A renovação do 11º estado de emergência (EE) por mais 15 dias foi aprovada na última quinta-feira no Parlamento. Uma publicação anterior a esta data — feita no Facebook a 6 de fevereiro — alega que, quando findasse o estado de exceção em vigor, seria possível reabrir o país, especialmente porque “todos os crimes de desobediência caducam ao fim do estado de emergência, que se [daria] precisamente neste fim de semana”. Para defender essa tese, a página cita um suposto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), de 3 de dezembro de 2020, sobre a “caducidade da cominação do crime de desobediência”. Atingiu as 124 partilhas. Trata-se, no entanto, de uma publicação falsa.
Ora, este suposto acordo começou por ser divulgado na página “Juristas pela Verdade”, semelhante a outras com denominação semelhante — como a página dos alegados “Médicos Pela Verdade”, entretanto extinta. Nesse documento, que não foi publicado nem está disponível de forma virtual (no site da DGSI), como admitido no próprio vídeo, fala-se de um caso de crime de desobediência referente a abril do ano passado. É referido que o episódio teria ocorrido a 23 de março, mas esse é o único dado avançado no post.
O Observador contactou o Tribunal da Relação de Lisboa para obter mais esclarecimentos sobre o acórdão, que teria sido proferido a 3 de dezembro de 2020. Mas, por não dispor de mais dados sobre o processo — o nome do juiz ou o número do processo, por exemplo, que não são referidos na publicação —, não foi possível verificar a veracidade do documento. Sobre o conteúdo desse mesmo acórdão, importa olhar para o que se alega na publicação analisada: considerando que o estado de emergência que vigorava em março do ano passado terminou no dia 3 de abril, o crime cometido durante esse período deixaria de ter efeito legal a partir do momento em que terminasse esse período de exceção (que tem de ser renovado pelo Parlamento a cada 15 dias).
“Em primeiro lugar, não é possível confirmar a veracidade do teor da publicação, porque [o acórdão] não se encontra publicado, o que não deixamos de estranhar, já que, em regra, as decisões dos tribunais superiores, como é o caso da Relação de Lisboa, encontram-se disponíveis naquela plataforma”. É assim que, em declarações ao Observador, Pedro Barosa, advogado e sócio contratado da Abreu Advogados, começa por se referir a este suposto caso: ele não é passível de ser verificado em concreto, tendo em conta que o acórdão não é público.
Mas vamos a um dos pontos suscitados pela publicação: é verdade que, findo um determinado estado de emergência, os crimes praticados durante esses 15 dias “caducam”? Isto é, os autores desse crime deixam de poder ser responsabilizados assim que finda determinado estado de emergência, como sugere a publicação? É isso que sugere a publicação quando lança a missiva “reABRIR PORTUGAL”. “Sem receios! No [último] fim de semana […] podemos reabrir, com coragem, sem receio de sanções” porque, alega-se, “como o próprio acórdão revela, todos os crimes de desobediência caducam ao fim do estado de emergência” que se dava no último domingo (mas que, já se sabe, foi renovado pelo Parlamento por mais 15 dias).
Se o crime de desobediência às medidas sanitárias deixa de ter efeito assim que finda um determinado estado de emergência, o advogado Paulo Otero, também ouvido pelo Observador, reitera que “esse crime não existe apenas para situações de estado de exceção: o crime é geral e está tipificado”. Ou seja, mesmo que o estado de exceção termine, a “pessoa será sempre julgada”. “Deixa de existir uma imperatividade tão intensa nas ordens das autoridades, não estando todas sujeitas ao crime de desobediência. Mas todos podem ser julgados por crimes praticados durante um estado de emergência. O crime continua, não desaparece”, conclui o advogado.
No mesmo sentido, Pedro Barosa reforça que não é porque se sai do estado de emergência que alguém deixa de ser julgado por um crime que cometeu durante esse período. “A circunstância do estado de emergência deixar depois de vigorar não significa que deixe de ser julgado por esse crime. Se assim fosse, no limite, e por hipótese académica, teria de ser logo submetido a audiência de julgamento dentro de um período mínimo de 15 dias em que vigorasse o estado de emergência, situação que seria absurda e até limitadora dos direitos de defesa do arguido”, conclui.
Já vimos que alguém que pratique um crime de desobediência continua a ter de responder pelo seu crime, mesmo que só venha a fazê-lo após o fim do estado de exceção. Outra questão é saber se o crime de desobediência apenas vigora em períodos de exceção, como no caso de um estado de emergência: como vamos ver, isso também não é verdade. O crime de desobediência está inscrito no Código Penal e vigora em períodos de normalidade constitucional.
Mesmo considerando que alguns termos da publicação são “confusos”, o advogado explica que qualquer crime ou pena necessita de uma lei prévia para poder ser considerado. “As penas são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos do que dependem” refere o advogado. Por outras palavras, para que uma determinada ação possa ser considerada crime, ela tem de estar previsto no quadro legal em vigor no momento em que for praticada.
Neste caso, tratando-se de uma lei temporária de natureza penal ligada ao crime de desobediência por não cumprimento de medidas sanitárias contra a Covid-19 — que decorre, por exemplo, durante o estado de emergência — a sua aplicação limita-se aos “factos que tenham tido lugar durante esse âmbito de vigência”, ou seja, “cessam, por caducidade, quando for atingido o terminus desse prazo”, afirma. Mais uma vez, por outras palavras: o crime de desobediência a medidas sanitárias aplicadas durante o estado de exceção deixa de vigorar quando esse estado terminar.
Segundo Pedro Barosa, de facto, a norma penal que estabelece aquele tipo de crime que vigorou entre as 00h00 de 31 de janeiro e as 23h59 de dia 14 de fevereiro “cessa a sua vigência” no fim dos 15 dias, mesmo que o estado de emergência seja renovado por decreto do Presidente da República, e mesmo que contenha exatamente a mesma norma penal temporária. Assim sendo, em teoria, a publicação viral estaria, em tese, correta. Na prática, o caso é diferente.
“Não corresponde à verdade a afirmação de que ‘com tal cessação caducarão igualmente todas as cominações do crime de desobediência feitas durante o respetivo período’, pois antes de se concluir que um comportamento não consubstancia a prática de um crime, ter-se-á de verificar se essa conduta preenche ainda o tipo previsto noutras normas penais em vigor”, explica. Ou seja, dentro do Código Penal, estão previstos outros tipos de crimes de desobediência, sem a natureza temporária do que foi referido, como no art.348º ou o artigo 304º.
Terminado o estado de exceção, o crime de desobediência continua a vigorar porque está previsto para um tempo de normalidade legislativa. Portanto, uma pessoa pode não ser punida pelo crime de desobediência inscrito no anterior decreto do estado de emergência por ter tido uma conduta fora desse período, mas pode praticar, na mesma, os anteriores crimes semelhantes inscritos no Código Penal.
Paulo Otero, que é também professor da Faculdade de Direito, tem a mesma opinião de Pedro Barosa, destacando, porém, que este é um suposto “caso concreto”, que não pode ser “aplicável a outros”. “Tenho grandes dúvidas sobre o fundamento da decisão. Quando o estado de emergência é renovado, automaticamente existe uma norma idêntica no decreto seguinte, ou seja, existe a previsão normativa continuada de que o incumprimento pelas ordens ou pelas determinações inerentes ao estado de emergência gera crime de desobediência”, esclarece.
Conclusão
Não é verdade que todos os crimes de desobediência tenham expirado no último fim de semana, quando terminou o anterior estado de emergência — que foi renovado por mais 15 dias. Estando este crime ligado a uma lei temporária de natureza penal, é certo que a sua aplicação se limita à duração do estado de exceção. No entanto, tal como previsto no Código Penal, e esclarecido quer pelo advogado Paulo Otero, professor universitário, quer pelo advogado Pedro Barosa, sócio contratado da Abreu Advogados, continua a existir o crime de desobediência geral, sem natureza temporária, tal como está escrito no artigo 348º e no artigo 304º.
Além disso, qualquer pessoa que cometa esse tipo de crime durante a vigência de um estado de emergência será julgada pelo mesmo, ainda que o processo corra os seus termos após o fim desse estado de exceção.
Convém também referir que o acordo do Tribunal da Relação de Lisboa, que foi partilhado nas redes sociais, não foi tornado público nem se encontra no site da DGSI.
Assim, segundo a classificação do Observador, este conteúdo é:
ERRADO
No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:
FALSO: As principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.