A história vem desde o ano da morte de Nelson Mandela. A 6 de dezembro de 2013, um dia depois da morte do antigo líder sul africano, o Parlamento aprovou por unanimidade um voto de pesar. Mas PCP e Bloco de Esquerda fizeram questão de lembrar que Portugal votou, ao lado de Margareth Tatcher (Reino Unido) e Ronald Reagan (EUA) contra a resolução da ONU que exigia a libertação de Nelson Mandela. Agora, a 6 de novembro de 2019, uma publicação de uma utilizadora do Facebook recorda isso mesmo para que “a memória não se apague”.
É verdade que o governo de Cavaco votou contra a resolução em causa, mas as publicações que fazem acusações ao antigo Presidente da República sugerem que Cavaco não queria a libertação de Mandela. O que não é verdade, já que Portugal, nesse mesmo dia, votou a favor de uma resolução que exigia igualmente a libertação imediata de Mandela, embora com outros pontos diferentes.
É preciso recuar a 20 de novembro de 1987, quando a Assembleia Geral da ONU analisou oito resoluções relacionadas com o ‘apartheid‘ na África do Sul. Destas oito, só sete é que foram votadas, já que uma delas foi adotada sem votação: a A/RES/42/23H, que promovia o aumento do fundo das Nações Unidas para a África do Sul.
Portugal aprovou uma resolução absteve-se em três resoluções votou contra três resoluções. Quanto aos votos contra, Portugal votou (ao lado de mais 28 países) contra uma resolução relativa às relações entre Israel e a África do Sul (resolução A/RES/42/23D) e contra uma resolução que aprovava sanções contra “o regime racista da África do Sul” (resolução A/RES/42/23C). Houve ainda uma terceira resolução que Portugal rejeitou, a A/RES/42/23A, e é essa que está na base da polémica. Isto porque o ponto 4 desta resolução exigia a “libertação incondicional de Nelson Mandela, Zephania Mothopeng e todos os outros presos políticos“.
Mas Portugal fez uma declaração de voto, através do embaixador Duarte Ramalho Ortigão, a explicar que não apoiava esta resolução porque legitimava a luta armada. O embaixador António Monteiro, que era então chefe de gabinete do secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros Durão Barroso, lembrou em 2013 em declarações ao Público que a declaração era “a favor da luta armada e que, por causa da nossa comunidade, não podíamos apoiar”, e que isso está vertido na declaração de voto portuguesa. De facto, o ponto dois dessa resolução reafirmava a “legitimidade da luta do povo sul-africano e o direito de utilizarem os meios necessários, incluindo a resistência armada, para erradicarem o apartheid“.
É verdade que apenas três países votaram contra esta resolução: Portugal, cujo primeiro-ministro era Cavaco Silva, o Reino Unido de Margareth Tatcher e os Estados Unidos de Ronald Reagan, tal como consta da publicação da utilizadora do Facebook. Houve, no entanto, 22 abstenções de outros países. É, no entanto, abusivo sugerir que Portugal e o governo de Cavaco Silva em particular, esteve contra a libertação de Nelson Mandela. Isto porque, no mesmo dia, Portugal votou a favor de uma declaração (A/RES/42/23G) que exigia a libertação de Mandela e de outros presos políticos, bem como um conjunto de outras exigências ao governo sul-africano. O título dessa resolução era “Acção internacional concertada para a eliminação do apartheid” e teve apenas dois votos contra: de EUA e Reino Unido. E quatro abstenções. Já Portugal, bem como mais 148 países, votaram a favor.
A diferença é que, no argumentário, eram utilizadas menos vezes expressões como “o governo racista da África do Sul” e já não havia referência à resistência armada como uma ação legítima para combater o apartheid. Na resolução aprovada por Portugal está a exigência na alínea a) do ponto 4: a “libertação imediata e incondicional de Nelson Mandela e de todos os outros prisioneiros políticos“. Nessa mesma resolução, embora tivesse votado contra as sanções, era pedido ao Conselho de Segurança que aplicasse sanções à África do Sul.
José Cutileiro — que era diretor político do Ministério dos Negócios Estrangeiros quando se deu o voto e, mais tarde, embaixador de Portugal em Pretória quando Mandela foi libertado — disse em declarações ao Público em 2013 que as relações do país com a África do Sul não ficaram afetadas pelo voto contra de uma das resoluções. Lembrou até que Mandela visitaria Portugal (e encontrou-se com Cavaco em São Bento) seis anos depois deste acontecimento, em 1993. Apesar disso, Cutileiro admitia que Cavaco Silva, em 1987, não era propriamente um entusiasta de Mandela. Isto porque a comunidade portuguesa, até pelo tipo de comércio que tinha na África do Sul, era um dos alvos do CNA (partido de Mandela), na luta contra o apartheid.
Conclusão
Apesar de Portugal ter sido dos países mais permissivos para com o regime sul-africano é abusivo dizer que o governo de Cavaco Silva foi contra a libertação de Mandela. Utilizar um voto de Portugal contra uma resolução das Nações Unidas que defendia a libertação de Mandela como o exemplo que não pode ser esquecido de um voto do governo de Cavaco contra a libertação de Mandela é enganador. Isto porque, no mesmo dia, Portugal aprovou uma resolução que exigia a “libertação imediata e incondicional de Mandela e de todos os outros presos políticos”. Portugal justificou até, com declaração de voto, o porquê de votar a resolução. Falar apenas de uma resolução, quando duas outras abordavam o mesmo assunto, é truncar um acontecimento histórico.
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