O ex-primeiro-ministro José Sócrates disse esta quarta-feira, na sua primeira entrevista depois de ser pronunciado por seis crimes de branqueamento e falsificação de documento, que o juiz Ivo Rosa, na sua decisão, não o declarou corrupto. “O juiz não determina. O juiz não faz afirmações”, disse à TVI. E insistiu: “Ele não me declarou corrupto. Nós estamos na fase de instrução, não se declara isto ou aquilo. O que se faz é definir se alguém vai ou não ou julgamento”.

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Sócrates tentava assim corrigir o jornalista José Alberto Carvalho, que, logo no arranque da entrevista, referia estarmos perante um “momento histórico” em que um ex-primeiro-ministro “foi declarado corrupto” por um tribunal.

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Mas, afinal, o que escreve o juiz Ivo Rosa no despacho que pronuncia cinco dos 28 arguidos, embora sem grande parte dos crimes de que vinham acusados, no processo da Operação Marquês?

Depois de ter deixado cair os três crimes de corrupção que constavam da acusação, o magistrado, ao avaliar os valores que José Sócrates recebeu do amigo Carlos Santos Silva, considerou que 1,7 milhões de euros saíram das contas do empresário para pagar  – ora em numerário, ora diretamente – viagens ou despesas de Sócrates ou de pessoas da sua esfera. Quando proferiu a decisão em direto, a partir do Campus da Justiça, em Lisboa, Ivo Rosa disse mesmo que a “realidade do alegado por ambos os arguidos” para justificar o dinheiro que passou de um para o outro — a de que seriam apenas empréstimos — suscita “dúvidas”.

Apesar de não ser crime emprestar dinheiro a um amigo, a forma como o dinheiro chegava a Sócrates, as conversas que ambos mantinham ao telefone, numa linguagem codificada, e as despesas pagas indiciam “um mercadejar do cargo” e um certo “clima” de utilização do cargo de primeiro-ministro, disse o juiz. “O facto de ser primeiro-ministro conduzia a essas entregas”, afirmou o juiz, para quem “Carlos Santos Silva era pago pelo Grupo Lena para abrir portas”.

Os factos indiciados quanto às entregas em numerário indiciam, deste modo, a existência de um mercadejar com o cargo por parte do primeiro-ministro face ao arguido Carlos Santos Silva e, por conseguinte, uma invasão do campo da “autonomia intencional” do Estado“, escreve o magistrado no despacho.

Assim, para Ivo Rosa, não está em causa o crime de corrupção passiva de titular de cargo político, na forma de co-autoria entre os arguidos José Sócrates e Carlos Santos Silva — como aqueles que lhes imputava o Ministério Público —, mas um outro tipo de corrupção: “Não podemos deixar de ter em atenção que o que se mostra claramente indiciado, resultando inclusive do alegado pela acusação, é que o arguido Carlos Santos Silva era pago pelo Grupo Lena para lhes trazer informações, contactos e lhe abrir os mercados para se expandir internacionalmente, e que o arguido José Sócrates seria um dos contactos que o arguido Carlos Santos Silva dispunha, sendo que este arguido pagaria por sua autoria e iniciativa ao arguido José Sócrates, tal como o fazia com outros contactos que detinha”.

Sócrates “mercadejou” com o cargo de primeiro-ministro. O crime de surpresa encontrado por Ivo Rosa — que também prescreveu

Esse outro crime é o de corrupção sem demonstração de ato concreto, para o qual Ivo Rosa encontrou indícios fortes. Se o magistrado não tivesse encontrado esses indícios fortes, não poderia sequer admitir a possibilidade de pronunciar os arguidos e o facto de o ter referido como “claramente indiciado” mostra que considera que haveria um alto grau de probabilidade de condenação, caso seguisse para julgamento. José Sócrates afirmou, referindo-se ao juiz: “Ele não me declarou corrupto”. Mas um juiz de instrução nunca o poderia fazer — Ivo Rosa foi o mais longe que era possível nesta fase do processo. Aliás, o crime de corrupção sem demonstração de ato concreto só não segue para tribunal porque já prescreveu.

Não prescreveu, porém, um outro crime diretamente relacionado com o de corrupção sem demonstração de ato concreto: o de branqueamento de capitais. Aliás, para ir a julgamento esse crime tem sempre que estar associado a um crime de corrupção. Por isso, ao indiciar José Sócrates por branqueamento, Ivo Rosa está já a tomar por certo que o dinheiro branqueado resulta de atos de corrupção.

Conclusão:

A afirmação de José Sócrates é enganadora. É certo que não cabe a um juiz de instrução declarar que um arguido é culpado ou inocente, mas, com a frase, Sócrates procura desvalorizar a gravidade daquilo que Ivo Rosa efetivamente disse. E o magistrado, que foi muito detalhado ao deixar cair outros três crimes de corrupção, considerou que pelo menos 1,7 milhões de euros que Sócrates recebeu terão sido pagos pelo cargo que ocupava — cargo com o qual o ex-primeiro-ministro terá negociado, admitindo a compra da sua personalidade para estar à disposição do empresário. Ou seja, para o magistrado, há indícios claros de que Carlos Santos Silva pagou a José Sócrates porque, ao relacionar-se com ele, abria portas ao Grupo Lena, para o qual trabalhava. Sem que para isso fosse efetivamente necessário Sócrates demonstrar qualquer ato corruptivo — daqui o crime de corrupção sem demonstração de ato concreto.

Se o crime não estivesse prescrito, Ivo Rosa podia mesmo ter alterado os crimes da acusação, dando-lhes uma nova configuração antes de seguirem para julgamento. Não o podendo fazer, no entanto, o magistrado fez questão de referir que considerou estar perante este tipo de crime de corrupção — um crime que já não existe na lei (mas existia à altura em que terá sido praticado) e que agora é considerado um crime de recebimento indevido de vantagem.

Acresce a isto que um juiz de instrução tem a tarefa de determinar o grau de probabilidade de uma determinada acusação levar a uma condenação. Para considerar que o crime de corrupção sem demonstração de ato concreto só não segue para julgamento porque já prescreveu, Ivo Rosa mostra que considera que, caso seguisse, o mais provável era que José Sócrates fosse condenado — algo que o antigo primeiro-ministro procura desvalorizar.

Assim, segundo a classificação do Observador, este conteúdo é:

ENGANADOR

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