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“O músico que apenas sabe de música, nem de música sabe” |
Volto a começar uma newsletter a pensar em Leonard Bernstein. O maestro norte-americano disse, em 1957, o seguinte: |
“Não quero ceder e deixar-me assentar numa especialidade. Não quero passar a vida como Toscanini passou a sua, a estudar única e exclusivamente as mesmas cinquenta peças de música. Iria aborrecer-me de morte. |
Quero dirigir orquestras. Quero tocar piano. Quero escrever música para Hollywood. Quero escrever música sinfónica. Quero continuar a tentar ser, no sentido mais completo dessa palavra maravilhosa, um músico. Também quero ensinar e quero escrever livros e poesia. Estou convencido de que consigo fazer justiça a tudo isto, o que não posso é ocupar-me de tudo ao mesmo tempo. |
Tenho de aprender a fazer uma coisa de cada vez e dar-lhe todo o meu empenho até chegar ao resultado que quero. Mozart, Mendelssohn, Bach, Haydn, todos foram intérpretes, maestros e compositores entre as muitas outras coisas que fizeram. A única diferença é que na altura deles as pessoas tinham mais tempo.” |
Quando Bernstein fez esta reflexão o maestro Arturo Toscanini tinha acabado de morrer, aos quase noventa anos e com uma aura de temível e indefectível guardião do grande repertório sinfónico. É conhecida a sua natureza exímia e intransigente, assim como a atmosfera de terror com que exercia o poder a partir do pódio de maestro. São lendários, embora tristes, os acessos de raiva que pautaram a sua forma de trabalhar, assim como o tom em que se dirigia aos músicos da sua lendária Orquestra da National Broadcasting Company, criada especificamente para o maestro italiano quando este já tinha emigrado para os EUA. |
Porque nunca é demais recordar que o tempo das tiranias já acabou, experimentem ver (ouvir) a forma como destratava os seus músicos. É aterrador e não tem lugar nos dias de hoje. |
Em todo o caso, e apesar do respeito que Toscanini certamente lhe inspirava, a verdade é que Bernstein confessa abertamente que levar uma vida assim o iria aborrecer de morte. E como eu o compreendo! |
Toscanini foi, na sua obstinada busca pela perfeição, um artista anacrónico que cortou ligações com a realidade, com o seu tempo e a sua sociedade, refugiando-se na ideia de uma arte superior, capaz de nos elevar do plano humano para o sublime. Qualquer artista que não estivesse à altura dos seus padrões de qualidade e dedicação, era, para ele, um caso desprezível e lamentável. |
Neste sentido, não há grande diferença entre o maestro, que se dedica à repetição, sempre aperfeiçoada, das mesmas nove sinfonias de Beethoven e um monge que, num acesso de ascetismo, se retira do mundo para a contemplação do divino. Ambos os casos estabelecem uma relação própria entre si e o objecto da sua devoção, que é totalmente alheia ao resto do mundo. |
Sim, podemos sempre dizer que o maestro dá forma à beleza musical, que pode ser ouvida pelo público, tal como o eremita, na sua gruta, reza por todos nós. Mas eu pergunto: se não somos participantes da nossa própria salvação, como é que poderemos ser salvos? |
Lembro-me de uma conversa que tive há uns anos com uma amiga que dedicou a maior parte da sua vida à edição de livros — numa prática absolutamente exímia, cuidada e perfeccionista — que sempre me lembrou a Insel Verlag, que surgiu na Alemanha em 1899 e que até 1918 foi como um oásis, ou melhor, uma ilha de perfeição editorial (ou não fosse Insel a palavra alemã para ilha), referida com amor por autores como Stefan Zweig, Thomas Mann ou Hugo von Hofmannstahl. |
Nessa conversa, confidenciei-lhe que, apesar de toda a minha admiração pelo seu ofício, não seria capaz de levar uma vida assim. Na altura, disse mesmo, “levar a vida em funil”, por oposição a uma forma de viver a que chamei “caleidoscópica”. |
Mas tempos houve em que esse funil me parecia a melhor coisa que se pudesse fazer. Encontrar algo que adoro e dedicar-lhe toda uma vida de prática e aperfeiçoamento. No fundo, transformar a famosa máxima que Charles Bukowski nunca disse (“find what you love and let it kill you”) em algo como “encontra o que amas e deixa que isso seja a tua vida”. |
Cheguei a desejar ser assim e lembro-me de um concerto em 2008 no Centro Cultural Olga Cadaval, em Sintra, que foi a primeira vez que assisti ao vivo a um recital do lendário pianista russo Grigori Sokolov. Desde então já tive a ocasião de o ver várias vezes em diversos lugares do mundo e contei-me entre os fãs que correm para as bilheteiras assim que se anuncia um concerto seu. |
Sokolov é um fenómeno de culto que merece análise. |
Começo por referir a sua natureza reservada. O pianista não dá entrevistas, não aceita que os seus concertos sejam gravados (salvo raríssimas excepções) e também não é adepto da gravação de discos. Normalmente repete sempre o mesmo percurso pela Europa e evita incursões a outros continentes. Vive para a sala de concerto e, se o querem ouvir, é só aí que o podem encontrar, à maneira do século XIX antes da indústria fonográfica. É um artista itinerante que leva atrás de si uma legião de fãs como poucos outros músicos do nosso tempo. |
Durante toda uma temporada, Sokolov toca invariavelmente as mesmas peças. Hoje em Lisboa, amanhã no Porto, no mês que vem em Paris, no fim do ano em Dresden. De cada vez que sobe ao palco interpreta a mesma música. Na temporada seguinte muda o programa, mas a prática mantém-se. Normalmente, os seus concertos do ano seguinte são anunciados apenas com datas e a indicação “programa a anunciar”, visto que o pianista ainda não fez o obséquio de indicar o que deseja tocar. E, invariavelmente, com ou sem programa anunciado, os bilhetes voam. |
Quando vi Sokolov em 2008 tive uma experiência quase mística, a lembrar o acidente de Paulo na estrada para Damasco. Foi como uma luz que me causou uma cegueira momentânea. Uma revelação fortíssima e perturbadora. |
Nunca tinha visto tocar piano daquela forma e nem sabia que era possível. Nessa noite, após o concerto, não consegui pregar olho. Na altura ainda estudava piano e a minha consciência partiu-se em duas metades: uma desejava ardentemente tocar piano e não fazer mais nada na vida que não fosse isso, enquanto a outra desejava nunca mais tocar uma nota que fosse, agora que tinha tomado conhecimento daquilo que era tocar piano a sério. |
É claro que, com o passar do tempo, este efeito foi-se desvanecendo. Da última vez que vi Sokolov, deixou-me quase indiferente. Não que o pianista tivesse tocado mal — coisa de que não é capaz — mas porque foi como visitar o mesmo santuário pela décima vez e encontrar tudo na mesma. Não houve espaço para a surpresa e senti que já tinha visto aquele concerto várias vezes antes. |
No fundo, a minha incompatibilidade com Sokolov deveu-se ao facto de a minha vida se ter desenvolvido num sentido mais caleidoscópico e menos afunilado. Tive, desde 2008, uma quantidade de experiências artísticas, profissionais e pessoais, que me fizeram passar do lado de Sokolov ou Toscanini para a bancada de Bernstein. Hoje, sei que uma vida como a do Sokolov iria aborrecer-me de morte, tal como a sua forma de fazer arte me parece pouco genuína. |
O meu primeiro professor de direcção de orquestra incutiu em mim uma máxima que não esqueci desde que a ouvi. Falava do espírito do artista e de como, se este fosse um campo no qual só se cultivam batatas, com o tempo o próprio terreno iria tornar-se cada vez mais árido e infértil, o que acabaria por prejudicar a qualidade das próprias batatas. |
Por outras palavras, como disse Beethoven, “o músico que apenas sabe de música, nem de música sabe”. Fez todo o sentido para mim ouvir aquela metáfora aos vinte anos. Desde então, nunca mais quis ser um campo só de batatas. Em todo o caso, sei que o que estou a dizer é blasfemo para muitos leitores. Como assim, o Sokolov é um batatal? Um pianista que aperfeiçoa cada detalhe, que vai ao mais profundo na exegese de cada partitura que interpreta, como pode alguém como ele ser infértil enquanto artista? |
Diz-se que Sokolov já viaja de avião com a casaca de concerto vestida. É uma brincadeira, é claro, mas dá a entender que a sua vida se resume a simplesmente tocar piano. A sua dieta, enquanto artista e ser humano, faz-se exclusivamente de uma relação intensa com os compositores que interpreta. Por um lado, o nível que atinge é de facto sublime. A sua técnica é inigualável e os detalhes e nuances que obtém não são deste mundo. Mas, por outro lado, por alguma razão, apesar de toda essa profundidade, já há alguns anos que não me sinto arrebatado pela sua forma de tocar, enquanto outros pianistas, sem dúvida mais imperfeitos e menos polidos, são capazes de acender em mim grandes paixões. |
No fim de contas, eu sei que isto é tudo altamente subjectivo. Há quem vá a todos os concertos de Sokolov porque sente que tem aí um encontro com algo de quase sobrenatural, tal como há quem não vá a nenhum dos seus concertos porque os considera um ritual que não tem lugar num mundo que se quer em permanente evolução. |
Tal como Sokolov, há inúmeros exemplos de outros artistas e outras pessoas que estão na vida destas duas formas: como um funil ou como um caleidoscópio. Nenhuma é melhor ou pior, são simplesmente duas formas de estar. A beleza na vida é quando há espaço para todas as formas de ser. |
Eis as recomendações da semana: |
Sokolov na Gulbenkian |
Para verem que não menti, podem consultar a página do concerto que Sokolov irá dar na sua próxima passagem em Lisboa, na Fundação Calouste Gulbenkian. Será só em Março mas já está esgotado. O programa, como de costume, está ainda por anunciar. |
Concertos nómadas em Belém |
No Centro Cultural de Belém, na próxima sexta-feira, 2 de Dezembro, tem lugar um concerto do ciclo “Concertos Nómadas”, em que a instituição abre espaços menos conhecidos à fruição do público, promovendo a transversalidade na utilização do complexo edificado. Desta vez cabe à pianista Christina Margotto um programa intitulado Alma Brasileira, dedicado a alguns nomes maiores da composição no Brasil, como Villa-Lobos ou Camargo Guarnieri.
A nota de curiosidade, e porque sabemos que no Brasil sempre houve abundante fantasia para os nomes, devo referir que o nome completo deste compositor é Mozart Camargo Guarnieri. Se não estava fadado para a música desde o berço, então não sei… Em todo o caso, o apelido Guarnieri é real, pois era filho de um imigrante italiano, e quem sabe se não estará vagamente relacionado com os Guarnieri que construíam violinos em Cremona, de quem falei na newsletter da semana passada. |
ODE em Braga |
Já em Braga, este sábado dia 3 de Dezembro, terá lugar no Gnration um concerto sem dúvida único: toca a ODE, Orquestra de Dispositivos Eletrónicos, um projecto conduzido pelo compositor e artista sonoro Pedro Augusto que demonstra bem porque é que Braga tem o estatuto de Cidade Criativa da rede UNESCO para as media arts. Este evento está inserido na INDEX, Bienal de Arte e Tecnologia. |
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Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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