez mais uma referência nacional.
A menos de dois meses de completar 82 anos, não dá sinais de abrandamento. Prepara-se para fazer uma série de concertos: o primeiro realizou-se esta sexta-feira no Fórum Luísa Todi, em Setúbal. A poucos dias do 50.º aniversário do 25 de Abril, entrevistámos Vitorino sobre o seu novo álbum, as suas memórias da ditadura e da revolução e o momento social e político que hoje vivemos.
[“Não sei do que é que se trata, mas não concordo”, a canção que dá título ao novo álbum de Vitorino”:]
Como é que começou a pensar neste álbum e como é que se deu a coincidência — que não será por acaso — de ele sair no mês em que se celebram os 50 anos do 25 de Abril?
Este álbum era para ter saído em 2020. Chegou a pandemia e atrasou-me quase quatro anos. De maneira que tive que renovar algumas sonoridades, retirei algumas canções e substituí por outras. Mas é um álbum fresco, está a sair do forno. Sabe, para mim, a preguiça é um hobby. E vou fazendo as coisas, com o tempo que me é confortável, e calhou em cima do cinquentenário do 25 de Abril. Ótimo.
O disco teve um pontapé de partida? O que é que desejava que ele tivesse quando começou a trabalhar nele?
Não tenho pontos de partida. O ponto de partida é uma canção. Os meus discos são mantas de retalhos, de propósito. E um disco é sempre completamente diferente do anterior. Por vezes é mesmo o antípoda, sobretudo na estética, e até nas capas. E ao partir de uma canção vou andando por aí. O caminhante não tem um caminho, o caminho faz-se a andar. É uma frase do Antonio Machado, um grande poeta espanhol.
Agora que o caminho deste disco está feito, numa fase em que pode olhar para trás e pensar nessa jornada, como é que descreveria o caminho deste álbum, até por oposição aos outros que fez ao longo da sua carreira?
O caminho fez-se mesmo a andar. Depois, por exemplo, apareceu o meu amigo António Lobo Antunes, há dois ou três anos, que me disse: tenho aqui 10 canções, vê lá. Ele dava-me aos punhados. E eu escolhi uma, que tem um texto lindíssimo e que foi título de um livro dele: Não é Meia Noite Quem Quer. Depois também me apareceu outro amigo — a minha música tem muito a ver com textos de amigos com quem tenho muita intimidade —, o Carlos Mota de Oliveira, com Uma Pontinha Por Ti, que é um texto maravilhoso e muito suave. De resto, os textos são quase todos meus — mas também passo por um texto da Florbela Espanca, poeta que me é muito querida e que, quando casou, foi viver para a vila do Redondo, de onde eu sou. Há uma grande ligação por causa disso, sempre foi uma inspiração. Segundo filhas de uma pessoa que a conheceu muito bem, ela andava de calças e fumava. Isto nos anos 30, numa vila alentejana profunda, era um fenómeno.
Normalmente, os textos originam as composições musicais? Ou por vezes é ao contrário?
Eu faço ao contrário, e às vezes ao mesmo tempo. Se formos ver, tudo o que dizemos pode ter música, se for preciso. O processo criativo não tem explicação, é escusado. Ou é um anjo que desce, ou são gnomos ou alguma andorinha. Mas o que aparece aparece e nós não fazemos esforço. Concentramo-nos um bocadinho na coisa e ela vem. E tenho uma vantagem, porque toco vagamente piano e o piano ensina-nos a tocar e a fazer canções. Tem lá as notas todas. O piano fornece e aquele é meu amigo.
Tem alguma espécie de rotina criativa?
Nada. Pratico o vagar. É ter vagar, ter tempo. Quando posso. Agora, por exemplo, ando numa lufa-lufa de entrevistas e concertos que começam nos próximos dias. São logo sete de seguida. De maneira que estou tramado. A minha preguiça não vai ser praticada.
Na altura em que lançou as primeiras músicas, quando deu os primeiros passos profissionais, sempre imaginou que iria continuar a fazer música?
Quando fui para Paris, inscrevi-me num curso de banda desenhada numa universidade que foi criada em 1968. Eu era um grande admirador do Charlie Hebdo, leitor viciado da banda desenhada francesa e espanhola. A portuguesa não era muito boa, mas agora é. Eu ia para isso, mas como não tinha grandes meios de subsistência, tocava — mal — viola e cantava o que me apetecia na rua. Mas já andava muito próximo do Zeca Afonso e do Adriano Correia de Oliveira, e depois encontrei-me com o José Mário Branco e o Sérgio Godinho em Paris. Comecei a cantar com um boliviano, que tocava muito bem guitarra, e as duas línguas chamavam sempre a atenção. Em 1968 ou 1969, havia poucos cantores de rua em Paris. E as pessoas gostavam muito. Paris já tinha muito turismo, desde o século XIX.
Antes da globalização como a conhecemos hoje.
Claro. Agora é horrível. Nunca voltes ao sítio onde foste feliz. E nunca mais lá porei os pés, a não ser que seja obrigado. E aquilo dava-me muito dinheiro. Punha uma boina no chão. O boliviano tinha grande qualidade, comigo tinha mais a ver com a curiosidade da língua. Vinham perguntar-me se era basco, se era húngaro…
O que é que cantava?
Muitas coisas do Zeca e modas alentejanas acompanhadas à guitarra. Adaptei-as, entre elas a Menina Estás à Janela.
Já aí?
Era uma das que resultavam muito bem. E outras, como a Fui Colher Uma Romã, que é muito bonita à guitarra. Entretanto, liguei-me muito aos cantores que estavam lá e fui fazendo sempre tudo muito de forma precária e amadora. Dei concertos de agitprop, agitação e propaganda contra o regime, que se podia fazer em França. Se bem que ali ao pé do Sena havia uma dezena de PIDES a verem os portugueses que lá estavam. Vinham falar com a gente, armados em hippies, e a gente topava logo: “tu és PIDE”. E a polícia francesa protegia-os. Naquele momento havia um movimento social e político muito forte em Paris. Havia muitos portugueses lá ligados ao Partido Comunista, sobretudo os alentejanos. O jornal Avante! era distribuído em Paris. Curiosamente, os minhotos denunciavam os alentejanos: “Ah, esse recebe o jornal”. São coisas da ideologia da igreja, porque normalmente os alentejanos são anti-clericais, é uma coisa centenária. E tornaram-se os mais vulneráveis às ideias sociais.
Sente que sempre teve essa consciência social e política, ao crescer?
Pois, o meu avô era republicano de caçadeira na mão. E os meus tios eram do Partido Comunista. De maneira que tenho esse passado. Por acaso tenho e absorvi-o porque, muitas vezes, os filhos e os netos tornam-se o oposto. Eles contavam muitas histórias da guerra civil de Espanha. A minha mãe é do Alandroal, que faz fronteira com Espanha, e o Redondo está a uns 14 quilómetros. E a guerra civil deixou muitos vestígios no Alentejo, muita gente que fugiu para cá e conseguiu não ser caçada pela Guarda Republicana para ser entregue para ser fuzilada em Badajoz. Mas essas feridas ficaram todas. Os franquistas convidavam os presidentes de câmara portugueses a irem assistir às matanças nas praças de touros. O do Redondo também ia.
E veio para Lisboa nos anos 60.
Sim, vim para a tropa, depois estive na escola de Belas-Artes de Lisboa.
Foi quando conheceu José Afonso?
Isso já foi na recruta, em Tavira. Conheci-o pessoalmente aí, mas já o tinha conhecido quando era estudante aqui em Lisboa, vi-o cantar com o Adriano. Mas na recruta fui ver um espetáculo dele à Casa do Povo de Olhão e estava anunciado como “Dr. José Afonso canta”. Julgava que iam cantar fados de Coimbra, mas ele cantava outras coisas. Sozinho, com guitarra, que tocava muito mal — como eu, que toco ainda pior.
Esse encontro e início de amizade foi determinante para si?
Foi, ficámos logo amigos. Eu já tocava guitarra, ele não sabia afinar a viola e houve um que veio dizer: “Olha, aquele ali sabe afinar.” E afinei-lhe a viola. Depois ficámos a falar com eles, eu disse-lhe que tocava e ele disse-me para eu aparecer na Fuzeta, porque ele era professor em Faro e acho que já vivia com a Zélia na Fuzeta. Iam muitos alentejanos para lá. E eu apareci com a guitarra, fomos falando e trabalhando, e ficámos ligados. Mesmo quando passou a tropa e isso tudo, fiquei muito ligado a ele. Depois, ele convidou-me para o acompanhar — mal — mas ele partilhava tudo. O que sabia, o conhecimento, a amizade, a proteção, porque ele era mais velho do que nós. E partilhava muito o microfone com os amigos todos que cantavam. Incluindo o meu irmão Janita, que fez escola com ele, andou 10 anos a acompanhá-lo.
Quando veio a Lisboa pela primeira vez, foi um choque grande, vindo do Redondo?
Tinha 15 anos, foi um choque incrível. Já quando fui do Redondo para Évora… Que coisa tão grande. E quando vi o mar pela primeira vez tinha nove anos, para aí. Isso então é que foi. Foi em Sesimbra. Não imaginava que o mar era assim. Nós ouvíamos coisas sobre o mar, é algo que está sempre presente na escola, e o mar ao vivo é algo completamente diferente do que um gaiato de nove anos imaginava. Foram dois choques de deslumbre. Chegando a Lisboa, vim do Barreiro de barco. O tamanho do rio já era enorme, já era um mar. E lembro-me das luzes, de chegar ao Barreiro e ver tudo iluminado. Perguntei ao meu tio: “Então mas aquilo ali é uma festa, não é?” E era, era sempre uma festa em Lisboa. Lisboa à noite, nos anos do Estado Novo, tinha uma boémia fortíssima e famosa. Muita prostituição. E o Parque Mayer, onde os portugueses adoravam a revista. Mais tarde, vim a conhecer isso.
Sente que esse ambiente também foi importante para si, até para se desenvolver artisticamente?
Muito, muito. Sempre fui curioso, e a música foi desabrochando. Tive a sorte de viver no meio de uma orquestra que era dos meus tios. Eram sete, e os meus irmãos mais velhos depois também começaram a tocar lá. E eu andava num colégio no Alandroal, tinha 10 anos e o meu quarto era por cima da sala onde eles ensaiavam. Era a coisa melhor que me acontecia.
Ouvia-se tudo?
Tudo. Ouvia os boleros. Eles iam comprar as partituras a Badajoz, que eram importadas de Cuba. Em Espanha havia orquestras belíssimas. E esses boleros todos ficaram-me no imaginário, e em 1999 fui gravá-los a Cuba, com o Septeto Habanero. A sorte que eu tive. E já sabia exatamente todos aqueles que queria gravar. O meu tio cantava-os. Foi maravilhoso, foi retomar a infância em triunfo. Foi uma aprendizagem da infância utilizada enquanto músico maduro, com cubanos mesmo, no estúdio onde foi gravado o Buena Vista Social Club.
Voltando aos anos 60: porque é que na altura decidiu ir para Paris?
Queria ir-me embora daqui, para um sítio qualquer.
Procurava a liberdade?
Sobretudo. Assim que passávamos para Badajoz, já era melhor. Mas os espanhóis ainda vinham chatear com o passaporte. Os nossos comboios e os deles tinham uma bitola diferente, Salazar tinha medo que houvesse uma invasão, eram os nossos inimigos estratégicos. Estávamos de costas voltadas para os espanhóis — e ainda estamos. Essa coisa dos nuestros hermanos…
Mesmo no seu contexto, ali tão próximo da fronteira?
Sim, sim. Os alentejanos tentavam roubar rebuçados e coisas aos espanhóis, porque eles roubaram-nos Olivença e temos sempre isso no nosso consciente histórico. Somos um povo muito estranho, somos o povo mais estranho da Europa.
Porque é que diz isso?
Tivemos um império que nunca conseguimos administrar. Tínhamos dois milhões de habitantes e já tínhamos ido à Índia e ao Brasil. E como é que se povoou aquilo tudo? Não se povoou. Foi fazer filhos na costa, com os escravos. E aquilo era tudo protegido pela Igreja, era quase por decreto. O D. Manuel e o Papa ainda fizeram alguns decretos a perdoar. Filho de português era cristão, cristão era soldado. A religião sobrepunha-se a tudo. E portugueses polígamos eram quase todos. Os espanhóis não, a expansão espanhola não se fez à custa de mulatos, de mistura. A nossa fez-se. Não há crioulo afro-espanhol e nós temos crioulos portugueses lindíssimos, o cabo-verdiano é muito bonito. E a maneira como os angolanos falam português é lindíssimo. E o Brasil é a mistura disso tudo. Isso tudo está no que faço, porque comecei a interessar-me pela História, a vivê-la e a transportá-la para os discos. Gravei muitos discos sobre o tema da expansão cultural, com uma perspetiva anti-colonial. O que a gente poderia ter ganho se tivéssemos dado as independências no tempo natural, como deram os ingleses… Os colonialistas são sempre obrigados a largar, mas nós fomos os últimos. Até nisso fomos estranhos e contracorrente civilizacional e culturalmente.
Estar em Paris foi outro deslumbre?
Sim, numa escala planetária. Ver miúdos a darem pedradas em farmácias, barricadas nas ruas, pessoas que não tinham medo da polícia… Porque aqui tínhamos muito medo da polícia, corríamos logo. E eles enfrentavam-nos. Vestiam-se para as barricadas, com ténis, uma bolsa com pedras, água e alguma coisa para comer. Culturalmente, isso desenvolveu Paris de uma maneira incrível. Porque os teatros foram ocupados, as universidades foram ocupadas, criaram-se universidades novas… Como a tal de banda desenhada, onde me inscrevi e depois nunca mais lá pus os pés. Porque comecei a cantar e dei prioridade ao cante.
E não era só a cidade em si, com toda a sua história, mas era também o momento.
Sim, tive sorte, cheguei mesmo enquanto aquilo estava a acontecer. E houve uma ressaca que se prolongou até aos anos 70, foi maravilhoso.
E nessa fase, quando teve acesso a outra realidade e liberdade, por vezes caótica mas livre…
Mas a liberdade caótica é a melhor. É o ponto alto da liberdade.
Começou logo a imaginar como é que um processo revolucionário se poderia dar em Portugal? Uma eventual revolta?
Houve duas crises estudantis aqui, sobretudo a de 1969, que fez isto abanar muito. Eu estive no movimento estudantil, não era líder de nada, mas conhecia os líderes da escola de Belas-Artes, que eram tipos muito inteligentes e cuidadosos, e a escola ia muito a Coimbra… Porque o ministro achou que éramos muito rebeldes e fechou a associação, não tínhamos associação. E essas crises mostraram que as coisas iam mudar quase de certeza, porque aquilo começou a fervilhar, o movimento estudantil português era muito forte e estruturado. E, quando o Presidente da República foi a Coimbra e um estudante pediu a palavra para falar com ele… Estes gajos estão tramados. Prenderam-no logo, claro, prendiam toda a gente. Iam logo para a tropa e, depois, para a guerra colonial. A PIDE estava fortemente em África, era nojento. Ia buscar os prisioneiros negros e muitos soldados não deixavam, para que eles não fossem torturados. O meu irmão Janita teve um desses problemas com a PIDE, ainda apontou a G3 a um. Ele viu que os soldados estavam loucos e acalmou-se. Mas isso já era o princípio do fim. Sentia-se uma decadência e até um certo descuido da repressão.
E volta quando para Portugal?
Eu ia e vinha, porque não era desertor. Tinha capacidade de voltar, mas passava muito tempo em Paris.
Mas quando é que voltou definitivamente?
Quando foi o 25 de Abril, por acaso estava em Portugal. E já não voltei. Na altura estava a gravar o meu primeiro disco em Paris e a organizá-lo para ser lançado lá. A capa ainda foi feita lá, mas por um pintor português. E aquelas canções que saíram naquele que se tornou o meu primeiro álbum, em 1975, eram as que eu já tinha preparado em 1973 ou 1974.
Como foi o seu 25 de Abril de 1974?
Foi espantoso. Tinha vindo da boémia, passei pelo Terreiro do Paço de madrugada e vi um movimento muito estranho. Carros de combate… Pensámos logo: o Caetano está a fazer um golpe para afirmar o regime, porque já tinha existido o golpe de 16 de março. E, no dia 29 de março, tinha havido os prémios da imprensa, onde se cantou a Grândola Vila Morena pela primeira vez em público, no Coliseu. Eu e o Fausto cantávamos e tocávamos com o Zeca. Foi empolgante, com toda a gente a cantar. Aí já havia quase uma certeza do que iria acontecer, porque aquilo estava cheio de pides e de militares. E a Censura já não conseguiu censurar as canções, tentaram mas estavam a hesitar. Havia muita polícia cá fora, mas estavam cuidadosos. Nós já tínhamos ido a muitas reuniões e ações clandestinas para cantar. Algumas ainda não posso dizer onde foram.
Ainda não?
Não, repare que isto vai voltar para trás, e há muita gente viva desse tempo. Gente que nos acolheu, que agora está aí bem, e até poderia ser surpreendente. Houve situações fantásticas de latifundiários do Ribatejo a fazerem reuniões onde íamos nós e o embaixador de Cuba. Aquilo era muito interessante e muito bem feito, porque a PIDE não topou, se não estávamos entalados. Mas o Zeca ainda chegou a ser preso, foram buscá-lo a casa. Nesse dia eu estava em Paris. Mas notava-se que… Por vezes o fim dos impérios é muito sanguinário, doloroso… Aqui poderia ter sido, mas não foi, foi com flores. Outra característica rara dos portugueses. Quando foi o 16 de março, estávamos a cantar em Madrid com o Zeca. Fui à rua comprar o jornal — sou viciado em jornais de papel — e o ABC de Madrid dizia “golpe de estado em Portugal”. “Ai, caraças, Zeca”. O Zeca disse logo: “pronto, já não podemos voltar”. Começámos a organizar-nos para ficarmos no exílio, porque achámos que iam fechar as fronteiras. Acho que não chegaram a fechar, porque dois ou três dias depois voltámos.
E, no dia 25 de Abril, apercebendo-se dessa movimentação, ficou na rua?
Fiquei na rua, não dormi para aí durante oito dias. Assisti a coisas muito importantes. Estava no Largo do Carmo quando o Salgueiro Maia disparou uma rajada contra o quartel da GNR e isso foi logo uma alegria. E estive ao pé de um canhão apontado à sede da PIDE, que ainda tinha lá os pides dentro, e eu e outro amigo da escola dissemos-lhes: “disparem isso, pá, olhem os filhos da puta na janela”. E eles ainda mataram várias pessoas. Eu estava ao pé da Brasileira quando ouvi uma rajada de metralhadora. Pus-me logo atrás de um poste. Mas só depois soubemos que tinham matado pessoas. E o gajo não disparou o canhão, mas não podiam porque havia lá presos nas celas. Foi uma coisa deslumbrante. E os estrangeiros, da imprensa, que chegaram em magote no outro dia ficaram completamente: mas o que é isto? Um exército cheio de cravos ao peito e nas espingardas? Foi uma coisa única no mundo, uma revolução cheia de flores, e não teve muitas vítimas. O 25 de Novembro é que esteve para descambar muito, mas também não posso falar disso.
Os músicos de intervenção sentiam que eram parte ativa desse movimento anti-regime, que tinha diferentes núcleos na sociedade? Havia esse sentido de pertença?
Fomos a banda sonora viva, durante 10 anos, da revolução. E foi quando se redescobriu a música rural portuguesa, a música do interior. Hoje é como disse, vou fazendo as coisas… Na altura, voltámos às raízes e transformámo-las. Havia grupos por toda a parte. E as mulheres alentejanas vingaram-se, porque não cantavam com os homens e era uma questão falsa, porque antes do Estado Novo elas cantavam com os homens, não havia grupos só de homens. O António Ferro tinha o Mussolini à secretária e começou a tomar conta do espaço cultural português. Engavetou tudo: no Algarve dança-se o corridinho, no Alentejo canta-se aquela coisa que é muito chata — dizia ele —, nas Beiras canta-se com um adufe, no Ribatejo é o fandango, o vira do Minho e os pauliteiros em Trás-os-Montes. E foram 48 anos de separação entre homens e mulheres, até na escola. Porque, na Primeira República, havia um ensino misto. A minha mãe andou na escola com amigos dela. Até o nosso fascismo foi à portuguesa.
A recuperação das raízes tradicionais da música portuguesa que mencionava é indissociável desse período revolucionário?
O período revolucionário faz-nos voltar ao mundo rural.
Com a Reforma Agrária…
Sim, foi um grande manancial para o cancioneiro do 25 de Abril. Já antes havia um homem fantástico, o Michel Giacometti, que era muito amigo do maestro Lopes-Graça, que fez recolhas fantásticas da música rural, do interior português. E lembro-me de eles terem ido ao Redondo recolher, nos anos 60, um cante religioso lindíssimo que existe na Semana Santa do Redondo, que ainda se conserva. Porque, depois, a esquerda apanhou isso e tentou manter a procissão — e o padre começou a proibi-la. Há 40 anos ele proibiu uma procissão que era só de homens porque eles eram todos comunistas. No Redondo ganhava o Partido Comunista com maioria absoluta. E o cabrão do padre e o arcebispo proibiram a procissão. Mas nós fazemo-la até agora, fizemo-la sempre sem o padre. E vão sempre para o Redondo padres anti-comunistas, para irem como missionários para o mundo comunista, que já não o é. Agora podem encontrar lá uns 600 gaiatos que são do Chega, que normalmente serão netos de tipos que fizeram a Reforma Agrária.
Como é que olha para o momento político que vivemos?
Tenho quase 82 anos, estou muito estruturado. Sei rigorosamente o que quero e reconheço os erros que a esquerda cometeu para chegar onde está. E também porque o mundo, culturalmente, é sempre ondulado. Houve o Maio de 1968 que revolucionou o mundo, ao mesmo tempo que havia o movimento hippie contra a guerra no Vietname, e foi quando se deu a melhor música do planeta, com Woodstock a ser a cereja no topo do bolo. E agora é das mais decadentes, não vem música boa dali. A música anglo-saxónica está completamente decadente e esmagou as músicas locais dos outros países. Tornou-se muito dominante porque era o showbizz. E a música anglo-saxónica esmagou a música portuguesa de tal maneira que, nos anos 90, eu pertencia a uma das comissões do Parlamento e teve que se fazer uma lei que obrigava as rádios a passarem música portuguesa. Isso não existe em Espanha, nem em França.
Mas não sente que em Portugal tem havido uma certa recuperação da música portuguesa, até com a própria língua a ser cada vez mais utilizada?
É muito lento, mas estão a recuperar. O imaginário poético português é único, temos que cuidar dele e tentar exportá-lo. Mas o poder em Portugal depois do 25 de Abril não sabia o que tinha em mãos, esta cultura fortíssima, e deixou-a quase desmoronar-se. Não se desmorona porque nós, portugueses, somos bastante rurais — temos uma cozinha rural fortíssima que de repente também ficou na moda. Ainda há tascas muito boas. Uma muito interessante tem um nome extraordinário, que é no caminho de Chelas: Não Venhas Tarde. E os turistas gostam é de sardinhas assadas com galões. Não há uma consciência ou um pensamento cultural sobre o turismo em Portugal.
Politicamente, sente-se de algum modo desiludido com a forma como as coisas se desenrolaram em Portugal ao longo dos últimos 50 anos?
Conheço a história de Portugal porque fui observador e vivi-a muito. Em 1920, 10 anos depois, já estavam a matar os tipos que tinham feito a república. Mataram o Machado Santos contra a parede no Intendente — e outros. Nós somos assim. E aqui, no 25 de Novembro, não fuzilaram porque não calhou. Foi por um triz. E Portugal tem movimentos reacionários profundos, estruturados na igreja e na cultura eclesiástica rural do interior.
Mas sente isso no Alentejo?
No Alentejo não é eclesiástico, mas é de contra-reforma, contra-revolução. Porque conheci muitos miúdos cujos pais fizeram a Reforma Agrária e rapidamente eles estavam contra eles. Temos esse lado venal, de quando se está num caminho de desenvolvimento, há sempre uma força que o contraria. Está a acontecer agora subtilmente. Estou-me a lembrar que o Marquês de Pombal impulsionou uma era de grande pujança, avançada, porque enfrentou a Igreja; mas, assim que o rei morreu, a filha repôs tudo. Enviou-o para Pombal e só não o matou porque o rei lhe pediu para não o matar, à hora da morte.
Ou seja, isto é cíclico?
E são muito curtos. E os longos são sempre muito dolorosos. O absolutismo ficou até muito tarde em Portugal. E teve ressacas.
E identifica paralelismos entre esses episódios e o que vivemos hoje?
A nossa história é essa. O país dividiu-se com os liberais e os absolutistas e houve uma grande violência política. Matou-se muita gente à queima-roupa. E foi no século XIX.
Mas, apesar dos ciclos que se repetem, as mudanças políticas recentes foram surpreendentes para si?
Não, porque vi a ascensão em França, em Itália… Mas somos a ponta do lago. A pedra cai no meio e demora mais a chegar aqui, e a onda chega mais devagar. É mais suave em tudo. Somos um povo maravilhoso. Somos do género: deixa-os pousar. E, depois, às vezes, pousam. E eles estão agora no esplendor, estão lá em cima. Mas nas próximas eleições já se vai sentir uma diferença, por incapacidade da organização que está com 50 deputados no Parlamento mas só tem um que fala. Isso nunca corre bem. Basta esse cair em desgraça ou…
Acredita que este é o apogeu do Chega?
Sim, sim. Ele está a procurar desestabilizar para ver se vai ainda mais para cima, mas suponho que o Partido Socialista terá a inteligência — tem lá gente nova agora, com outras ideias, mais atualizadas, e acredito que o Pedro Nuno Santos vá segurar aquilo de maneira a que não descambe depressa. Parece-me que ele está a ter paciência. Agora, o PSD… metade tem muita vontade de se juntar ao Chega e rebentar com tudo. O Passos Coelho revelou-se agora, de uma maneira muito perigosa, mas a gente já sabia que ele era assim. Mas isto é sempre passageiro. Estamos a viver o apogeu da direita portuguesa. Não consegue escalar mais porque, se não, o povo do outro lado também se assusta.
Como olha para a situação no Alentejo, para a transição de votos da esquerda para a direita?
A história repete-se sempre, mesmo que de outra maneira. Vai haver uma ressaca, haverá uma recuperação, se houver cuidado nas políticas da esquerda portuguesa. Porque a esquerda tradicional está a desaparecer na Europa quase toda e aqui ainda havia um Partido Comunista que tem muita influência cultural. Mas a história é implacável, não vai conseguir remar mais. A outra esquerda que se está a formar, que é mais suave e mais de causas que se podem chamar ativistas, são de ação noutro sentido e vamos ficando assim até haver uma esquerda social-democrata que segure isto. A social-democracia do norte da Europa também está infiltrada de extrema-direita e era uma coisa impensável. Mas isso tem a ver com a imigração. A Europa vai sofrer muito com a ressaca do colonialismo. Criámos os impérios, esmagámos aqueles povos todos de uma maneira horrível, e agora temos o retorno disso tudo.
Com quase 82 anos de vida, quantos é que conta de carreira?
Não conto, porque em miúdo já integrava bandas e fiz muita coisa antes do 25 de Abril, antes de lançar um disco. Nasci na música, foi uma sorte. O meu avô tocava concertina e bandolim. Os filhos dele também tocavam todos instrumentos. Eu e os meus irmãos também. E o meu sobrinho António Salomé estreou-se há menos de um mês, no dia em que fez 50 anos que eu me estreei no Coliseu dos Recreios, a cantar Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira. Tem 19 anos. O legado já aí está.
Que relação é que acredita que construiu ao longo de todos estes anos com os portugueses?
Tive sempre uma boa relação com os portugueses, e gosto muito de ser português. Nisso sou mesmo decadente. Sou tuga, mesmo. Tuga até às botas. A gente saía muito para o estrangeiro com o Zeca, sobretudo a seguir ao 25 de Abril, e viajei muito para o antigo império português, queriam-nos lá. Fomos até Macau, fomos à Índia — onde os cristãos têm procissões quase iguais às do Redondo —, estivemos nas grandes cidades europeias, e quando vínhamos aterrávamos na Portela e pensávamos: isto é tão pequenino. Ainda havia poucos automóveis. “Isto é tão bom, gosto mesmo disto”, dizia o Zeca. E o António Lobo Antunes, que só conheci mais tarde, curiosamente tem a mesma opinião. Acha que Portugal é o melhor país do mundo. Eu também acho — ainda é. A gente tem coisas que ninguém tem.
Como, por exemplo?
Ainda se comem gaspachos maravilhosos no Alentejo. No Minho há um cabrito no forno que tem um arroz por baixo, num recipiente especial, com um vinho Alvarinho que é muito melhor do que um champanhe. Isso ainda está presente na nossa cultura. Ao pé de Beja ainda se come umas migas com pão, tão bom, tão bom. Há uma aldeia ao pé do Redondo que tem uma mulher que só faz pão uma vez por semana — é a tal coisa do vagar — e o Janita vai lá sempre, à aldeia da Venda. Ainda temos isso. Também há ali uns queijos de cabra nas Hortinhas. Isso acho que ninguém nos tira.
E o que é que mudava, se pudesse?
Acho que as elites portuguesas, que não são elites… O poder português é cada vez mais decadente e inculto. Não são elites, são governantes. Vão para o poder pelo poder. Mentem tanto, tanto. E não era preciso.
Houve alguma coisa que achava que iria acontecer no pós-25 de Abril e que, infelizmente, ainda não se proporcionou? O que é que ficou por fazer?
Não aconteceu por incapacidade dos dirigentes. Por exemplo, foi criado o Serviço Nacional de Saúde, mas não deveria estar tão desprotegido. Era isso que eu gostava de ver melhorado: a escola, a habitação, a cultura, a saúde. O pão a malta ainda vai conseguindo, mas já há muita gente que passa mal, inclusive os imigrantes asiáticos ou africanos que para cá vêm. E um país da Europa civilizada não deveria permitir que vivessem naquela miséria.
Pessoalmente, sente que lhe falta fazer alguma coisa?
Acho que já fiz tudo, mas vou sempre fazendo alguma coisa. Tenho uma casa de madeira lá no meio do Alentejo. Queria ter vagar de voltar para lá, porque faço tiro com arco. Gostava muito do Robin Hood. E gosto de estar lá com o meu arco e as minhas flechas a atirar de uma cadeira, e a beber um copinho de vinho. Vou fazer isso, mas nunca é definitivo, porque a música é muito apelativa. E é para continuar. Devo ser o cantor português mais velho no ativo — eu e o José Cid. O que me ajudou a manter-me fisicamente foi o kendo, a arte marcial japonesa em que se usa aquelas espadas lindíssimas. Na próxima revolução, vou para a barricada de katana.