Confusão, barulho, despesa, mas uma alegria sempre a multiplicar |
Dizem que a partir dos três filhos já se considera uma família como sendo numerosa. Quando faço entrevistas de vida a pessoas que tiveram 10, 12, 15 irmãos penso na ironia da vida. O que diriam de nós, pais de três e quatro filhos, esses super-pais de verdadeiros rebanhos de crianças, ao ouvir chamar-nos “família numerosa”? Como se chamará àquilo que eles criaram, há 70, 80 anos? “Família extremamente populosa”? Coloquei o verbo no condicional, como se essas famílias já não existissem. Na verdade, são cada vez menos, mas ainda há famílias com seis, oito e mais crianças, algumas por se inscreverem num círculo de pobreza, desestruturação e falta de planeamento familiar, outras por convicção religiosa (“receber com alegria todos os filhos que Deus nos der”), e por fim os que simplesmente têm uma paixão por famílias grandes, complexas, barulhentas, frenéticas, loucas. |
Aqui em casa, enquadramo-nos nesta última categoria. Não planeámos nada, mas depressa percebemos que nos queríamos rodeados de confusão. Ambos filhos únicos (quer dizer, eu tenho uma irmã adorada, mas que só nasceu quando eu já tinha 11 anos, pelo que toda a minha formação foi feita como filha única), crescemos com alguma solidão à mistura. O Ricardo diz que não se ralou muito com isso, mas eu sim. Lembro-me de estar fechada no meu quarto e de pensar como seria bom ter um irmão ou irmã com quem partilhar alegrias e tristezas. |
Claro que depois os irmãos, quando se têm, nem sempre se valorizam, acabando os pais por referir que são mais os momentos em que andam à batatada do que os de genuína partilha, mas é o que é: eu sonhava com um irmão. “Obrigava” a minha mãe a dar-lhe um beijinho de boa noite, a esse irmão imaginário. E, muitas vezes, como se um irmão não me chegasse, sonhava acordada que vivia num colégio interno, rodeada de crianças da minha idade, numa algaraviada permanente que, para mim, preenchia alguns vazios que sentia. |
Como disse, não planeámos ter vários filhos, mas houve uma circunstância que pode ter contribuído para despertar em nós essa vontade. Um dia, estávamos nós num aeroporto em Marrocos, quando vimos um conhecido advogado com a sua família numerosa. Na altura, nós só tínhamos dois filhos, mas lembro-me de ficar fascinada com aquele grupo, com as cumplicidades entre uns e outros, com as dinâmicas, o mais novo com medo do voo (onde seguimos “juntos”), os irmãos a gozar, a mãe a dar festinhas. Achei deliciosa a forma como todos interagiam, e o modo como enchiam os espaços, literal e metaforicamente. |
Quando voltei das férias, encontrei o email do advogado e, mesmo correndo o risco de parecer só uma maluca abelhuda, escrevi-lhe para lhe dizer isto mesmo. Que a sua família nos tinha tocado de forma especial, e que desejávamos construir uma tão bonita como a dele. A resposta foi maravilhosa. Dizia ele que os filhos tinham ficado comovidos com o email e que, um dia, seríamos nós, num aeroporto qualquer, com uma família grande, a inspirar outras pessoas. |
Ainda voltámos a escrever-nos quando tive a terceira filha e, de novo, quando nasceu o Mateus. Nunca mais me esqueci deles e desejo-lhes tudo de bom. De certo modo, talvez tenham sido eles a fazer crescer em nós o desejo de ter uma família assim. Se, em vez deles, tivéssemos encontrado, naquelas horas de viagem, uma família numerosa onde se fizesse sentir mal-estar ou animosidades várias, talvez tivéssemos pensado que ter muitos filhos era um pavor que queríamos evitar. |
E não é. Ter muitos filhos é uma alegria. Não há lugar para a monotonia – há sempre alguma coisa a acontecer, alguém a precisar de atenção, de ajuda, de aplauso, de crítica. São “só” quatro mas, juntamente com os irmãos caninos, perfazem seis almas de quem é preciso cuidar. Gosto da loucura disto tudo, ainda que muitas vezes me doa em vários locais (carteira, ouvidos, costas). |
Quando me perguntam como é ter quatro filhos, respondo: é ter sempre coisas para fazer. Ter alguém para ir buscar, para ir levar, para acompanhar, ouvir, educar, brincar. É ter sempre alguma coisa fora do lugar (no nosso caso, desgraçadamente, é mais ao contrário: é, de vez em quando, ter alguma coisa no lugar). É fazer uma gestão absolutamente maluca de horários. Agora que o mais velho já tem carta, abuso dele sempre que possível: “podes ir buscar o teu irmão, para eu poder ir levar a tua irmã?” Há sempre uma consulta, um treino de futebol, um treino de vólei, uma reunião com professores, uma festa de aniversário de um amigo para o qual é preciso presente e boleias. |
Ter uma família numerosa é uma mistura entre corridas diferentes. Umas vezes é uma corrida de cem metros, que exige um sprint que nos deixa sem fôlego, outras vezes é uma corrida de estafetas, com passagem de testemunhos de uns para os outros e na maior parte das vezes é uma maratona que nos leva a todas as fases conhecidas das maratonas: emoção, negação, consciencialização, desespero (o muro), renascimento, consagração. Creio que a única etapa que não é comum, nesta comparação, é a da solidão. Bom, a menos que falemos da solidão que se deve sentir quando o último filho sair de casa. Aí, por muito que o casal tenha sabido manter a chama acesa, há-de haver uma certa solidão. |
Há dias em que, sendo eu tão caótica como sou, me pergunto como raio consigo dar conta de tudo. Obviamente que há um pai, com quem partilho tarefas, mas como ele trabalha por conta de outrem e eu trabalho por minha conta, acaba por sobrar um bocado mais para mim toda esta logística chanfrada que me faz ter sempre o coração umas pulsações mais acima. |
Ter uma família numerosa é encher o carrinho do supermercado, perceber que não chega, ir buscar outro e andar a empurrar os dois, qual deles o mais cheio, perante o sorriso cúmplice de outros pais de famílias numerosas ou o espanto dos que levam apenas um cestinho. Ter uma família numerosa é saber que as conversas se atropelam à mesa, que não é possível ver (e sobretudo ouvir) aquela reportagem que queríamos mesmo, pelo menos à hora a que está a passar, porque o ruído envolvente não permite. Ter uma família numerosa de seis pessoas é saber que qualquer refeição fora, mesmo que numa pizaria, dificilmente fica por menos de cem euros (nem imagino os que têm mais do que quatro filhos). |
Ter uma família numerosa é passar a roupa de uns para os outros, aproveitando cada peça até dela já quase não sobrar nada (pobre do último filho, sempre com roupa que já viveu várias vidas, livros que já foram manuseados mil vezes, bonecos aos quais faltam olhos). Ter uma família numerosa é chegar a uma casa e enchê-la só com os nossos (e, por isso, é também ser menos convidado para convívios, porque… se preenche demasiado espaço). É encher um passeio inteiro. Uma fila de avião. É ter de chamar dois táxis ou então um de sete lugares. Porque é sempre tudo “em grande”. |
Por vezes, sinto saudades do silêncio. Cresci no silêncio, é natural que me falte. Mas não trocava por nada todo este bruaá. De resto, ter uma família numerosa tem outra característica meia chalupa que ainda não referi: é viciante. Juro. Há uma razão para este “vício”. É que é tão bom, que dá sempre vontade de recomeçar. O coração aumenta, de cada vez que nasce mais um filho. E com o coração assim imenso, cabe sempre mais um. |
(Mentira. Já chega.) |
Vale a Pena… |
… Assistir ao espetáculo imersivo A Morte do Corvo
Assistir nem sequer é bem o verbo certo. Porque o espetador participa, de certo modo. Corre atrás. Caminha pelos mais de dois mil metros quadrados do antigo Hospital Militar da Estrela, em Lisboa, todo transformado com uma cenografia fabulosa, atrás dos atores, atrás da história, a tentar colar os pedaços que cada um conta. A representação é extraordinária, até porque nenhum ator fala. É tudo linguagem corporal e movimento coreográfico. E a música? Uau! Vale a pena levar os filhos. O regulamento diz que é para maiores de 18 anos mas que aceitam menores desde que acompanhados pelos pais. Há lá umas cenas mais tórridas e outras mais intensas, mas parece-me bastante mais pernicioso assistir ao Telejornal, nos dias que correm.
A peça estará em cena até 30 de Julho. De quarta-feira a sábado, às 21h00, domingo às 17h00. Bilhetes a partir de 38 euros |
… Ler o livro No Meu Tempo
Foi publicado em Portugal em novembro de 2022, ou seja, não é novo-novo, mas só o descobri agora. É a encantadora história — escrita por Andy Stanton e ilustrada por David Litchfield — da bela relação que pode existir entre avós e netos. Uma avó conta à neta como o mundo era antes de se tornar cinzento. A neta, por sua vez, procura devolver à avó a magia do mundo, mostrando-lhe que ela continua a existir, ainda que de formas diferentes.
(ed. Nuvem de Letras) |
… Ver O Regresso do Lobo Mau – O Musical
O Lobo Mau pode ter perdido a primeira “batalha”, mas não quer perder a guerra. O lobo quer a desforra, pelo que há novos perigos a pairar. Resta saber quem vai ganhar este desafio. Uma peça cheia de humor e fantasia que pode divertir pais e filhos. Há músicas, há excelentes atores em cena, já para não falar da cenografia, que vai cativar os pequenos espetadores.
Teatro Sá da Bandeira, 23 Abril, 11h30. Bilhetes a partir de dez euros |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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