Como balançar liberdade e proteção quando o tema é a pedofilia? |
No outro dia vi uma entrevista à atriz Melânia Gomes na qual revelou que foi abusada sexualmente na infância por um membro da família. Fiquei colada ao ecrã com aquele testemunho horripilante, e impressionou-me, sobretudo, a parte em que ela dizia, perentoriamente: “A minha filha nunca vai dormir fora de casa. Nunca.” Fiquei a pensar naquilo, na forma feroz e convicta com que aquela mulher, indelevelmente marcada por um episódio terrível que nunca devia ter acontecido, nem a ela nem a ninguém, procura evitar que a filha passe pelo mesmo. E foi impossível (como acho que é sempre) não pensar na minha própria história e nos meus próprios filhos. |
Felizmente, nunca passei pelo que Melânia Gomes passou. Tive, como tantas outras meninas, episódios bizarros no autocarro, homens que se esfregavam em nós no aperto das manhãs ou dos finais de dia, aqueles bafos ofegantes no nosso pescoço (quantas vezes saí numa paragem que não era a minha, só para escapar àquilo), outros que saíam detrás de arbustos proferindo obscenidades (estudei no Campo Grande, em Lisboa, e o jardim era prolífero em tarados), além dos que abriam gabardinas exibindo a sua abjeta nudez. |
A determinada altura, havia relatos de violações no bairro onde eu vivia. A minha mãe, aflita, fez-me inúmeros avisos, daqueles que todas as mães fazem: “não falas com estranhos, não respondes, não te aproximas, não aceitas nada, foges, gritas, chamas pela mãe ou pelo pai mesmo que não estejam por perto, mas como se estivessem”. |
Um dia, estava eu a brincar sozinha no terraço do meu prédio, quando um homem se aproximou, perguntando se eu sabia onde morava uma enfermeira. E foi andando, apontando para uns prédios das traseiras, e eu caminhando ao lado dele, apesar de não saber da morada de ninguém com a descrição que ele ia fazendo. A minha mãe, que estava em casa, deve ter tido um instinto qualquer que a fez descer do 6º andar e largar aos gritos pelo meu nome. Nesse momento, eu acordei daquela espécie de torpor que me fez ignorar todos os avisos que a minha mãe me havia feito tantas vezes, corri para ela, e vi-o desaparecer rua abaixo, em passo acelerado, o que me fez imediatamente compreender o perigo a que tinha estado exposta. Até hoje, não compreendo como foi que não cumpri o briefing materno, mas suponho que a minha atitude se inscreve naquilo que é (ou devia ser), justamente, ser criança: a ingenuidade. O achar que um adulto, que nos ensinam a respeitar e até a obedecer, não vai fazer mal a uma criança. |
Apesar destes episódios por que passei – e pelos quais muitas meninas passam – nunca fui vítima de um abuso sexual propriamente dito, concretizado. E, por essa razão, nunca tive para com os meus filhos a atitude hiper-protetora que Melânia tem para com a sua filha (quem pode julgar?). Não só não digo que nunca vou deixar os meus filhos dormir fora de casa, como estimulei esse movimento desde bem cedo. Os meus filhos vão, desde os seis anos, para campos de férias durante uma semana (ou mais). E dormem em casa de amigos, amiudadas vezes. E em casa de familiares. Avós, tios, primos. Os especialistas afirmam, de resto, que as dormidas fora de casa são positivas no desenvolvimento das crianças. E eu sempre me senti tranquila com isso. Erradamente? Devemos desconfiar de toda a gente? Serão todos culpados até prova em contrário? Arriscamos primeiro e lamentamos depois? Trancamo-los em casa, impedindo-os de ter experiências divertidas e diferentes, para evitar o pior? |
Neste momento, queria deixar o caso Melânia Gomes de parte, apesar de ter sido eu quem o trouxe para este texto. Mas o caso dela, e de outras pessoas que passaram pelo mesmo, é diferente. É impossível recriminar que uma pessoa que foi traída por um membro da própria família não consiga confiar em quem quer que seja. É um trauma para toda a vida, que há-de perpassar gerações. Mas, quem não tenha esse histórico inultrapassável, o que deve fazer? Sabemos que não acontece só aos filhos dos outros, mas… que atitude tomar? |
Não serei eu a responder a isto, claro. Cada um terá de tomar essa decisão em consciência (ou com a consciência possível). O que me perturba, na verdade, é que esta questão exista, sequer. Que tenhamos de ponderar proporcionar momentos enriquecedores aos nossos filhos, pelo facto de poder haver um pervertido por perto. E se há quem morra de medo do que pode acontecer nos acampamentos de escuteiros (agora com o tanto que se fala de pedofilia na Igreja, imagino a angústia de muitos pais), ou nos campos de férias, o que dizer das estatísticas, que revelam que é no seio da família e dos amigos dos pais que reside o maior risco? Devemos ter medo dos nossos pais? Dos nossos sogros? Dos nossos cunhados, primos? Que raio de mundo é este? |
A verdade é que nem é preciso dormir em casa de ninguém para que possa acontecer alguma coisa aos nossos filhos. Não sei se devia contar o episódio seguinte, porque há por aí pais tão ansiosos com esta questão que temo que fechem os filhos à chave até, pelo menos à maioridade. Há uns 4 anos, sentimos que nos saiu o Euromilhões. A Madalena, então com uns 9 ou 10 anos, foi a uma festa de aniversário na quinta de uma amiga. Quando chegámos, a mãe estava com uma expressão consternada, e a Madalena parecia lívida. “Aconteceu aqui um incidente complicado”, começaram por dizer. E depois veio o relato: os miúdos estavam a brincar, creio que às escondidas. E largaram a correr pela quinta fora. A Madalena deu por si sozinha num dos extremos da propriedade e, do nada, deu de caras com um fulano ruivo, maltrapilho, com mau ar. Começou a caminhar na direção oposta e, pelo canto do olho, percebeu que o tipo veio atrás. E então, sem saber bem porquê, largou a correr. E ele correu também. Com sorte, ela tomou a direção da casa, onde estavam os adultos. Mal se aproximou da casa e do grupo, o homem fugiu no sentido contrário. |
A Madalena ficou muito tempo perturbada com aquilo que lhe aconteceu (e sobretudo com o que lhe podia ter acontecido). Percebi no seu olhar que sentiu, pela primeira vez, que era uma “presa”, que tinha de fugir para não ser caçada. Houve ali uma perda de inocência a que foi difícil assistir. E, claro: nunca mais consegui deixá-la ir à quinta da amiga. E ela também nunca mais quis ir. Obviamente, as nossas experiências condicionam tudo o que vivemos e o que as nossas crianças vivem. Como não? |
É curioso que, durante muito tempo, eram sobretudo os pais de meninas que se atemorizavam com os potenciais abusos. . Hoje, apesar de continuarem a ser as meninas as principais vítimas, sabemos que há (e sempre houve) muitos meninos a serem abusados, também. |
Não sei se há mais casos agora, o que nos leva a tecer considerações sobre a degradação do mundo (uma coisa muito habitual em quem começa a ficar mais velho – o típico “no meu tempo isto não era assim”), ou se se fala mais sobre as coisas, destapando aquilo que esteve anos a fio tapado (parece-me mais provável, esta opção). |
E já que falamos em discutir as coisas abertamente, chegou-me ao escritório um livro infantil, com o título O teu corpo é teu. Um livro para explicar isso mesmo: que o corpo é nosso, que ninguém mexe nele, que qualquer toque que seja desconfortável deve ser reportado. Quão triste pode ser haver um livro infantil sobre isto? Útil, porém, triste. |
Os meus filhos estão a ficar muito crescidos para serem alvo de desejo de pedófilos. Ainda tenho dois em risco (isto escrito assim arrepia), mas não consigo impedi-los de ir. De dormirem em casa de amigos, de seguirem todos contentes para campos de férias, de aceitarem convites que me parecem inofensivos e divertidos demais para recusar. Converso muito com eles, alerto, explico que as pessoas más não têm de ter cara de más ou mau aspeto. E que devem sempre contar-nos tudo, sem medo de represálias. Sei que pode não valer de nada, tal como de nada valeram todos os alertas da minha mãe naquele dia, assim como todas as conversas de todos os pais a quem as crianças optaram por não contar algo que foi violento demais para contarem. Tento, sobretudo, não lhes dar a ideia de que o mundo é este lugar medonho onde adultos abusam de crianças. Alertar sem assustar. Deixar ir, apesar de tudo. E torcer para que não nos toque a nós. |
Vale a Pena… |
… Ir ver o World Rock Bebé 2023 – Rock Me Baby |
Bom, na verdade, não sei se vale a pena. Como imaginam, não fui ver, até porque já não tenho bebés em casa (e livrei-me, por isso, de uma série de programas sofríveis, em que bati palminhas como uma idiota ou, de outras vezes, adormeci escandalosamente nos lugares da frente). Mas, se têm bebés entre os seis meses e os 4 anos, acho que pode ser giro porque é um espetáculo pioneiro em Portugal sobre o nascimento do rock.
Parque Mayer, Lisboa, sábados e domingos, às 10h00 e às 11h30 (exceto no domingo de Páscoa). Bilhetes: 10€-25€ |
… Visitar o Aqueduto das Águas Livres, em Lisboa |
É sempre um programa engraçado, sobretudo porque, para quem vive em Lisboa, o aqueduto faz parte da “mobília”, já quase nem damos por ele, e de repente estar mesmo lá em cima, a conhecê-lo por dentro e a ver as vistas de Lisboa, dá-lhe toda uma nova dimensão.
Construído entre 1731 e 1799, o Aqueduto das Águas Livres constituiu um vasto sistema de captação e transporte de água, por via gravítica, num total de 58 quilómetros de canalizações existentes entre as nascentes, localizadas a 15 quilómetros, a noroeste de Lisboa, e os chafarizes da capital. O percurso é visitável entre Campolide e o Parque Florestal de Monsanto. |
… Assistir ao espectáculo imersivo Porto Legends – The Underground Experience |
Realidade e magia de mãos dadas nas Furnas da Alfândega do Porto que tem, só por si, uma arquitetura misteriosa. Este espetáculo tem como objetivo enaltecer a cultura e a história do Porto e contou com a investigação do historiador Joel Cleto. O espetáculo é narrado por Pedro Abrunhosa e pelo vencedor de um Óscar, JeremyIrons. Acho sempre que um espetáculo assim pode fazer com que os mais novos olhem para a História com outros olhos.
Alfândega do Porto. De terça a domingo, às 10h00, 13h00 e 16h00. Bilhetes: 11€ |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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