A tese
Pedro Silva Pereira alega que o resgate só aconteceu porque o PSD chumbou o famoso PEC IV em abril de 2011, inviabilizando o programa que negociou com a Comissão Europeia e com Angela Merkel. Mais, diz que o PSD foi parte importante das negociações, mostrando para isso entrevistas de Eduardo Catroga (do PSD) chamando a si os louros da negociação. O objetivo é colocar nas mãos do PSD a responsabilidade total pela troika, da sua chamada à sua execução.
Os factos
- O PEC IV não tinha de ser votado na Assembleia. Foi-o porque José Sócrates (já sabendo da oposição do PSD), quis apoio político para um novo programa de austeridade que, acreditava, salvaria o país por ter o acordo da Comissão Europeia, Conselho Europeu e BCE.
Antes de o entregar em Bruxelas, porém, Sócrates teve uma só reunião com Passos Coelho – a quem pediu apoio para o documento. E não falou dele ao Presidente da República, que soube da sua existência através de uma comunicação pública de Teixeira dos Santos. - A esmagadora maioria das medidas do PEC não tinham de passar pelo Parlamento. Tratava-se sobretudo de medidas de corte de despesa, que podiam ser decretadas pelo Governo, sem que os deputados tivessem “reserva de soberania” – ou seja, uma palavra a dar.
- Sócrates não tinha de se demitir por causa do chumbo do PEC IV: o que foi a votos foi uma resolução do Conselho de Ministros – e um Governo só cai automaticamente com uma moção de censura ou com o chumbo de um orçamento;
- É verdade, porém, que o Governo de Sócrates perderia, com esse PEC IV, qualquer apoio político na Assembleia. Depois de Ferreira Leite ter viabilizado o primeiro orçamento da legislatura em março de 2010; depois de Passos ter aprovado as primeiras medidas de austeridade de Sócrates em junho do mesmo ano; depois de o PSD se ter abstido no Orçamento de Estado para 2011, Passos deixou claro na noite em que foi conhecido esse documento que não daria mais apoio às medidas do Governo minoritário do PS. Como o CDS, o PCP e o Bloco de Esquerda se recusaram a fazê-lo desde o primeiro momento, Sócrates teria fim à vista em outubro, cinco meses depois, com o Orçamento seguinte.
- Mas é possível argumentar que podia ter executado medidas até lá, tentando provar que aquele documento seria suficiente para tirar Portugal da linha de fogo.
- Outra questão central é saber se o PEC IV conseguiria evitar o resgate – e para isso há leituras diversas. Portugal começou a estar sob fogo dos investidores a meio de 2010, antes do primeiro resgate grego. Isso aconteceu muito por contágio deste, mas também porque países como Portugal, a Irlanda e Espanha tinham aumentado muito a sua dívida pública, sem conseguirem ritmos de crescimento que permitissem antever a sua capacidade de a pagar. Desde aí até março de 2011, os juros da dívida em mercado secundário dispararam, levando a que também as emissões de dívida do Estado fossem feitas a montantes muito elevados.
Nos meses seguintes, o Estado teria de voltar ao mercado de dívida com somas muito avultadas – largamente suplantando o que estava orçamentado. E sem financiamento, o Estado estrangularia. Nem o PEC inicial, nem a segunda ou terceira versão foram suficientes para devolver confiança sobre a capacidade de Portugal se financiar.
Sócrates apostou tudo, por isso, em negociações secretas com a Comissão Europeia e com conhecimento do BCE. A ideia era ter um programa de austeridade robusto que, tendo a luz verde das instituições europeias, colocasse o BCE a financiar indiretamente a dívida portuguesa (para além do que já fazia com os bancos, que compraram dívida pública como nunca antes). Na verdade, esse passo ousado do BCE só chegou em 2012, dois anos depois, quando Mario Draghi ameaçou fazer “tudo” o que fosse preciso para salvar estados em perigo (de novo a Grécia). Só este ano o BCE implementou o Quantitative Easing, baixando juros de toda a periferia, mas sob mote de uma inflação que há muito estava próximo do zero.
Voltando à questão: chegaria o PEC IV para baixar os juros e impedir um resgate? A maior parte dos economistas não acredita. Mas Sócrates e o PS poderão sempre argumentar que nunca vamos saber. E também podem argumentar que Passos Coelho, sempre que negociou ou quando ‘chumbou’ o PEC IV, argumentava que o fazia porque era preciso acabar com a austeridade, que pesava muito e não estava a resolver o problema. Para Passos, nessa altura, a mudança de Governo ajudaria a resolver o problema. - Outra questão, levantada por Silva Pereira: o chumbo do PEC IV ditou a inevitabilidade do resgate? A resposta correta seria que a demissão do Governo e a inexistência de um acordo sobre as medidas futuras levaram, sim, a uma bola de neve: as agências rating, que já tinham descido alguns degraus a nota do país, colocaram-no na categoria de lixo; os custos de financiamento subiram ainda mais; o financiamento do Estado tornou-se impossível. Mesmo assim, Sócrates tentou resistir. E só a intervenção de Teixeira dos Santos, então ministro das Finanças, permitiu evitar que o Estado entrasse em falência. Sócrates cortou relações com ele, mas Teixeira dos Santos acabaria por receber (por isso) uma condecoração do Presidente Cavaco Silva, no último 10 de junho. “É um reconhecimento de que fiz o que era importante para o país”, disse o ex-ministro nesse dia.
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- E, afinal, quem negociou com a troika? Quando chegaram a Portugal, os representantes das três instituições quiseram reunir com os vários partidos. Havia eleições à frente e pretendiam garantir o máximo consenso, para não existirem dúvidas sobre a aplicação do programa que fosse negociado. Só o PCP e Bloco se recusaram a sentar-se à mesa antes do acordo.
Eduardo Catroga foi designado por Passos como chefe da equipa do partido. A reunião foi muito longa, com Catroga a descrever a sua visão do que devia ser o programa exaustivamente (embora Passos Coelho diga agora que a reunião só durou uma hora). Depois disso, os contactos oficiais com a negociação passariam a acontecer através de Pedro Silva Pereira, que se comprometeu a dar conta da evolução das negociações a todos os partidos.
Acontece que Eduardo Catroga não esperou. E começou a enviar para os jornais cartas públicas, pedindo dados e esclarecimentos adicionais ao Governo socialista, fazendo-lhe várias críticas. Silva Pereira decidiu responder-lhe por carta – e deixou a partir daí o PSD de fora dos seus contactos oficiais. Isso não quer dizer, porém, que o PSD não tenha tentado influenciar as negociações. As cartas de Catroga eram pressão para encaminhar o documento para o que o partido entendia ser melhor; e os contactos de alguns elementos do PSD com pessoas da troika (como de Carlos Moedas com António Borges, à época responsável pelo FMI na Europa) eram frequentes. - Mas o que diziam, então, as cartas de Eduardo Catroga a Silva Pereira?
A primeira foi a 20 de abril e dizia que o PSD considerava “ultrapassadas as projecções de base incluídas no PEC 4”, que estavam a servir de base às negociações – vistas como irrealistas e incumpríveis (devido a factores como as empresas públicas, os efeitos do BPN ou a suspensão das medidas previstas pelo Governo, logo que a demissão aconteceu;
Seis dias depois, Catroga reforçava o pedido de mais informação ao Governo. Informações que dizia serem “essenciais para o devido acompanhamento do processo negocial. E acrescentava que “até à data, ainda nenhuma informação” tinha sido prestada sobre o estado financeiro de empresas públicas, das PPP;
Dois dias passados, outra missiva, pedia”as informações necessárias para um cálculo sólido, baseado em pressupostos realistas e completos, das reais necessidades de financiamento do País para o período 2011-14″. Silva Pereira já tinha respondido, dando alguns dados, mas Catroga dizia que “a informação prestada [era] escassa, incompleta e pouco tempestiva.”
A troca epistolar voltava a 2 de maio: “Senhor Ministro, estamos a 2 de Maio e o PSD não recebeu a devida informação. A responsabilidade pelo facto tem de ser imputada ao Governo, e só ao Governo.” - Como é que tudo acabou? Do ponto de vista político, o PSD e o CDS foram-se distanciando da versão final. Mas acabaram por enviar uma carta à troika, comprometendo-se a cumprir as metas fixadas, mas pedindo flexibilidade para melhor escolherem, depois das eleições, as medidas a aplicar.
Eduardo Catroga deu uma conferência de imprensa mostrando-se feliz por ter influenciado o resultado final. Em quê? Por exemplo, na trajetória definida para o défice (mais estendida do que no PEC IV), também no facto de o memorando não tocar nas reformas de invalidez. Eis o que dizia Catroga nessa noite:
“Nas medidas de austeridade do PS não se falava na necessidade de reduzir o gordo Estado paralelo, falava-se em privatizações, mas que eram sempre adiadas, não se falava em produtividade, em competitividade. Portanto, nós temos agora uma oportunidade única. Penso que o PSD, através da equipa que eu chefiei, deu um grande contributo para este processo. Portugal vai ter aqui uma oportunidade de fazer as reformas que se impõem, para dar esperança aos portugueses, para dar esperança à juventude”. - Já agora, vale a pena lembrar que os partidos disputavam, nessa altura, os louros da negociação. José Sócrates, neste mesmo dia e com Teixeira dos Santos atrás, de braços cruzados em baixo, fez uma intervenção orgulhava-se de uma negociação que pouca mais austeridade tinha do que o famoso PEC IV.
A conclusão
Enganador (muito). O resgate não aconteceu porque o PSD chumbou o PEC IV, mas porque Portugal apresentava condições de financiamento cada vez mais apertadas desde o meio de 2010, não conseguindo com as sucessivas medidas de austeridade dar a confiança aos investidores de que o país conseguiria pagar as suas dívidas. O que o PS pode argumentar, no limite, é o que o PSD não permitiu aplicar a última tentativa de evitar o resgate, que Sócrates negociou com Bruxelas.
Quanto às negociações, não há dúvida de que o processo foi todo conduzido pelo Governo de José Sócrates, com (muito) pouca influência do PSD ou de qualquer outro partido. As entrevistas de Catroga à data, reclamando louros, eram pura propaganda política – como foi a declaração de Sócrates mostrando o memorando que, dizia, tinha evitado o pior.