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Como chegámos aqui?

O Nagorno-Karabakh é um enclave separatista, área de montanha que é parte do território do Azerbaijão habitado e governado por uma maioria arménia e tem sido disputado pelos dois países há mais de 30 anos.

No início da década de 1990, o colapso da União Soviética despertou uma guerra que provocou perto de 30 mil mortos e mais de um milhão de refugiados, interrompida com um cessar-fogo em 1994 que atribuiu à população arménia o controlo da zona e de alguns territórios adjacentes que a comunidade internacional reconhece como parte do Azerbaijão.

O colapso da União Soviética levou a um conflito com milhares de mortos e milhões de refugiados

A difícil coabitação começou séculos antes, provocada por uma rivalidade entre cristãos de etnia arménia e muçulmanos de origem turca que ainda hoje se manifesta.

No passado, a região foi integrada no império russo durante o século XIX e lá permaneceu no período soviético, durante o qual se definiram fronteiras e se formou a base do antagonismo vindouro.

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Como tem sido a convivência na região desde o cessar-fogo?

O cessar-fogo de 1994 congelou o conflito sem o resolver, assim garantindo o seu esporádico reacendimento, que tem levado mais a fatalidades do que ao progresso num acordo de paz definitivo.

Desde 2009 que não há relatos de avanços substanciais nas negociações, mas são frequentes os confrontos junto à fronteira que tomam vidas de militares e civis. O último mais sério aconteceu em abril de 2016, num episódio que ficou conhecido como a “Guerra dos Quatro Dias” e provocou 200 mortos, terminando com o Azerbaijão a capturar parte do território e a Arménia a garantir que tinha conseguido suster a agressão azeri – todos puderam reclamar vitória.

Quatro anos depois, o regresso ao combate de maior dimensão preocupou a comunidade internacional, entretanto pouco atenta a uma região com enorme importância estratégica, pela energia e pelos interesses divergentes das grandes potências com influência local.

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O que está a acontecer agora?

Com dificuldade em garantir informação confiável, governantes, diplomatas e analistas vão tentando perceber as razões da escalada, apelando à estabilidade e ao regresso à mesa de negociações. Apesar dos sinais de alerta nos últimos meses, os confrontos apareceram de surpresa e foram recebidos como tal em boa parte do mundo.

Na verdade, a tensão começou por regressar em julho deste ano, sob a forma de pequenos confrontos de baixa intensidade que quase não chegaram à imprensa internacional. Como é hábito na região, é difícil saber ao certo quem abriu hostilidades ou apurar exatamente o número de mortos e feridos.

Os dois países divulgam dados incompatíveis ou contraditórios que devem ser interpretados com cautela, mas hoje parece mais claro que esse pequeno enfrentamento significou um prelúdio da situação deste fim de semana, em que a escalada de agressão atingiu rapidamente a importância dos eventos de 2016 e tem potencial para ir muito além (ou aquém, se equacionarmos um regresso ao conflito declarado de há 30 anos).

Também desta vez não se tem a certeza do lado que desencadeou o conflito. Os analistas tendem a apontar o dedo ao Azerbaijão, país que tem declarado publicamente o seu interesse em controlar essa parte do território que lhe é reconhecido e é prejudicado pelo atual estado de coisas, que atribui o controlo à população de origem arménia.

Foi o Ministério da Defesa arménio a dar a notícia de um ataque a alvos civis ao início da manhã de domingo, dia 27, incluindo na capital regional, Stepanakert, que terão causado 16 mortos e 100 feridos. Daí, o governo arménio rapidamente partiu para a mobilização militar e a lei marcial, com o primeiro-ministro Nikol Pashinyan a dramatizar a sua retórica nas redes sociais, pedindo o apoio dos seus cidadãos na defesa da pátria contra a ameaça externa.

Do lado azeri, o presidente Ilham Aliyev confirmou apenas uma contraofensiva para responder a ataques arménios, tendo capturado algumas aldeias vizinhas com a perda de vidas, tanques e helicópteros no combate.

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O que explica um novo confronto?

Boa parte do que se passou em 2016, em julho e no passado fim de semana tem sido explicado pela influência de Recep Tayyip Erdoğan, presidente da Turquia e grande aliado do Azerbaijão, que recentemente tem apoiado com maior intensidade.

Uma tese popular nos círculos internacionais defende que, como na guerra civil da Síria, Erdoğan parece disposto a criar um confronto de proximidade num novo foco de tensão com a Rússia, forçando Vladimir Putin a tomar partido pelo lado oposto e a intervir diretamente na região.

Depois da Síria e do Mediterrâneo, o Cáucaso parece ser o mais recente esforço de uma Turquia mais agressiva e beligerante. Erdoğan foi dos primeiros líderes mundiais a reagir aos confrontos de domingo, referindo-se à Arménia como a “maior ameaça à paz na região” e reafirmando o seu apoio ao governo de Baku.

A posição russa é mais ambígua, mantendo relações com os dois países que incluem a venda de armamento, mas há maior proximidade histórica com a Arménia, notável nos laços económicos e militares, com uma base russa no país. Enquanto Putin pedia o fim das hostilidades, o seu Ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergey Lavrov, discutia “intensamente” a situação com o homólogo turco.

A Rússia de Putin tem sido uma aliada da Arménia e a Turquia de Erdoğan tem sido uma aliada do Azerbaijão

Para Licínia Simão, professora na Universidade de Coimbra e especialista no sul do Cáucaso, a narrativa de uma proxy war turca é “superficial”. A investigadora do Centro de Estudos Sociais vê antes um “conflito identitário essencial na política doméstica dos dois países e na sua formação como Estados”, com o “Azerbaijão envolvido numa política de pequenos avanços, provocando simbolicamente à procura de alcançar ganhos antes do inverno”.

Outra hipótese tem sido avançada. No final de julho, a imprensa especializada noticiava uma preocupação que infelizmente só a imprensa especializada costuma ter: a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), enfrentava uma crise institucional, porque os seus 57 membros foram incapazes de escolher uma nova liderança.

Muitos alertaram para os riscos de fragilizar uma organização daquele tipo no meio de uma pandemia, mas o vazio veio a notar-se noutra das suas incumbências.

Desde 1992 funciona no âmbito da OSCE o Grupo de Minsk. Chefiado em conjunto pelos Estados Unidos da América, a Rússia e a França, países com a maior diáspora arménia, tem como propósito a negociação de uma solução pacífica para a região do Nagorno-Karabakh.

Nos seus primeiros anos de existência, o Grupo foi oferecendo mediação no local, com esforços de sucesso moderado. Nos últimos anos, porém, a falta de progresso mereceu críticas e houve planos para reformar a sua estrutura, sugerindo, por exemplo, a inclusão da Alemanha e da Turquia na liderança conjunta. Nada avançou – nem no Grupo, nem nas reformas – e ao imobilismo juntou-se neste verão a falta de liderança da organização.

Com a OSCE fora de jogo, os Estados Unidos desligados do mundo multilateral e em ano eleitoral e a Rússia a braços com a Bielorrússia e os infortúnios dos opositores de Putin, quase ninguém estava a olhar para as montanhas.

A ocasião fez a intervenção, mas muitos peritos defendem que um investimento sério no formato existente poderia já ter dado frutos e evitado a escalada de agressão.

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Qual é o perigo de uma guerra na região?

Nagorno-Karabakh é uma área montanhosa sem grande interesse económico. O confronto explica-se por razões históricas e rivalidades étnicas, não por uma intenção lucrativa, mas a aridez não é uma constante no sul do Cáucaso.

A região mais alargada é um corredor essencial de gasodutos e oleodutos que passam pelo Azerbaijão para fornecer o globo e a sua estabilidade é do interesse das maiores potências mundiais.

O conflito, que é o mais antigo de toda a Europa ainda ativo, disputa a identidade dos dois países e é cada vez mais determinante na construção do seu carácter nacional.

Licínia Simão nota “um discurso cada vez mais inflamado, potenciado pelas redes sociais, que radicalizam e empurram para a guerra”, num contexto de provocações mútuas entre os governos.

Essa é a grande debilidade da narrativa que faz dele a mera reflexão do antagonismo entre a Turquia e a Rússia. As dinâmicas internas, identitárias e políticas, continuam a ser determinantes: na Arménia, a “Revolução de Veludo” de 2018 trouxe eleições livres e uma nova geração de líderes que, por um tempo, pareceu entusiasmar o regime azeri ao ponto de fazer regressar a esperança da paz.

Sem progressos substanciais nas negociações, porém, a esperança acabou por dar lugar a um novo afastamento, motivado por declarações inflamatórias de parte a parte que reafirmavam o desejo de tomar a região.

As divergências culturais são também políticas. Enquanto a Arménia vai fazendo um caminho lento e gradual para melhorar as suas condições democráticas, o Azerbaijão é um petroestado com um regime autoritário consolidado, em que o atual presidente é filho do seu antecessor, e tem alguns dos piores resultados possíveis nos rankings de liberdade política e de imprensa.

Do ponto de vista das alianças, porém, a investigadora assinala que “a mão da Rússia na Arménia é mais forte do que aquela que a Turquia tem no Azerbaijão”. Os laços são mais profundos e o entendimento da relação é verdadeiramente distinto; turcos e azeris são “irmãos e parceiros”, numa afinidade que é próxima, mas paritária, enquanto a relação entre russos e arménios tem muito mais presente a ideia de dependência, especialmente económica (a riqueza de recursos do Azerbaijão ajuda muito à sua independência).

Um novo espaço de guerra que interfere com interesses da União Europeia, da Rússia e da Turquia é o resultado menos desejado por quase todos os agentes relevantes na área. As dinâmicas nacionais da Arménia e do Azerbaijão podem ter determinado os acontecimentos de baixa e média intensidade, mas um confronto que force a intervenção turca (ou russa) implica uma dinâmica completamente diferente, com consequências imprevisíveis e perigosas.

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O que tem feito a comunidade internacional?

Para Licínia Simão, a União Europeia é a grande derrotada na realidade que o fim de semana impôs. “Com os Estados Unidos a minar todas as organizações multilaterais, é a União que fica com um conflito cada vez menos latente na sua vizinhança e área de influência”, defende. “A França, apesar da posição no Grupo de Minsk, não tem um interesse específico na região e têm sido as instituições europeias a trabalhar numa solução, desde logo através da Política Europeia de Vizinhança”.

Logo no domingo, Josep Borrell, Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e Vice-Presidente da Comissão Europeia, pedia às partes que regressassem aos termos do cessar-fogo e às negociações no quadro do Grupo de Minsk, lamentando as consequências do combate. A ele se juntou Charles Michel, presidente do Conselho Europeu e representante dos Estados-Membros.

A posição europeia não é evidente. Dependente das importações de energia azeri, que representam 5% do total no gás natural, tem também interesses na Arménia, para quem representa o segundo maior mercado de exportações e para onde tem enviado generosos pacotes de ajuda financeira, sobretudo depois da “Revolução de Veludo”, incentivando os esforços democráticos no país.

Um dos primeiros apoiantes da causa arménia no conflito foi Geert Wilders, líder da extrema-direita nos Países Baixos. Num tweet, Wilders pedia o apoio aos “amigos cristãos da Arménia” contra a “agressão islâmica por rufias do Azerbaijão apoiados pelo ditador turco Erdoğan”.

No continente europeu pode haver a tentação de interpretar Nagorno-Karabakh como um efeito da longa mão turca que tem preocupado sobretudo Paris, Atenas e Nicósia, mas é particularmente perigoso carregar na dimensão religiosa do conflito, que é sobretudo instrumental numa discussão mais ampla sobre a construção de identidades nacionais.

Sobre os próximos tempos, Licínia Simão defende que pouco mais se pode fazer do que “futurologia”. “O cessar-fogo não resolveu definitivamente o confronto, mas trouxe estabilidade e provou que a estabilidade na região permite desenvolvimento, especialmente para o Azerbaijão”. Ainda assim, defende que a tensão do momento é resultado do desinvestimento internacional no quadro do Grupo de Minsk e numa solução pacífica para o território.

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Como se pode resolver esta escalada de agressão?

Uma solução temporária é preferível a um conflito temporário. Essa era a lógica da manutenção do cessar-fogo que imperfeitamente foi equilibrando pretensões opostas. Ainda assim, é impossível garantir que as tensões possam continuar a manter-se entre o morno e o fresco sem nunca cair no confronto sério que há décadas se teme.

Para o futuro, quase tudo está em aberto, segundo a investigadora Licínia Simão: “Não é difícil imaginar uma presença internacional no terreno, para assegurar que os termos do cessar-fogo são cumpridos, e isso seria certamente do interesse russo. De qualquer forma, não vejo o conflito a resolver-se num passe de mágica. Mesmo que se chegue a um acordo e se assine um papel, as sociedades têm sido preparadas culturalmente para a guerra, não para a paz, por isso parece-me que seria impossível pô-lo em prática. Corremos o risco de repetir o que aconteceu entre Israel e Palestina”.

Em 2016, o combate terminou quando todos puderam reclamar uma vitória débil. Desde então as opiniões nacionais têm-se radicalizado, pressionando os líderes a entrar novamente em conflito para o vencer definitivamente. Talvez ainda não seja este o momento de acertar contas históricas e tudo se volte a acalmar rapidamente, mas entre os dois países a paz ficou mais distante.

Depois deste domingo, aliás, o Nagorno-Karabakh parece ter ficado condenado a viver de quatro em quatro dias até à decisão final – e talvez esse nem seja o pior cenário.