O tema das faltas de André Ventura ao trabalho parlamentar, nomeadamente às comissões parlamentares, é recorrente e é caro ao Bloco de Esquerda. Daí que o candidato do Chega tenha ido preparado para o debate com Marisa Matias, transmitido ontem na SIC, com uma cópia de um artigo do Diário de Notícias que, no seu entender, prova que os mais faltosos na sessão legislativa que terminou no verão passado foram os deputados do BE e do PS. Acontece que o artigo em questão seria contextualizado com a informação de que o Parlamento contabiliza também as faltas obrigatórias dos deputados, que não podiam estar presentes no plenário devido às regras sanitárias. É, por isso, enganador.

Tudo se passou no debate da noite passada entre André Ventura e Marisa Matias:

Marisa Matias: “O que arranjou com essa comissão [do financiamento de partidos] foi uma desculpa para não ter de trabalhar nas comissões, porque se tivesse querido integrar essa comissão poderia perfeitamente ter participado, mas não participou porque a cada 10 reuniões de comissões parlamentares o senhor falta a seis”.

André Ventura: “É mentira, está a mentir. E sabe porque é que está a mentir? Hoje está com azar, porque tenho aqui, peço aos telespectadores que vejam a mentira desta senhora que está aqui à minha frente. No ano passado, o PS e o BE foram os partidos que mais faltaram. Está aqui.”

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Marisa Matias: “Essa notícia foi desmentida.”

André Ventura: “Está aqui, não minta. Vocês foram os que mais faltaram juntamente com o PS, está aqui, não minta às pessoas”.

Em causa está um artigo do Diário de Notícias, do dia 14 de julho, intitulado: “Absentismo parlamentar: PS e Bloco são quem mais falta”, que faz as contas à média de faltas por bancada parlamentar na sessão legislativa anterior, que terminou no verão. No final do artigo, era feita uma referência às “faltas forçadas”: “Os dados do site do Parlamento mostram também até que ponto, nesta sessão legislativa, muitas faltas foram, na verdade, forçadas, por razões sanitárias (a lotação do plenário foi limitada para poder haver distância física entre os deputados)”, lê-se.

Nesse mesmo dia, à tarde, o DN publicava outro artigo, que Ventura não mostrou, com um direito de resposta do Bloco de Esquerda e com um esclarecimento do deputado socialista Pedro Delgado Alves: “As faltas são reflexo da pandemia. Cumprimos à risca as normas sanitárias para o plenário do Parlamento. E por isso foram os que mais cumpriram também os que mais faltaram, nós [PS] e o Bloco”, disse na altura o vice-presidente da bancada parlamentar socialista. Ou seja, o artigo em causa que serviu para provar o argumento de André Ventura tinha um contexto que André Ventura ignorou.

Nessa altura, em plena primeira vaga da pandemia e confinamento geral, ficou até célebre o episódio em que Rui Rio, líder do PSD, abandonou um debate depois de Ferro Rodrigues ter alertado para o facto de estarem mais deputados na sala do que seria permitido. Rui Rio irritou-se com os seus próprios deputados por não estarem a cumprir as regras sanitárias e saiu ele próprio do hemiciclo para dar o exemplo.

O Parlamento adotou, logo que foi decretado o primeiro estado de emergência, normas de segurança sanitárias que incluíram a redução da lotação no hemiciclo a um quinto dos deputados no decorrer das sessões plenárias e a metade dos deputados no momento das votações. Cabia aos grupos parlamentares escolher quem podia ficar no plenário e quem não podia ficar, sendo que os grupos parlamentares maiores tiveram de reduzir a lotação da sua bancada para um quinto enquanto os deputados únicos como o Chega e o Iniciativa Liberal não tinham onde cortar, ou seja, puderam estar sempre presentes. Aos deputados que não estavam presentes era-lhes registada falta, depois justificada com “motivo de força maior”.

A regra de funcionamento do hemiciclo era esta: “Apenas um quinto dos deputados deve estar presente no hemiciclo, sendo apenas necessário que, quando há votações, estejam registados no computador, para efeitos de verificação de quórum, metade dos deputados (ou seja, 116).”

Na altura, o Bloco de Esquerda enviou um direito de resposta ao DN que foi publicado nesse mesmo dia: “Trata-se de uma manipulação inaceitável que atribui à notícia apresentada em manchete um sentido objetivamente enganador” porque “se o Diário de Notícias tivesse conferido os motivos apresentados para estas ausências – coisa que, para que fosse possível produzir a referida manchete, decidiu omitir da notícia -, notaria que, das 129 faltas atribuídas a deputados do Bloco de Esquerda, 119 resultam do cumprimento das medidas de segurança impostas pela pandemia de Covid-19 (justificadas como ‘força maior’ durante o período em que vigora a redução de deputados no plenário)”, lê-se.

Conclusão

Assim sendo, o artigo que André Ventura levou para o debate como parte da estratégia de “acabar com” a candidata do Bloco de Esquerda, como o próprio admitiu, não serve esse propósito e é enganador. Isto porque as faltas foram contabilizadas pelos serviços do Parlamento sem distinguir o que é falta obrigatória por motivos de lotação reduzida do hemiciclo e falta dada por outro motivo qualquer. O artigo, que cita números corretos, foi contestado e, horas depois, o mesmo jornal publicou outro artigo centrado no contexto das faltas por força da pandemia. Resumindo: o artigo em causa tinha um contexto que André Ventura ignorou para fazer valer o seu ponto.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

Enganador

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