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A multidão que esperava o Presidente Vladimir Putin naquela base militar em Vidyayevo, no Círculo Ártico, estava agitada. Eram quase todos familiares dos 118 marinheiros que tripulavam o submarino Kursk, que se afundou num acidente mal explicado. Putin, que tinha sido eleito Presidente há apenas três meses, foi ali para os enfrentar e a receção foi, como seria de esperar, de angústia e revolta. “Quando é que os teremos de volta, vivos ou mortos? Responda como, Presidente!”, gritou-lhe uma mulher visivelmente transtornada, num momento captado pelas câmaras de televisão. “Irei responder-lhe assim que eu próprio souber”, disse Putin.
O encontro foi em clima febril, como já indiciavam as reações das famílias nos dias anteriores, enquanto aguardavam notícias sobre o paradeiro do submarino desaparecido. “Eles ganham 50 dólares por mês e agora estão presos naquela lata de conservas. Foi para isto que eu o criei?”, revoltara-se uma mãe num encontro com o vice-primeiro-ministro em que acabou sedada e transportada para fora dali por militares.
Foi provavelmente a única vez que Putin se encontrou com familiares de militares russos sem ser em ambiente controlado. E foi também uma das poucas vezes em que as televisões do país captaram o desespero de mães, mulheres e outros familiares de soldados da Rússia, questionando diretamente os responsáveis do país.
Agora, quando a Rússia está a combater uma guerra em território ucraniano e milhares de soldados foram mobilizados para o país vizinho, surgem novos murmúrios de descontentamento de pessoas na mesma posição, na maioria mulheres. Logo em março, menos de um mês depois do início da invasão, uma mulher usou uma reunião pública em Kuzbass, na Sibéria, para denunciar o “engano” de que diz ter sido vítima. “Enviaram-nos como carne para canhão”, gritou. “Eles não estão preparados.”
À altura, alegadamente apenas com soldados profissionais a combater no terreno, reclamações como a sua ainda eram raras. Com a mobilização nacional ordenada por Putin em setembro, porém, a guerra bateu à porta de mais famílias e os protestos começaram a disseminar-se. No Daguestão, mães gritaram nas ruas “Não à guerra” e garantiram que os seus filhos “não são fertilizante”. Em São Petersburgo, dezenas de mulheres acamparam à porta do edifício do Distrito Militar Ocidental para entregar cartas aos responsáveis nacionais.
Denunciam a falta de treino militar, o equipamento deficiente, os erros na mobilização de pessoal sem experiência. Algumas questionam a morte dos filhos e maridos, pelo menos cem deles ainda antes de terem chegado à Ucrânia, vítimas de um Exército onde o álcool, a brutalidade e o suicídio são endémicos. Poucas lamentam em público as mortes em combate, apesar de os caixões já terem começado a chegar à Rússia. Quantos não se sabe ao certo. Mas o número de famílias afetadas diretamente pela guerra é já elevado.
“Com a mobilização, temos um aumento substancial de famílias com membros a servir no Exército. É difícil saber o número exato, mas mesmo se estimarmos por baixo estamos a falar de umas quantas centenas de milhares de famílias com filhos, maridos ou irmãos afetados. É um número potencialmente enorme”, resume ao Observador Adam Lenton, professor da Universidade George Washington especializado na política interna russa.
“Enquanto que até 2022 e durante os primeiros meses da guerra quem combatia eram sobretudo soldados profissionais, agora vemos cidadãos comuns a serem chamados”, acrescenta. “Parte do modus operandi do Kremlin tem sido tentar manter o público afastado dos efeitos da guerra — pelo menos o suficiente para que as pessoas continuem focadas nas suas vidas, apoiem implicitamente o Kremlin e não protestem. Agora, a longo-prazo, isso será mais difícil.”
“Partilhamos a vossa dor”. Putin encontra-se com mães de soldados “escolhidas a dedo”
Precisamente para fazer contenção dos danos, o Presidente Vladimir Putin encontrou-se com mães de soldados russos na semana passada, a propósito do Dia da Mãe, que na Rússia se assinala a 27 de novembro. “Quero dizer-vos que eu, pessoalmente, bem como toda a liderança do país, partilhamos a vossa dor”, disse-lhes.
https://twitter.com/TpyxaNews/status/1596120163031879680
Desta vez, contudo, não houve gritos inflamados como aquando do encontro pós-Kursk. Consigo não estiveram grupos de mães selecionados ao acaso. O Moscow Times identificou algumas das presentes e concluiu que quase todas são próximas do Kremlin: ali estavam, por exemplo, Zharadt Aguyeva, mãe de dois filhos a combater na Ucrânia, um deles muito próximo do líder checheno Ramzan Kadyrov; Olesya Shigina, produtora de filmes próximos do regime; ou Olga Beltseva, deputada municipal de Moscovo do partido Rússia Unida, de Putin.
“Ele sentiu necessidade de organizar este encontro para aplacar o descontentamento real de mulheres e mães dos mobiks [soldados mobilizados] e a simpatia pública que existe por elas”, afirma ao Observador Jade McGlynn, professora da Universidade de Oxford e autora do livro Putin’s War (sem edição em português).
“Estes encontros com mães ‘escolhidas a dedo’ mostram ao público que ele está a fazer alguma coisa, mas também sinaliza como é que elas se devem comportar — como as mulheres nestes encontros e não protestando. O Kremlin não está, de todo, aberto ao escrutínio. As perguntas dos familiares são muitas vezes respondidas com a ideia de que estes rapazes pertencem ao Estado, não às famílias.”
O escrutínio, porém, existe. O Conselho de Mulheres e Mães — uma organização herdeira da histórica associação de familiares de soldados que teve um papel de relevo durante a Guerra do Afeganistão e os conflitos na Chechénia — denunciou o facto de não ter sido convidado para este encontro. “Vladimir Vladimirovich, és um homem ou quê? Tens coragem suficiente para olhar nos nossos olhos — abertamente, num encontro com mulheres que não foram previamente escolhidas?”, questionou nas redes sociais Olga Tsukanova, membro do grupo.
Não tardou a que a página do Conselho na rede social VKontakte, popular na Rússia, fosse banida. E o cerco pode apertar ainda mais a este tipo de organizações, como relembra Adam Lenton: “A reunião aconteceu dias antes de entrar em vigor a nova lei sobre os Agentes Estrangeiros, a 1 de dezembro”, diz, referindo-se à lei que agora declara como “Agente Estrangeiro” qualquer organização que esteja sob “influência estrangeira” — e não apenas por ser financiada por fundos estrangeiros, como até aqui. “Isto alarga o âmbito da lei e um dos potenciais alvos são estes grupos da sociedade civil de membros da família de soldados.”
Uma reação a um movimento social que tem o seu peso. Segundo a organização OVD-Info, que recolhe informações sobre a participação em protestos, quase metade dos participantes nas manifestações contra a mobilização em setembro eram mulheres. No ano passado, constituíam apenas 25% dos participantes.
Jade McGlynn alerta, porém, que os protestos têm para já um foco muito definido, relacionado com a falta de equipamento e treino dos soldados. “Não são manifestações contra a guerra ou contra a matança dos ucranianos per se”, avisa. Mas, lembra o professor Lenton, têm um impacto concreto que outros protestos não têm: “Os russos que têm tendência a manterem-se indiferentes à guerra tendem a sentir-se mais chocados com a repressão sobre os protestos de mães do que, por exemplo, sobre apoiantes de [Alexey] Navalny. Os protestos recentes no Cáucaso Norte foram em parte inflamados por vídeos que circularam no Telegram de brutalidade policial sobre mulheres.”
As mães que questionaram a “Pátria Mãe” durante o Afeganistão e que viajaram até à Chechénia para trazer os filhos de volta
Uma reação que ocorre num quadro mental específico da Rússia. A imagem da mãe do soldado sempre teve um lugar especial na narrativa coletiva do país, onde a expressão “Pátria Mãe” é tão amplamente invocada.
Julie Elkner, académica que se debruçou sobre o papel do Conselho de Mulheres e Mães durante a Guerra do Afeganistão, resumiu essa imagem como “o romance do jovem recruta a servir em regiões remotas do país, a cumprir o seu dever segredo à Patria Mãe, atingindo a idade adulta ao enfrentar as dificuldades, sustido pela memória de casa e, mais importante, da sua mãe”.
O momento da separação da mãe antes de ir para a guerra, diz esta académica, é “um momento-chave”. “Essas separações prestam tributo à sublimação dos instintos maternais e a pungência dos sentimentos contraditórios da mãe, triste mas orgulhosa de ver o seu filho tornar-se um homem a cumprir a sua missão de defender o Estado soviético.”
Foi por existir todo o contexto que os protestos das mães durante a Guerra do Afeganistão tiveram tanto impacto na opinião pública, durante um conflito do qual pouco se sabia na Rússia, a não ser de que os caixões de zinco dos soldados chegavam selados. Um drama captado pela Nobel da literatura Svetlana Alexievich na sua obra Rapazes de Zinco (ed. Elsinore), para a qual entrevistou dezenas de mães de soldados.
“Às vezes penso que sim, que ele é um herói e que há tantos heróis naquele cemitério, outras vezes amaldiçoo o Governo e o Partido”, confessou-lhe uma dessas mães. “E, no entanto, eu própria lhe ensinei que ‘O dever é o dever, meu querido. Temos de cumprir o nosso dever’. À noite amaldiçoo-os a todos, mas de manhã corro para o cemitério, ajoelho-me em frente à sua campa e peço-lhe que me perdoe. ‘Perdoa-me, meu querido, por ter falado assim. Perdoa-me.”
O cenário repetiu-se durante as guerras da Chechénia com a agravante de, como lembra o antigo correspondente na União Soviética Steve LeVine, “ser em solo russo e não numa terra estrangeira”. “De toda a Rússia, mães de jovens recrutados pelo Exército russo para combater na Chechénia chegavam para resgatar os seus filhos”, conta em The Putin’s Labyrinth (sem edição em português). Centenas de mães viajaram até àquela república do Cáucaso para trazer os filhos de volta, vivos ou mortos.
Será a situação atual semelhante? A professora McGlynn pensa que a mobilização está a fazer com que “as mães e as mulheres voltem a assumir um papel importante” na Rússia. “Contudo, a sociedade civil e os media estão agora muito mais reprimidos do que eram”, avisa, comparando o momento atual com a abertura da glasnost durante a Guerra do Afeganistão e a liberalização da década de 1990 em que ocorreram as guerras na Chechénia. “Mas claro que o Kremlin vai estar atento às mulheres e às mães, porque elas sempre tiveram um impacto no sentimento da sociedade durante uma guerra.”
Uma “nova sociedade” russa leva as mães a protestarem contra a falta de equipamento — mas não contra a chegada dos caixões
A tendência está lá e foi captada por um dos observadores mais atentos da realidade russa desde o início da invasão à Ucrânia, o Institute for the Study of War. “Os russos estão crescentemente a usar várias plataformas nas redes sociais para expressar a sua insatisfação com os problemas da mobilização, um fenómeno que tem todos os ingredientes para desencadear movimentos organizados com base online na Rússia”, escreveu o grupo há algumas semanas.
“O ISW observou múltiplas instâncias em que mulheres e mães de pessoal militar russo defenderam os seus familiares tentando contactar responsáveis locais e bloggers militares proeminentes desde o início da mobilização parcial em setembro. A falha do Ministério da Defesa russo em responder a estes problemas sistémicos e às suas causas vai provavelmente exacerbar estas tensões sociais ao longo da guerra.”
As poucas sondagens independentes que saem da Rússia já demonstram um menor apoio à “operação militar especial” na Ucrânia, com o Levada Center a destacar uma queda de 73% para 57% de apoio à guerra em setembro. “Isto é relutância pura em participar pessoalmente na guerra”, descreveu o diretor do centro, Denis Volkov, ao site Meduza. “Continuam a apoiá-la, mas têm muito pouca vontade de participar nela.”
Esse sentimento é captado até pela cúpula mais próxima do Kremlin. Margarita Simonyan, diretora do canal RT e conhecida comentadora pró-Kremlin, tem denunciado na televisão os erros do processo de mobilização, colocando a culpa nos administradores regionais. “Acham mesmo que Putin, que nem queria enviar recrutas para a Ucrânia, quer enviar cabeleireiros, cardiologistas, pessoas com problemas de costas?”, questionou recentemente.
Uma estratégia que, para os especialistas consultados pelo Observador, tem um propósito bem definido: “Esta é uma forma de canalizar o descontentamento, garantindo que os protestos se mantêm dentro do statu quo”, diz Jade McGlynn. “Ou seja, que não são contra Putin, mas contra os administradores que não fizeram bem o seu trabalho. E que as críticas não são contra a guerra, mas sim contra a falta de equipamento e de treino.”
Por agora, o foco dos protestos tem sido, de facto, esse. “Faço-lhe as malas para a operação especial como lhe fazia para o campo de férias: com termos, meias, roupa interior, já para não falar da carne enlatada”, terá dito uma mãe a uma deputada para se queixar da falta de condições no Exército. No Telegram, uma militar denuncia como as famílias têm sido fulcrais para lidar com a falta de equipamento básico: “Peçam às namoradas, mulheres, mães, pensos higiénicos e tampões, dos mais baratos. Sabem para que servem os tampões? Quando há um ferimento de bala, enfiam o tampão, ele começa a inchar e aguenta o braço. Acreditem, sei disto desde o tempo da Chechénia.”
“Muitas das queixas têm-se focado na falta de organização e pouco treino e equipamento para os soldados. No geral, as críticas são dirigidas ao Kremlin, em particular ao Ministério da Defesa, não por levar a cabo uma guerra, mas por não o estar a fazer bem”, diz Adam Lenton. “Portanto isto pode agitar a sociedade civil, mas não há nenhuma garantia de que as iniciativas sejam todas a favor da paz. Pelo contrário.”
A situação é, por isso, diferente do que aconteceu na Guerra do Afeganistão ou nas Guerras da Chechénia, alerta inclusivamente Ella Polyakova, da organização Mães de Soldados de São Petersburgo. “Durante as guerras da Chechénia, as pessoas tinham de se desenrascar e não tinham medo. Só tinham medo de perder a vida. Agora, não há nada que impeça as mães e mulheres de perderem o medo e darem o passo [de ir procurar os filhos e maridos à Ucrânia]. Mas estão a pedir autorização”, disse ao Meduza. Uma mudança que, diz, se justifica pelo “novo tipo de sociedade” que existe na Rússia atual.
Uma opinião partilhada por Jade McGlynn, que frisa como a maioria dos russos não se opõe à guerra, desde que esta não os afete pessoalmente. “Não devemos esperar protestos anti-guerra [das mães], mas apenas protestos contra esta ou aquela estratégia. A ideia de que há uma oposição liberal democrática na Rússia, com apoio popular, à espera do seu momento é um conto de fadas.”
E não é por esta guerra estar a afetar menos a população russa do que as outras. Se na guerra do Afeganistão morreram 10 a 15 mil soldados russos, neste momento as estimativas falam em 50 mil militares do país que já terão perdido a vida na Ucrânia. Razão pela qual alguns familiares, como a mãe de um soldado que falou à BBC, preveem uma reação popular à medida que mais e mais caixões chegam à Rússia: “Se as mães de todos os soldados que estão a combater, bem como as que perderam filhos, se erguessem, conseguem imaginar o tamanho que esse Exército teria? Elas vão fazê-lo, a certa altura vão-se passar.”
Os que seguem atentamente as dinâmicas da sociedade russa, porém, têm dúvidas. “A verdade é que não sabemos ao certo como é que a mobilização vai ser interpretada”, desabafa Adam Lenton ao Observador. “A longo-prazo, não vejo como é que o aumento do número de mortes possa levar a um aumento de apoio à guerra, mas isso continua a ser uma possibilidade.”
É que a Rússia de 2022 já não é igual à Rússia do tempo do Afeganistão ou da Chechénia. A começar pelos media controlados pelo Estado, que hoje em dia nunca diriam o mesmo que disse o jornalista Sergei Dorenko no ano 2000, a propósito da tragédia do Kursk: “O governo não nos respeita e está a mentir. E trata-nos assim porque o permitimos”, declarou.
Da mesma forma, nos tempos da guerra na Ucrânia, ainda não assistimos a uma mãe de um soldado perguntar a Putin quando terá o filho de volta em direto na televisão. Porque, em vez disso, Vladimir Vladimirovich agora só se reúne à porta fechada com mães da sua confiança.