Começou a circular nas últimas semanas nas redes sociais um vídeo que, aparentemente, mostra o Papa Francisco a rejeitar o cumprimento que lhe era dirigido por parte do cardeal nigeriano Francis Arinze durante uma celebração na Praça de São Pedro, no Vaticano. Em mensagens que acompanham o excerto, é imputada ao Papa uma atitude alegadamente racista, uma vez que Arinze é o único cardeal negro da fila de cardeais que Francisco cumprimenta — e é também o único de quem o Papa se desvia.

Numa publicação vista pelo Observador, o excerto é acompanhado por uma mensagem onde se lê: “Nem é preciso legendas. Nem disfarçou.” Além desta mensagem, surgem várias hashtags com referência ao racismo, incluindo #noracism, #racista, #racism, #black, #porco, entre outras. Contudo, o vídeo é retirado do contexto — quer do contexto da celebração onde foi captado, quer do contexto mais abrangente do pensamento do Papa Francisco e da sua relação com o cardeal Arinze. Afinal, o que está em causa?

O vídeo foi captado pelas câmaras televisivas do Vaticano no dia 2 de abril, nas celebrações do Domingo de Ramos (que dão início à Semana Santa, que culmina com o Domingo de Páscoa), na Praça de São Pedro — num momento em que o Papa Francisco cumprimenta os vários cardeais presentes na celebração. Visivelmente fatigado, Francisco, que tinha passado alguns dias internado no hospital devido a problemas respiratórios, é transportado numa cadeira de rodas para a sessão de cumprimentos aos cardeais.

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Os cumprimentos aos primeiros dois cardeais são feitos sem grande problema, uma vez que ambos cumprimentam o Papa Francisco com um aperto de mão simples.

O problema surge no terceiro cardeal, o nigeriano Francis Arinze, que, em vez de um aperto de mão simples, opta por se inclinar na tentativa de beijar o anel do Papa. É nesse momento que o Papa Francisco volta a cara, tenta puxar a mão direita e, com a mão esquerda, pede ao cardeal que pare. Arinze respeita o pedido do Papa Francisco — que continua a cumprimentar com um simples aperto de mão os restantes cardeais.

A rejeição do cumprimento tradicional com que Francis Arinze procurava saudar o Papa Francisco tem sido interpretada por alguns utilizadores na internet como uma demonstração de racismo da parte do líder da Igreja Católica. Contudo, na verdade, a atuação do Papa Francisco vai em linha com o que tem sido a sua prática de recusar aquele cumprimento tradicional, muito usado no passado, mas cada vez mais a cair em desuso. Aliás, há múltiplas gravações do Papa Francisco a rejeitar beijos no anel por parte de fiéis que o cumprimentam, às vezes de forma bastante veemente — como é possível, por exemplo, ver neste vídeo publicado pelo jornal britânico The Guardian.

O próprio Vaticano já explicou abertamente que o Papa Francisco não gosta de ser cumprimentado com um beijo no anel, sobretudo por questões de higiene, quando o pontífice cumprimenta um grande número de pessoas de seguida, uma vez que pode haver transmissão de algum vírus ou bactéria entre as várias pessoas que o cumprimentam — embora Francisco permita, em ocasiões específicas e mais controladas, que o seu anel pontifício seja beijado.

Por outro lado, não há qualquer indicação que aponte para uma relação azeda entre o cardeal Francis Arinze e o Papa Francisco. Embora Arinze seja genericamente apontado como uma figura da ala conservadora da Igreja e tenha discordado publicamente do Papa Francisco no debate sobre a possibilidade de abrir a comunhão sacramental aos divorciados que voltaram a casar, o cardeal de 90 anos, que liderou a Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos até 2008, tem uma relação cordial com o Papa.

Uma análise semelhante foi feita poucos dias depois de o vídeo ter começado a circular pelo padre nigeriano James Anyaegbu, uma espécie de estrela da internet católica e fundador da organização Faith-Chat Platform. No Twitter, o sacerdote, que é da mesma nacionalidade que o cardeal Arinze, procurou dissipar as alegações sobre o vídeo.

“Tenho visto muitos comentários sobre o incidente, no Domingo de Ramos, com o Papa Francisco e o cardeal Arinze”, escreveu o padre. “Embora não tenha a certeza dos detalhes, conheço a forte relação entre o Papa Francisco e o cardeal Francis, caracterizada por respeito mútuo, o que me leva a crer que qualquer ação negativa entre os dois, como racismo ou má-vontade, pode ser inteiramente excluída.”

“Além disso, é sabido que o Papa Francisco já expressou a sua convicção de que o seu anel não deve ser beijado, já que o vê como um vestígio dos privilégios aristocráticos adotados na Igreja, que ele considera mundanos”, escreveu ainda o padre James Anyaegbu. “Durante os cumprimentos públicos e as audiências privadas, os responsáveis do protocolo costumam anunciar que as pessoas devem evitar beijar o anel do papa. Em vez disso, podem optar por um beijo no rosto, um abraço ou um aperto de mão.”

Conclusão

Embora o vídeo seja verdadeiro, surge descontextualizado e a interpretação de racismo que é feita é manifestamente falsa: o Papa Francisco rejeita habitualmente ser cumprimentado com um beijo no anel e tem uma relação cordial bastante documentada com o cardeal Arinze. O que aconteceu no vídeo divulgado não é, por isso, qualquer novidade.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ENGANADOR

No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:

PARCIALMENTE FALSO: as alegações dos conteúdos são uma mistura de factos precisos e imprecisos ou a principal alegação é enganadora ou está incompleta.

NOTA: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

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