Com uma passada larga e firme, Wole Soyinka entrou no local do hotel em Óbidos onde a entrevista com o Observador tinha sido marcada. Um gigante das letras africanas, Soyinka é um gigante em pessoa. Alto, magro e com uma voz grave que impressiona, ninguém lhe dá os 88 anos que completou no passado mês de julho. Puxou uma cadeira, sentou-se; pediu um café e entrelaçou os dedos: “Vamos começar”.
Wole Soyinka nasceu em 1934, em Abeokuta, numa Nigéria muito diferente da atual, como faz questão de lembrar. Formado em literatura nas universidades de Ibadan e Leeds, trabalhou no Royal Court Theatre, em Londres, numa altura em que começou a escrever e produzir as primeiras peças. É no teatro que ainda hoje se sente mais confortável, mas ao longo da sua carreira explorou praticamente quase todos os géneros literários: o ensaio, a poesia e às vezes o romance. Todos os seus textos abordam a questão colonial, mas é à denúncia dos poderes totalitários que se tem sobretudo dedicado.
Soyinka era um jovem quando os movimentos independentistas começaram a florescer um pouco por todo o continente africano. Em entrevista ao Observador, lembrou esse período de esperança, durante o qual se tornou uma voz ativa na campanha pela independência do seu país, alcançada em 1960. Como aconteceu como muitos países africanos, a transição para a democracia na Nigéria foi tumultuosa e Soyinka chocou com as forças políticas que lutavam pelo poder. Em 1967, durante a Guerra Civil, considerada uma das mais mortíferas da história moderna, foi preso por ordem do governo do general Yakubu Gowon e colocado numa solitária, onde passou dois anos fazendo contas de matemática no chão da cela para não enlouquecer.
O seu mais recente livro, Crónicas do Lugar do Povo mais Feliz da Terra, é uma dura sátira sobre a Nigéria atual, mas também sobre a sua história, marcada por tristes incidentes que em nada orgulham quem um dia pensou que o sonho da democracia era atingível. É o primeiro romance de Soyinka em quase 50 anos. Em entrevista ao Observador, o primeiro escritor africano a receber o Prémio Nobel da Literatura, em 1987, explicou que necessitava de espaço para desenvolver um grupo alargado de personagens que lhe permitissem denunciar o que se passa no seu país e também no mundo. Porque o problema, frisou, não é só a Nigéria.
“Foi a isto que chegámos, nesta época em que as pessoas vão ao espaço, de avanços médicos e científicos. Não faz sentido nenhum”, lamentou.
Passaram quase 50 anos desde que publicou o seu último romance, Season of Anomy. Porque é que decidiu regressar?
Sim, eu sei, essa é a grande questão — porque é que voltei. A questão é que nunca me considerei um romancista. O meu métier é teatro, ensaio e poesia, mas só de tempos a tempos. Neste momento em particular, tem acontecido tanta coisa, não só no meu país, mas em todo o mundo. Dentro do meu espaço mais imediato, a distinção entre o governo e os que são governados tem-se vindo a esbater. É bastante aterrador. A sociedade civil tornou-se praticamente indistinguível dos aspetos negativos da governação na sua conduta diária. A erosão da dignidade dos outros, o estabelecimento da cultura de corrupção — temos um tumulto de vilões.
Como no seu novo romance, Crónicas do Lugar do Povo mais Feliz da Terra.
Sim, tem um tumulto de vilões. Apercebi-me que o teatro e os outros meios de comunicação já não eram suficientes. Era necessário um elenco enorme, que o teatro não pode realmente providenciar. No teatro, é preciso isolar e focar mais. Há muito tempo que tinha consciência que estava para nascer um novo romance, mas tive de esperar pelo momento em que pude ter tempo para me dissociar da realidade imediata e cortar totalmente por algum tempo para poder apresentar o que tem vindo a acontecer há décadas. Foi o que aconteceu.
Teve de sair da Nigéria para que o conseguisse fazer?
Sim. Não o divulguei propriamente, mas pedi ao meu amigo Agyekum Kufuor [antigo Presidente do Gana] se, por favor, me podia arranjar algum sítio onde pudesse hibernar longe de tudo, porque esta realidade estava a começar a ser demasiado para mim. Não conseguia lidar com ela. E para conseguir falar sobre ela de alguma forma criativa, tinha de me isolar.
Este romance passa-se numa Nigéria imaginária, mas quão perto se encontra da Nigéria real?
Bem, já não sei qual é a Nigéria real. Deixei de usar a expressão “Nigéria real”. O que posso dizer objetivamente, e até analiticamente, sei qual era a Nigéria em que cresci, que moldou a minha juventude e durante a qual interagi com as forças anticoloniais, não só na Nigéria, mas por todo o continente. Consigo falar sobre isso e afirmar, dentro das minhas próprias limitações, que essa visão era atingível. Afinal, assistimos ao fim do Aparthaid, ao fim do colonialismo de segregação na antiga Rodésia, à expulsão do chamado Estado Livre [do Congo] da Bélgica e do rei Leopoldo [II] e das crueldades que lá aconteciam, e que, nos anos 50 e 60, no período da independência, tivemos figuras como Kwame Nkrumah [do atual Gana] e outros visionários. É essa Nigéria que, infelizmente, a certa altura, me apercebi que era muito utópica. Mas, ao mesmo tempo, insisto que era possível, era atingível. Houve o Nelson Mandela e outras figuras únicas que surgiram durante aquele período, como os líderes que foram assassinados pelas forças coloniais. Depois disso, atravessámos um período de transposição do antigo nacionalismo e tornámo-nos quase clones dos imperadores exteriores. Foi aí que comecei a ter uma visão negativa. Ao longo dos anos, houve momentos em que voltámos a estar no caminho certo, prontos a seguir em direção à vahalla da sociedade independente. Portanto, não é tanto o que é a Nigéria real, mas aquilo que reconhecemos como a Nigéria possível. E, por fim, vimos o declínio a espalhar-se do governo para a população em geral e a complacência e rapidez com que esta aceita aquilo contra o qual considero que nos devemos mobilizar em vez de aceitar como a norma.
Porque é que houve essa mudança de atitude e se passou a aceitar aquilo que deveria ser combatido, nomeadamente a corrupção?
Acho que parte do problema está no facto de as pessoas não se terem apercebido de imediato que isso estava a acontecer. Era o tipo de situação que julgavam poder aceitar porque, se a criticassem, estavam a tomar o partido do imperialismo externo. Para mim, desde o início, era uma posição tão vazia, tão oportunista, tão esquiva, que nunca poderia aceitá-la. Mas tinha confiança de que essa fase podia ser ultrapassada, que as pessoas perceberiam [o que estava a acontecer]. A escolha é entre o poder opressivo e a liberdade de um cidadão e não interessa quem ocupa o extremo axial do poder. Não interessa. E não esperem conseguir chamar à razão aqueles que atuam como os antigos poderes coloniais e se desculpam dizendo que está tudo bem e que, se falarmos, significa que estamos do lado deles. Não, não. A conduta é sempre identificável. Aqueles que propagam esse tipo de conduta são identificáveis e não quero saber qual é a cor das suas peles, de onde vêm — é uma questão de escolher entre poder e liberdade [bate com a mão na mesa].
Fala muito sobre poder e política no seu romance, mas também sobre religião. Uma das personagens principais, Papá Davina, é um líder religioso. Que papel desempenha a religião na sociedade nigeriana atual?
Vamos sair da Nigéria e falar sobre o antigo Estado Livre do Congo. Havia um rei num local na Europa chamado Bélgica que criou o seu pequeno império [o Estado Livre do Congo era propriedade privada de Leopoldo II] e destruiu totalmente o sistema produtivo orgânico daquela sociedade, produzindo aquilo que era necessário para a alimentar na Europa distante. Os cidadãos tinham de produzir borracha, presas de elefante, e, se falhassem, eram castigados. Havia castigos como cortar narizes, braços. Eventualmente, as pessoas livraram-se desse incubo. Alguns anos depois, quando se estava a tentar recuperar dessa experiência imposta externamente, apareceu uma nova onda de auto intitulados designados divinos. E o que é que eles fazem? Levam crianças inocentes para os mercados, para parques de automóveis, para fábricas; explodem as suas próprias pessoas, os inocentes. Raptaram 300 mil pessoas de escolas. Qual é a diferença? Em termos de como afeta as pessoas. É como inaugurar um novo mercado de escravos. Pelo menos antigamente, os traficantes, quer viessem da região árabe ou da europeia, tinham de trabalhar para capturar os escravos; tinham de atacar aldeias, matar pessoas. Agora há um grupo de extremistas religiosos que dizem que somos todos pecadores e que continuam com a tradição humilhante e abominante [dos antigos escravizadores]. Destroem os que não se submetem e levam os outros, que têm de ser comprados de volta. Tem de ser pago um resgate. Qual é a diferença? São ambos mercados de escravos. Não sabemos ao certo quantas pessoas foram raptadas em nome da religião. Por outras palavras, é uma renovação da escravatura de um continente, só que desta vez por líderes religiosos críticos, que dizem que estão a transformar a comunidade. Para mim, são todos inimigos da humanidade e acontece que esta é a minha humanidade. O que estou a tentar dizer-lhe é algo em que penso há vários anos e que explorei em ensaios e comunicações, que penso que foram inadequadas. Este livro é uma rendição.
Que esforços estão a ser feitos pelo governo nigeriano para combater grupos islamitas como o Boko Haram? No seu romance, dá a entender que nada é feito.
Parte do problema é que cada líder, e não estou a falar apenas da Nigéria, acha que tem alguma solução pessoal para problemas que foram criados pela História. Os líderes não foram capazes de entender a natureza do poder — a sua adição, a sua capacidade de alienar –, ao ponto em que falamos com eles racionalmente e depois voltam para o seus gabinetes e no momento seguinte viram ao contrário as conclusões que foram extraídas de forma racional e progressiva nos momentos de sanidade. Regressam à esfera do poder e viram tudo ao contrário. Não devemos também subestimar a contínua influência negativa dos antigos poderes imperiais, porque eles nunca desapareceram totalmente. Encontraram clientes nos países que colonizaram e alguns desses eram tão obcecados pelo poder que estavam prontos a fazer um pacto com o diabo. Há exemplos disso em todo o lado. Isso foi especialmente premente no momento que se seguiu à independência, na altura da Guerra Fria. Havia blocos de poder a ocidente e no leste, que não eram diferentes uns dos outros — seguiam o mesmo padrão de exploração e assinavam acordos secretos. Alguns líderes [africanos] sentiram que era mais chique aliar-se ao lado da esquerda e submeteram-se a tornarem-se cativos desse bloco pensando que isso significava que eram progressistas. Obviamente que não era esse o caso. Ambos os lados estavam a dançar, a cantar e a tocar tambores ao som das batidas externas. Foram muito poucos aqueles que disseram que devíamos recuar e ver como é que sobreviveríamos antes de nos encarcerarmos. Foi uma combinação de todos esses fatores e da escalada do síndroma de dependência e do jogo do poder, que implica que, para sobrevivermos, temos de nos aliar com um ou com outro, em vez de regressar às pessoas e procurar uma renovação de autoridade junto delas. Não, queriam poder a todo o custo e associavam-se com quem era conveniente. E assim existiram monstros como o Idi Amin [antigo Presidente do Uganda, considerado um dos ditadores mais cruéis da história moderna] que, a certa altura, foi aliado do ocidente — do Reino Unido, Estados Unidos, etc. — e que, no momento seguinte, se aliou ao bloco do leste e renunciou à Rainha de Inglaterra [o Uganda pertence à Commonwealth]. Depois tornou-se aliado de islamitas. Havia imbecis como ele, que se catapultaram para o poder ou que foram elevados pelo povo que acreditava que eram verdadeiros campeões. De repente, estava tudo a acontecer outra vez. Mas houve algumas exceções.
Falou na Rainha. O Uganda, assim como a Nigéria, faz parte da Commonwealth, que reúne as antigas colónias britânicas sob a liderança do monarca inglês. Parece-lhe algo que faça sentido?
É uma coisa simbólica. Mas sim, poucos tiveram coragem para quebrar a ligação [com o Reino Unido]. Aconteceu o mesmo em França, com a Communauté Française. Houve algumas exceções, como Sékou Touré [primeiro Presidente da Guiné depois da independência], que disse “não” a França. Quando França deu aos guineenses a hipótese de integrarem o Estado francês ou de permanecerem livres, sendo que França levaria tudo com eles, Sékou Touré disse que preferia que morressem à fome em liberdade do que engordassem na escravatura. Mas depois o que é que Sékou Touré fez? Começou a esmagar a oposição, institucionalizou a tortura e usou todas as desculpas para reduzir mais uma vez as pessoas a um estado de escravatura. No final, acabou por não ser melhor do que se os franceses tivessem permanecido na Guiné. E assim voltamos à questão do poder.
Em torno do qual tudo gira.
Sim, e o pior é o poder religioso. Afirmam que têm conversas por telefone com Deus e assassinam seres humanos, crianças; destroem o que levou anos a construir; destroem até a História, como em Timbuktu [no Mali], onde destruíram as bibliotecas que existiam até antes do contacto [com os europeus]. Como é que lidamos com pessoas assim? Como é que os levamos a compreender a anomalia dos seus atos?
Considera então que o poder religioso é ainda mais prejudicial do que o poder secular?
O poder religioso é muito hipócrita e é por isso que é tão mau. Infelizmente, tem uma influência supersticiosa. Felizmente, de tempos a tempos, há um acordar. Agora foi no Irão. E quem é que está a liderar [esse movimento]? São as mulheres. Desejo-lhes boa sorte e digo às outras mulheres que a luta não é apenas das mulheres do Irão. Devem mobilizar-se e ensinar a esses mullahs [especialistas na lei islâmica] assassinos e hipócritas uma lição de que nunca se esqueçam. A disseminação do fundamentalismo religioso, que é assustadora, não está a acontecer apenas na Nigéria. E a arrogância dessas pessoas! “Se disserem alguma coisa, vamos atrás de vocês.” Veja o que aconteceu recentemente ao Salman Rushdie — é a arrogância do poder. Seres supostamente pensantes acham que se matarem uma pessoa, matam todas as ideias. Esse tipo de pensamento é tão estúpido e desprezível! É um fenómeno assustador.
Ficou chocado com o que aconteceu a Salman Rushdie?
Não fiquei chocado, fiquei amargurado. Conheço o Salman e era óbvio, e não estou a falar dele especificamente. Libertaram uma população zombie no mundo e, em qualquer sítio e em qualquer altura, podem decidir que foi feita uma ofensa e agir. É isso que quero dizer quando digo que não fiquei chocado. Claro que fiquei enraivecido, zangado, mas não fiquei realmente chocado, porque os conheço, estudámo-los, temo-los em todo o lado na Nigéria. Quando o Salman Rushdie foi atacado, uma estudante tinha acabado de ser linchada e queimada viva numa faculdade nigeriana, porque tinha alegadamente ofendido a imagem do profeta Maomé. Sabe qual foi o comentário do imã da principal mesquita nigeriana, na capital, Abuja? “Sim, fizeram muito bem.” E safou-se com isso. Exigimos que fosse removido do cargo. Eu próprio fui a Abuja e fiz uma apresentação em que disse que aquele homem tinha de ser afastado. Mas ele ali está, sentado à cabeça de uma religião mundial como o Islão, que supostamente é uma religião pacífica; ali está, sentado, a divertir-se. Não foi detido por discurso de ódio, por incitar ao assassinato numa sociedade que é suposto ser secular ou multirreligiosa, cuja constituição é baseada na igualdade de todas as religiões. Uma pessoa pergunta-se o que é que aconteceu ao senso comum. Essa pessoa de certeza que é pai. E existem certos aspetos da lei islâmica que dizem que não se deve fazer justiça com as próprias mãos. Se alguém insultar a religião, deve ser denunciado e um tribunal instituído. No entanto, uma pessoa importante diz que está tudo bem. Foi a isto que chegámos, nesta época em que as pessoas vão ao espaço, de avanços médicos e científicos. Não faz sentido nenhum.
Apesar de tudo isto, a Nigéria é o país mais feliz do mundo, como dizia o estudo que inspirou o título do seu romance, Crónicas do Lugar do Povo mais Feliz da Terra.
Um dia vi um censo que dizia que os nigerianos estavam entre as pessoas mais felizes do mundo. Não sei com quem é que falaram, quem é que entrevistaram. Não sei sequer se viajaram até à Nigéria, mas ali estava. Acho que estávamos no top 6 dos povos mais felizes do mundo.
De que Nigéria estariam a falar?
Tem de lhes perguntar [risos].
O Observador viajou até Óbidos a convite do FÓLIO — Festival Internacional de Literatura de Óbidos