O fascínio dos teen |
A cada filho que me nasceu, vi no olhar da minha mãe um brilhozinho indisfarçável, acompanhado de um sorriso sardónico. Ela não precisaria de lhes ter posto legendas, porque eu topei-a logo, mas fez questão de deixar o seu contentamento claro como água e, para isso, careceu de palavras: “Vais pagar em quádruplo aquilo que me fizeste passar”. Calma, não houve uma gargalhada maléfica no final, foi mais uma sentença proferida em jeito de piada, mas eu senti que, no fundo no fundo, ela estava satisfeita por poder, finalmente, assistir de camarote à sua vingança — que, como se sabe, serve-se fria. |
Não escondo: fui uma adolescente difícil. Desde um namoro longo com um bad boy (mais armado em bad boy do que, efetivamente, mau rapaz), a bebedeiras duras, passando por portas batidas com estrépito, discussões acesas, fugas de casa e outros desvarios que o decoro me impede de contar… houve, de facto, de tudo um pouco. |
Só drogas é que nunca, nem sequer um charro, apesar de praticamente todos os meus amigos fumarem. Sou asmática, nunca suportei o fumo, e o briefing que a minha mãe me passou, durante anos consecutivos, sobre a progressão entre fumar uma ganza e ficar automaticamente agarrado ao cavalo, era absolutamente aterrador. Nem pensar em aproximar-me, sequer, de uma singela erva. Só me imaginava de agulha espetada num braço, e Deus sabia como tinha pavor de agulhas! A minha mãe soube definitivamente como lidar com o assunto, neste caso. |
Já com a gestão das minhas saídas noturnas, não terá sido tão hábil. Demorou muito tempo a permitir que eu saísse, impunha horas de regresso a casa absolutamente estapafúrdias, ou só me deixava sair para pôr o lixo, razão pela qual, durante anos, o lixo era para mim sinónimo de belos amassos nas traseiras do prédio (o que não deixa de ter graça, se pensamos na forma como ela olhava desdenhosamente para o meu namorado da altura – não podia ser metaforicamente mais acertado). |
Isto para dizer que acabei a fazer tudo o que os meus amigos fizeram, com a única diferença de que fiz mais de dia do que de noite, e talvez mais cedo, e talvez mais intensamente. E cresci com esta ideia: os adolescentes fazem tudo o que quiserem, mesmo que os proíbam. Aliás, tendem a fazer mais, se os proibirem. Lembro-me de sentir uma adrenalina bestial por estar a fazer alguma coisa que eu sabia ser absolutamente interdita. Claro. Adolescente a ser adolescente. |
Quando a minha mãe me lançou aquele olhar quando tive o terceiro filho (que ainda para mais foi a primeira filha), e voltou a lançar quando nasceu o quarto, eu senti um certo receio (claro!) mas, ao mesmo tempo, tive uma certeza: eu iria fazer diferente. Podia resultar melhor ou pior, mas diferente eu ia seguramente fazer. E fiz. E tenho feito. E continuarei a fazer. |
É claro que as circunstâncias são totalmente distintas. A minha mãe estava sozinha comigo, não tinha com quem dividir as responsabilidades nem as culpas nem os medos. E, sozinha, decidiu proteger, em vez de arriscar. Compreendo perfeitamente, hoje. Mas compreendo mesmo, não é aquele compreender de quem diz que sim, mas, no fundo, não só não entendeu como continua altamente ressentido. Houve alguns excessos de zelo que podiam muito bem ter sido evitados, e uns “nãos” injustos, que pareciam ser oferecidos quase com prazer, o que também não foi saudável. Mas, no geral, sei que a intenção foi a melhor. E aprendi a calçar os sapatos da minha mãe, sobretudo depois de eu própria ter filhos (algo que – creio – acontece com muitos de nós). |
Eu faço diferente, por um lado porque senti que aquele método não era inteligente. Não funcionava (pelo menos comigo). E, por outro, claro, porque tenho uma conjuntura que não tem nenhuma semelhança com a que tinha a minha mãe. Somos dois a decidir, um pode contrabalançar o outro, podemos reunir e deliberar em conjunto, e está por demais comprovado que duas cabeças pensam melhor do que só uma. Até ver, temos optado pelo batido mas, quanto a mim acertado, “liberdade com responsabilidade”. Em princípio, a nossa resposta ao “posso sair?” é sim, mas se houver uma falha nos moldes em que a saída é definida, as regras mudam e as comportas fecham-se. |
A verdade é que temos tido muita sorte, até agora. E, claro, a seguir vai ser o caos, porque sempre que digo aos sete ventos que tenho tido sorte, acabo a ter um azar do caraças. Não sei se é coincidência ou se são más energias (em que, já agora, não acredito), ou karma (nem sei se é assim que se escreve isso-que-eu-nem-sei-o-que-é), mas o certo é que acontece. Adiante. Temos tido sorte porque, até agora, a coisa tem corrido razoavelmente bem. |
A adolescência é um período fascinante e de uma exigência emocional brutal, tanto para eles, filhos, como para nós, pais. Tem momentos recompensadores, como quando percebemos que já há ali um pensamento crítico, por vezes bem diferente do nosso, e todo ele tão bem sustentado e apresentado com convicção. Ou como quando nos rimos juntos, ou quando nos abraçam e desaparecemos naquele corpo que, misteriosamente, saiu de nós e agora nos engole. Ou na cumplicidade de um olhar. Ou quando sentimos que saem em nossa defesa, ou como notamos que têm orgulho em nós, e na relação que temos. |
Mas também tem momentos muito duros, de corte, de aspereza, de um crescimento que é feito em contramão, de perda da aura de heróis, que os pais preservavam até esta fase da vida dos filhos. A partir daqui, somos geralmente uns idiotas. Não sabemos nada, não temos nem ideia, somos de outro tempo, estamos fora, “over and out”, os amigos é que são tudo, casa, aconchego, compreensão, amparo, colo. E dói, pois claro que dói. Assim como quando nos respondem com sete pedras na mão, quando se fecham no quarto, quando vão para fora e não ligam a não ser para pedir dinheiro, quando parece que deixaram de gostar de nós. |
Uma madrugada, ligou-me uma amiga de um dos meus filhos. Que estavam a ir para o hospital, porque ele tinha bebido um bocado no baile de finalistas e tinham achado melhor chamar uma ambulância. Não houve sobressaltos, arranca-cabelos, desesperos, surpresas. Afinal, ambos fomos adolescentes há não assim tanto tempo (mentira, foi há uma vida, mas deixem-me continuar em negação) e eu acho que muitos pais se esquecem de como foi, como se nunca lhes tivesse acontecido a eles (e talvez não tenha, nem todos fomos rebeldes). A caminho do hospital, pensava na atitude certa a tomar. Por um lado, não me ia passar da cabeça, armada na santinha que nunca fui. Mas também não podia dar-lhe uma palmadinha nas costas exclamando: “That’s my boy!” |
Quando entrei, tive de esconder o riso. O rapaz de fato, gravata desapertada, sentado numa cadeira de rodas, com um saco na mão. Lívido. Ao lado, duas raparigas de vestido comprido, sapatos de salto alto, maquilhagem já esborratada. E, em pano de fundo, as pinturas infantis da sala de espera pediátrica (ele tinha 17 anos). Um ursinho, um coelhinho, e eu a pensar: “Tenho absolutamente de fotografar esta cena, porque isto é a metáfora perfeita (mais uma) da adolescência – o período límbico entre a infância e a idade adulta, em que tantos andam meio perdidos, bêbados de quererem um futuro, mas já saudosos do passado”. |
E fotografei mesmo. Não lhe disse nada. Ele olhou para mim, eu olhei para ele. Fiz-lhe um sorriso de gozo, abanei a cabeça. Fiquei sentada à espera de que tivéssemos ordem para regressar a casa. Há pouco tempo ele escreveu, no Dia da Mãe, que aquele olhar e aquele sorriso o fizeram sentir-se tão ridículo que não imagina melhor forma de lidar com a situação. Sentiu que nunca mais queria passar pelo mesmo. E eu pensei: “olha, boa. Talvez o diferente que eu sempre quis ser e fazer seja, afinal, a coisa certa”. |
Mas… (há sempre um mas), faltam-me ainda três filhos para fazerem a travessia. E os desafios são outros, porque eles são outros. E o meu coração não anda sossegado, sou franca, e dou por mim muitas vezes sem saber o que fazer, o que é certo, o que é errado, se devia puxar mais as rédeas. |
Dizem-me os entendidos que as rédeas de um adolescente devem manter-se tensas: se puxamos demais, partem; se largamos, eles caem desamparados. A tensão a que a adolescência por vezes nos obriga é cansativa. Pode fazer doer os trapézios, o pescoço, mas sobretudo o coração. Porque a única coisa que queremos é que eles levantem voo, mas sem se despenharem. É natural que caiam, aqui e além, quando esvoaçam baixinho, mas despenhar-se num voo alto é que não. E os perigos estão à espreita, e eles nem sempre nos contam e nós não podemos amarrá-los à perna de uma mesa (embora tenhamos vontade). Até ver, continuamos com a premissa da liberdade com responsabilidade. Esperemos que resulte. Até porque eu gosto muito (mas mesmo muito) de ter razão. |
Vale a Pena… |
… Fazer um clube de leitura caseiro
A ideia é simples: cada membro da família (desde que saiba ler) tem de despachar pelo menos um livro num mês. Num dia estabelecido, no mês seguinte, faz-se uma tertúlia. Cada um faz uma espécie de resumo do livro, sem desvendar finais ou pistas importantes (na gíria, sem ser spoiler). Cá em casa, há um que é severamente contra este tipo de “obrigação”. Temos pena. E nem o facto de já ter 18 anos me comove ou me demove: vive na casa onde as regras são estas, de maneira que… aguente-se. O mais velho aprendeu a gostar de ler assim, não vejo porque não possa este vir a gostar também. Sou uma mulher de fé (na Humanidade), e a proximidade que estas tertúlias nos dão são mais preciosas do que os próprios livros. |
… Ler o livro O Cérebro (não) Tem Sempre Razão, de Scott Stuart
Vi-o por acaso numa livraria, quando procurava um presente para um amigo do meu filho Mateus. Peguei-lhe, comecei a folheá-lo e acabei rendida. É a história entre a dualidade do coração e da razão: o coração sempre a querer coisas boas, bonitas, sonoras, loucas; o cérebro (a razão) a querer listas, brócolos, previsibilidade, segurança. Ao longo de toda a história, o cérebro rejeita toda a alegria e espírito aventureiro do coração. Não o ouve e, com isso, o coração vai ficando calado e triste. Até ao dia em que o coração encontrou algo pelo qual valia mesmo a pena lutar. E não ouviu o cérebro. E fez um esforço maior por convencê-lo de que aquele era o caminho. Finalmente, o cérebro ouviu o coração. Porque… o coração também pode ter razão. Adorei o livro e comprei logo dois: um para o aniversariante, outro para o meu filho.
(ed. Porto Editora) |
… Ir ao passeio Crimes de Lisboa
Do regicídio do rei D. Carlos, passando pelo terramoto de 1755, o processo dos Távora, o Estripador de Lisboa, a Inquisição, entre outros, podem ficar a conhecer os momentos mais marcantes e violentos que aconteceram até hoje na capital. Para pessoas com estômago forte (e com mais de 12 anos) e que não têm pesadelos à noite ou não se importam de os ter. Ah, porque os passeios são realizados, justamente, à noite.
Sábado, 25, quinta-feira, 30, e sexta-feira, 31 de março. Ponto de encontro: Arco da Rua Augusta.
Preço: 12 euros. |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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