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“O género é uma construção social.” |
Este postulado, cada vez mais ouvido e conhecido de todos, quer se concorde com ele ou não, insere-se num dos temas mais aguerridos da agenda dos nossos dias, que é a identidade de género. |
Sirvo-me deste conceito porque gostaria de me ensaiar numa breve explicação sobre a forma como os géneros de música (quaisquer que sejam) também são resultado de fenómenos sociais e económicos, e podem, em última análise, ser responsáveis pela nossa ignorância musical. |
Voltamos, portanto, ao ponto em que fiquei na semana passada, quando referi que, tal como houve um momento em que a música passou a ser clássica, também houve um momento em que os géneros substituíram as funções musicais. |
Na última newsletter, insisti na importância de distinguir a história da música da história da escuta da música. Uma coisa é conhecer as grandes correntes criativas da música, nas suas relações temporais e genealógicas entre compositores, estilos, idiomas e expressões criativas. Outra coisa é entender o gosto dos públicos, a sua evolução e a forma como as pessoas se relacionam com a música ao longo do tempo. |
Eis um exemplo que distingue uma coisa da outra: para a história da música, Johann Sebastian Bach é talvez o mais importante compositor de toda a timeline da criação musical. Podemos mesmo chamar-lhe um zénite, tal como o renascimento italiano nas artes pictóricas representa o ponto em que se atingiu o mais perfeito equilíbrio entre a técnica e a estética. |
Por outras palavras, é impossível contar a história da música sem um capítulo dedicado a Bach. |
No entanto, se estivermos a falar da história da escuta da música, o lugar de Bach é completamente diferente. No seu tempo, a música que escrevia era respeitada na medida em que era entendida como tendo grande elevação técnica e teórica, mas cultivá-la era um gosto adquirido, praticado apenas por alguns iluminados. Por essa razão, a sua música não circulava muito para além do espaço em que Bach ou os seus alunos trabalhavam. O agora famoso compositor alemão, nos seus dias, era entendido como um homem cujo tempo já tinha passado e que se recusava a abraçar a música de maior sucesso (no caso, a ópera), preferindo escrever música num estilo que já não se usava e que pouca gente queria ouvir. |
É aqui que começa a história da escuta da música. A forma como a sua música foi ouvida ao longo dos séculos é muito diferente da forma como a ouvimos hoje. Para a maioria dos seus contemporâneos na primeira metade do século XVIII, a obra de Bach servia as suas funções de forma irrepreensível, mas pouco mais que isso. Era música concebida para finalidades pedagógicas e teóricas, como exercício de destreza no instrumento ou com desígnios religiosos, visto que a igreja luterana foi a sua mais constante entidade empregadora ao longo da vida, e o lugar mais provável para o encontrar em dias santos era sentado ao órgão de tubos das várias igrejas por onde foi trabalhando. |
Foi só mais tarde, quase oitenta anos depois da sua morte, que se assistiu ao progressivo renascimento de Bach, com a redescoberta da sua música enquanto fonte de uma beleza estética e profundidade espiritual sem igual. No entanto, mesmo esta descoberta demorou o seu tempo até ser conhecida de todo o mundo, partindo da Alemanha na primeira metade do século XIX e alastrando-se gradualmente até chegar à globalidade que hoje lhe é conhecida. |
Nesta narrativa sobre a música que Bach escreveu e a forma como foi sendo escutada, está presente a dicotomia a que quero chegar, que é a da função da música versus o seu valor. |
No tempo de Bach, era reconhecida à sua música uma função, mas não um valor universal. Hoje em dia é o oposto. A sua música foi praticamente destituída do elemento funcional e encontra-se num patamar em que qualquer obra sua se presta a uma fruição meramente estética. |
Uma das fontes primárias mais importantes que temos para traçar a história da escuta da música no tempo de Bach vem do inglês Charles Burney, a quem se devem incontáveis descrições musicais, fascinantes do início ao fim, das muitas viagens que fez pela Europa no século XVIII. No fundo, Burney relata as formas como se fazia e ouvia música um pouco por todo o lado, tendo sido um pioneiro na antropologia da música, entendendo-a enquanto fenómeno social que era diferente de lugar para lugar, de acordo com a comunidade e o contexto em que era praticada. |
Burney não distinguia a música por géneros, ao passo que para nós, hoje, toda a música do seu tempo seria simplesmente e redundantemente relegada para o género da música clássica, na medida em que vem do século XVIII. Para ele, a música distinguia-se nas suas funções ou na sua forma, e é aqui que esta visão se torna tão mais rica quanto interessante. É que este intrépido e curioso viajante tinha um apetite voraz por tudo o que lhe cheirasse a música, que o levava e enfiar o nariz em qualquer que fosse o teatro, igreja, palácio ou estalagem onde estivesse a acontecer um evento musical. |
As suas deambulações são testemunho da forma como na cidade de Veneza, por exemplo, a música que se tocava nas igrejas era radicalmente diferente da que se ouvia nas igrejas em Paris. A mesma coisa para os serões de baile nos palácios dos príncipes alemães ou dos aristocratas ingleses. |
No fundo, para Burney e os seus contemporâneos, a música não se dividia de acordo com géneros. Havia música cuja função era religiosa. Havia música cujo objectivo era animar um sarau de dança. Música cuja finalidade era entreter os nobres durante uma refeição. Música cujo objectivo era demonstrar dotes de virtuosismo e conquistar o público, e por aí fora. Estas eram as funções. Depois havia as formas, ou tipologias: a sonata, o concerto, a sinfonia, o prelúdio e fuga, etc. Estas eram as formas. Já o que era isso do género, ninguém saberia dizer. |
A ideia de género musical só surgiu mais tarde, com um empurrão dado pelo advento da indústria fonográfica, que tornou necessária uma organização de conteúdos que fosse ao encontro do gosto dos compradores de discos. Isto acontece já em pleno século XX, num tempo em que a ideia de música clássica se encontrava perfeitamente consolidada, tendo por essa razão sido simples criar este género e atirar lá para dentro tudo o que viesse do passado, fossem alhos ou bugalhos. Tanto faz que seja uma ópera para orquestra, coro e solistas com três horas de duração, como um prelúdio para piano que não dura mais que um minuto. Se é do passado, é certo que se encontra nos escaparates da música clássica. |
Nesta forma de compartimentar e agrupar músicas de acordo com premissas de gosto (leia-se comerciais) e não de lógica musical, vamos encontrar inúmeros paradoxos. Um deles é o da música pop, que é como quem diz, música popular. Apesar de serem um ícone da cultura pop dos últimos cinquenta anos, a música dos Rolling Stones está à venda nos escaparates do género rock e não pop. Por outro lado, artistas que lutam pelo seu quinhão de visibilidade, sendo conhecidos de pouquíssimas pessoas, inscrevem-se livremente no género pop, malgrado não gozem de qualquer popularidade. |
Outro exemplo é o do género da world music, um chapéu-de-chuva que engloba de forma grossista toda e qualquer música de origem não-ocidental. Por um lado, o facto de haver uma world music faz com que nos perguntemos se existe alguma música que, em boa verdade, não se pudesse encaixar nesta categoria. É que, até ver, toda a música que conhecemos vem do mesmo mundo. Por outro lado, na world music encontramos, por exemplo, música de dança urbana de Angola com música vocal da Ásia Central, o que nos leva a perguntar o que é que uma coisa tem que ver com a outra e por que raio é que pertencem ao mesmo género. |
Estamos perante um cenário de exasperante simplificação de identidade perante a pressão comercial. Uma forma de gentrificação musical, se assim lhe quisermos chamar. E muitas têm sido as vozes a avisar que o maior impedimento no acesso das pessoas à fruição de música nova é precisamente o facto de a música estar compartimentada em géneros. |
A ideia de géneros leva a ideias pré-concebidas como a pertença e a exclusão, o clichê e a previsibilidade, asfixiando as possibilidades de permeabilidade ou fluidez criativa uma vez que, para o mercado, tudo tem de ser pão-pão, queijo-queijo. |
Leonard Bernstein (é o maestro e compositor que está na fotografia no topo desta newsletter) tentou sarar o assunto declarando que só existem dois géneros de música: a boa e a má. Embora subjectiva, esta não deixa de ser uma síntese mais justa e livre do que a que agrupa a música em incontáveis géneros e sub-géneros. |
Por fim, para voltar aos clássicos que nos trouxeram até aqui (e regresso à newsletter da semana passada, a razão principal pela qual tanta gente ainda não ouve música clássica, é porque não sabem que ela é muito mais rica e variada do que pensam (o clichê), e não é tão clássica assim (o gosto). |
Sei que esta não é uma discussão fácil. Não se faz um brilharete num cocktail com este tema, é certo. No entanto, para mim, que tenho trinta e um anos e vivo a ouvir e a pensar em música, é exasperante ver tanta gente, da minha idade e não só, passar ao lado do que podia ser uma fonte inesgotável de beleza e satisfação nas suas vidas, só porque a barreira de género se impõe entre eles e aquilo que é a música em toda a sua riqueza e variedade. |
Podem contar comigo para continuar a saltar a barreira dos géneros e fazer piscinas para a frente e para trás, levando água a todos aqueles que têm sede. |
Está na altura das sugestões da semana. |
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Por falar em sede, e porque a curiosidade e a inquietude me fizeram chegar a estes pensamentos, será muito grato o exercício de ler este livro enquanto metáfora, substituindo a palavra “Deus” por “beleza”, “arte”, “música” ou outra da vossa fantasia. Trata-se de um texto aberto e livre de dogmas, guiado simplesmente pela sede, essa faculdade maravilhosa que nos faz crescer nas nossas perguntas.
(ed. Quetzal) |
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Para questionar formas, funções ou géneros, recomendo que descubram e se apaixonem por um dos espaços mais audazes, ecléticos e até enigmáticos da cena musical portuguesa. O Lisboa Incomum, perto de Sete Rios, é um projecto com a assinatura do compositor Jaime Reis, onde já assisti a alguns dos acontecimentos musicais mais híbridos da minha vida. Já no dia 2 de Novembro, apresenta-se o Continuum Duo, que irá tocar música de três autores portugueses, Carlos Marecos, Diogo Batista e Marta Domingues, estes últimos com 24 e 22 anos de idade, o que também é uma excelente ocasião para saber que ventos sopram através das novas gerações de criadores nacionais. Em todo o caso, recomendo que fiquem atentos à programação geral e, se não puderem ir já amanhã, deem uma espreitadela noutra altura. |
Cesária, de Ana Sofia Fonseca |
Um pouco por todo o país, as salas de cinema recebem o recém-estreado filme de Ana Sofia Fonseca que, em formato documental, revela o perfil desta artista que, segundo a realizadora, “foi imune à fama”. Na minha opinião, Cesária poderia também ser imune ao género da world music, no qual se encontra catalogada, de forma tão anónima e injusta, só por ser cabo-verdiana. Já o seu legado, isso sim, é pertença do mundo inteiro. |
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Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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