O que se passa em Ghouta?
Ghouta é uma região situada nos subúrbios de Damasco, capital da Síria, e um dos últimos bastiões da oposição ao regime de Bashar al-Assad. Desde 2013 — ou seja, um ano depois do início da guerra na Síria — que Ghouta está cercada pelas forças do regime, que contam com a cooperação militar da Rússia, do Irão e do Hezbollah.
A região de Ghouta divide-se num total de oito bairros, por ordem decrescente de grau de destruição: Jobar, Ein Tarma, Zamalka, Arbin, Jisrin, Kafr Batna, Saqba e Hamouria. Os mais afetados são também os que estão mais próximos de Damasco, de onde são lançados os ataques de artilharia do regime.
Desde que a guerra começou, houve dois momentos particularmente graves neste enclave anti-Assad.
O mais recente está a ocorrer enquanto que se escrevem estas linhas. À medida que Assad foi gozando de maior cooperação externa na guerra, sobretudo do Irão e da Rússia, as forças leais ao regime de Damasco conseguiram retomar o controlo em várias zonas do país que chegaram estar nas mãos dos vários grupos de rebeldes, dos curdos do YPG ou de grupos terroristas islamistas. Ora, Ghouta, mesmo às portas de Damasco, é uma das poucas partes que resta sucumbir às forças de Assad.
Para tentar retomar o controlo a este enclave — que é no momento ocupado por forças rebeldes e também por grupos terroristas —, as forças leais ao regime e os seus aliados internacionais intensificaram na segunda metade deste mês de fevereiro a ofensiva por terra e ar. Segundo o Observatório Sírio dos Direitos Humanos, desde 18 de fevereiro, data de início da atual campanha de reconquista de Ghouta por parte de Assad, já morreram pelo menos 521 civis, entre os quais 131 crianças e 78 mulheres.
Calcula-se que neste momento estejam 400 mil pessoas presas em Ghouta, a braços com uma grave crise humanitária, onde escasseia comida, água e cuidados de saúde.
O outro momento mais grave da guerra em Ghouta foi em 2013, quando o exército do Governo da Síria atacou Ghouta com aquilo que se suspeitou ser gás sarin — um elemento que afeta o sistema nervoso e respiratório, provocando na maioria dos casos morte por asfixia. O ataque em questão aconteceu a 21 de agosto de 2013 e em setembro, após investigar o caso, as Nações Unidas asseguraram que havia “provas claras e convincentes de que mísseis de artilharia que continham o agente Sarin foram usados em Ein Tarma, Moadamiyah e Zamalka, na zona de Ghouta, em Damasco”. A equipa de investigação das Nações Unidas teve acesso ao local e, das amostras de sangue recolhidas nos locais afetados pelo bombardeamento de 21 de agosto de 2013, 85% acusaram positivo no teste de despiste do gás Sarin.
Mas não havia um cessar-fogo?
Havia.
Mas, à semelhança do que tem acontecido com outros cessar-fogos na Síria, este acabou por não ser respeitado por praticamente nenhuma das forças que fazem parte do complexo tabuleiro de xadrez naquele país.
Na noite de 24 de fevereiro, o Conselho de Segurança das Nações Unidas chegou a um acordo e exigiu “a todas as partes do conflito que cessem as hostilidades de forma imediata” de forma a garantir “uma pausa humanitária durável ao longo de pelo menos 30 dias consecutivos em toda a Síria, para assegurar a entrega segura e sem obstáculos de ajuda humanitária e de evacuações médicas para feridos e doentes graves”.
O acordo de cessar-fogo não dizia respeito apenas à região de Ghouta, mas sim à totalidade do território da Síria. Porém, abria-se uma exceção importante para compreender os desenvolvimentos seguintes: “O cessar de hostilidades não se aplica a operações militares contra o Estado Islâmico, a al-Qaeda e a Frente Al-Nusra e outros indivíduos, grupos e entidades associados à al-Qaeda ou ao Estado Islâmico ou a outros grupos terroristas, designados como tal pelo Conselho de Segurança”.
Porém, poucas horas depois de ter sido decretado o cessar-fogo, já havia confrontos em Ghouta e noutras partes do país, com as forças sírias, ladeadas por russos e iranianos, a combaterem grupos e milícias anti-regime dentro de Ghouta. Entre aqueles que continuam naquela região, incluem-se de facto organizações terroristas — o que leva o lado de Assad a sublinhar que está a cumprir aquilo que está estipulado no acordo de cessar-fogo, uma vez que o combate a “grupos terroristas” não foi impedido.
Já depois de o cessar-fogo ter sido, em teoria, implementado, o Observatório Sírio dos Direitos Humanos deu conta de ataques do regime sírio que resultaram na morte de 14 civis — entre os quais quatro crianças e três mulheres —, o que pode contrariar a tese de aqueles combates serem dirigidos a militantes terroristas. A mesma ONG adiantou também ter havido um ataque aéreo que causou problemas respiratórios, na cidade de al-Shifonyyah, também na região de Ghouta, o que levanta suspeitas de ter acontecido mais um ataque químico.
Do outro lado, ainda esta segunda-feira, a agência noticiosa Sana, um dos órgãos de comunicação social controlados pelo regime de Assad, deu conta de ter sido intercetado um carro bomba que partiu de Ghouta em direção a Damasco e apontou para o disparo de 21 morteiros desde aquele enclave oposicionista em direção a bairros de Damasco.
Porque é que o cessar-fogo falhou?
Porque a sua linguagem ambígua, que abre exceções não só a organizações terroristas devidamente assinaladas mas também a “outros grupos terroristas”, está a ser utilizada pelas várias partes no confronto a seu favor. Na prática, tendo em conta a dinâmica da guerra na Síria, este cessar-fogo já nasceu morto.
Quando ainda estava a ser discutida a implementação de um cessar-fogo, o embaixador da Síria nas Nações Unidas, Bashar al-Jaafari, queixou-se de haver uma duplicidade de critérios no que tocava à defesa de civis em Damasco e noutras partes do mundo. “Vamos imaginar por um segundo se, no caso de haver terroristas a atingir continuamente civis, fosse em Paris, Nova Iorque ou Londres, algum de vocês diria que eles são moderados ou grupos armados da oposição, como se referiram a alguns dos que cometem crimes na Síria”, disse Bashar al-Jaafari.
Entretanto, o porta-voz do Kremlin, Dimitry Peskov, já veio falar nos mesmos termos de Damasco, para justificar a ação militar que ali continua. “Os terroristas que estão em Ghouta oriental não pousam as armas, sequestram os cidadãos locais e isto cria uma situação muito tensa”, disse esta segunda-feira.
Mas não é apenas o governo sírio, juntamente com a Rússia e a Síria, que violaram o cessar-fogo acordado no sábado. A estes, junta-se a Turquia, que em 2018 tem apostado fortemente no ataque às forças curdas, do YPG, que por sua vez fazem parte da coligação liderada pelos EUA na guerra síria.
Os turcos procuram reconquistar a solidez da sua fronteira com a Síria, temendo que a sua comprovada porosidade dê espaço aos curdos para reforçarem a sua posição na Turquia. É uma operação assumida e anunciada esta segunda-feira pelo vice-primeiro-ministro turco Bekir Bozdağ. “A entrada de forças especiais está a ser preparada, para a nova batalha que está por perto”, disse o governante ao canal turco NTV.
A ofensiva será centrada na província de Afrin, situada no noroeste da Síria e que faz fronteira com as províncias turcas de Kilis e Hatay. A mensagem do governo turco tem apontado para a ideia de que esta ofensiva não viola o cessar-fogo do Conselho de Segurança da ONU, utilizando o mesmo argumento de Assad: está a combater terroristas.
“Quando olhamos para a resolução do Conselho de Segurança da ONU, vemos que a luta contra organizações terroristas está fora do seu alcance. Por isso, não vai afetar a operação da Turquia”, disse também aquele vice-primeiro-ministro turco, no domingo.
Como tal, apesar da complexidade do conflito, é fácil entender que as várias partes designam (algumas vezes corretamente, outras vezes de forma altamente dúbia) os seus adversários como “terroristas”, alegando assim legitimidade para continuarem a guerra quando, na prática, esta teria de ser suspensa.
Quem são as forças da oposição a Assad que estão em Ghouta?
Em 2011, ano em que se iniciou a revolta na Síria e mais tarde a guerra civil naquele país, a oposição a Bashar al-Assad ganhou forma em vários grupos armados, que iam desde a chamada “oposição moderada”, entre os quais se destacava o Exército Sírio Livre; até a grupos terroristas com expressão no Médio Oriente (Estado Islâmico e al-Qaeda, sobretudo) e outros de menor dimensão.
Com o avançar da guerra, os grupos que pertenciam à “oposição moderada” tornaram-se mais dispersos, perderam dimensão e tropas para os grupos mais radicais, tornando-se assim menos conhecidos e, por isso, de difícil escrutínio. Este esbatimento de fronteiras tem permitido ao governo sírio, à Rússia e ao Irão designar todos os seus adversários como “terroristas”.
Em Ghouta, conhece-se a presença de pelo menos cinco grupos armados:
- O Jaysh al-Islam (Exército do Islão, em português) é o maior grupo oposicionista com presença em Ghouta. Assad coloca este grupo dentro da lista de organizações terroristas, algo que a restante comunidade internacional não acompanha. Embora o ex-Secretário de Estado dos EUA John Kerry tivesse referido o Jaysh al-Islam como um grupo terrorista durante um discurso, Washington D.C. não o incluiu na lista de organizações desse tipo — tal como a Comissão Europeia, as Nações Unidas e a Interpol. O Jaysh al-Islam é um grupo islamista sunita que começou em 2013 e pretende implementar a lei da sharia na Síria. Suspeita-se que seja financiado pela Arábia Saudita.
- O Harakat Sham al-Islam (Movimento Islâmico dos Homens Livres do Levante), considerado de forma unânime como sendo um grupo terrorista, tanto pelos EUA, União Europeia, Nações Unidas e Interpol, como pela Síria e os seus aliados na região. O Harakat Sham al-Islam foi formado após uma cisão da Frente al-Nusra, que por sua vez nasceu de uma divisão na al-Qaeda. Foi fundado por militantes salafitas marroquinos que chegaram a estar detidos na prisão norte-americana de Guantanamo. Defende a implementação da lei da sharia.
- O Hayat Tahrir al-Sham (Organização para a Libertação do Levante), também ele considerado um grupo terrorista pela Síria e pelos seus aliados, designação que desde maio os EUA passaram a acompanhar. Também é uma organização que deriva da Frente al-Nusra.
- O Faylaq al-Rahman é um grupo aliado do Exército Sírio Livre, que a Síria e os seus aliados consideram terrorista, ao contrário do resto da comunidade internacional. Suspeita-se que seja financiada pelo Qatar e pela Turquia.
- O Harakat Nour al-Din al-Zenki chegou a ser um grupo apoiado pelos EUA, recebendo material de guerra, incluindo tanques, de Washington D.C.. Porém, o apoio militar dos EUA a este grupo foi cancelado, já com Donald Trump no poder. A decisão do Presidente dos EUA foi tomada já depois de ter sido publicado um vídeo de militantes deste grupo a decapitar um rapaz de 15 anos de nacionalidade 2, em Alepo.
Como reagiu a comunidade internacional ao fracasso do cessar-fogo?
Com as condenações do costume e com os termos cuidadosos de sempre.
Entre estas declarações, inclui-se a reação do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres. “As resoluções do Conselho de Segurança só terão significado se forem implementadas. Ghouta oriental não pode esperar. Está na altura de acabar este inferno em terra”, disse António Guterres esta segunda-feira.
Security Council resolutions are only meaningful if implemented. Eastern Ghouta cannot wait. High time to end this hell on earth. pic.twitter.com/KzXJtjtNcm
— António Guterres (@antonioguterres) February 26, 2018
Já no domingo, foi feita uma teleconferência entre Angela Merkel, Emmanuel Macron e Vladimir Putin. No final da chamada, França e Alemanha avançaram um comunicado em conjunto, onde disseram ter pedido ao líder russo que “neste contexto exerça uma pressão máxima sobre o regime sírio para obter uma suspensão imediata dos ataques aéreos e dos combates”.
Merkel e Macron pedem “pressão máxima” a Moscovo sobre a Síria
Da parte da Rússia, vários representantes saíram para refutar as acusações de violação do cessar-fogo. O porta-voz do Kremlin, Dimitry Peskov, acusou os “terroristas” de Ghouta de não “[pousarem] as armas” e de sequestrarem os “cidadãos locais”.
Ainda assim, a partir de Moscovo, Vladimir Putin deu um sinal que pode apontar para um decréscimo da violência na região de Ghouta, ao anunciar a criação de um corredor humanitário “diário”, entre as 9h00 e as 14h00 locais, a partir desta terça-feira.
Já a Turquia decidiu intensificar a sua ação na província síria de Afrin, atualmente dominada pelos curdos do YPG — inimigos dos grupos terroristas islamistas sírios, do regime de Assad e também da Turquia, além de serem apoiados pelos EUA. O anúncio foi feito pelo vice-primeiro-ministro turco Bekir Bozdağ, que rejeitou a hipótese de esta ofensiva violar o cessar-fogo, já que estaria enquadrado na “luta contra organizações terroristas”.
Na sequência deste anúncio, o Presidente de França, Emmanuel Macron, teve uma chamada com o seu homólogo turco, Recep Tayyip Erdoğan. De acordo com uma nota divulgada pelo Eliseu, o Presidente francês sublinhou que “as tréguas humanitárias aplicam-se a todo o território da Síria, incluindo [a província] de Afrin”.
A Comissão Europeia ainda não reagiu à quebra do cessar-fogo na Síria. Mas na véspera de o Conselho de Segurança da ONU ter instado as partes a cessarem a hostilidades, a Alta Representante da UE para Política Externa e Segurança, Federica Mogherini, disse que “a comunidade internacional deve unir-se para parar este sofrimento humano”.
“A União Europeia insta todas as partes do conflito (…) a tomar todas as medidas necessárias para assegurar um cessar-fogo imediato”, disse a chefe da diplomacia de Bruxelas na sexta-feira da semana passada.
Há quanto tempo dura a guerra na Síria e quantas pessoas já morreram?
A guerra na Síria começou em março de 2011, altura em que aconteceram os primeiros protestos contra o regime de Bashar al-Assad, no seguimento da Primavera Árabe. Desde então, o conflito alastrou-se a todo o país, que se tornou o palco de uma das guerras mais letais do século XXI.
O número de vítimas mortais não é certo, existindo discrepâncias entre algumas das estimativas conhecidas.
O Syrian Center for Policy Research fixou o número de mortos em mais de 470 mil em fevereiro de 2016 — o que, segundo esta lógica, colocaria o número atual certamente acima do meio milhão de mortos. Também em fevereiro de 2016, o enviado especial das Nações Unidas à Síria admitiu que o número de vítimas mortais era superior a 400 mil.
O Observatório Sírio dos Direitos Humanos fixou a estimativa em torno dos 500 mil mortos, segundo números de dezembro de 2017.