Colégios onde menino(a) não entra |
No outro dia, um leitor das minhas newsletters do Observador desafiou-me a escrever sobre os colégios não-mistos, uma minoria em Portugal. O que pensaria eu sobre as escolas só para rapazes ou só para raparigas? A minha resposta imediata era evidente. Mas, como não gosto de me precipitar, fui ler sobre o assunto. Acontece que, depois de ler alguns artigos e estudos, mantive a opinião. |
Suspeito que este tema vá dar comichão a diretores, professores, pais e alunos de colégios não-mistos, que defendem o sistema com unhas, dentes, sangue, suor e lágrimas, mas alerto já para este facto: é só a minha opinião, que vale o que vale. Não sou pedagoga, psicóloga, psiquiatra, professora. Sou só mãe e pessoa que gosta de pensar nas coisas dos miúdos e das famílias. E admito, desde já, que possam existir benefícios neste modelo de educação, em que os géneros não se misturam. Há poucas coisas que sejam 100% más ou 100% boas, não caio na esparrela do maniqueísmo. De resto, já li sobre essas vantagens, e pretendo deixá-las aqui, porque o contraditório é-me muito caro, ou não tivesse sido jornalista por duas décadas. |
Comecemos pelo princípio. E o princípio subjacente a esta separação prende-se, em primeiro lugar, com as supostas diferenças entre rapazes e raparigas. Diz quem defende o modelo que dar igual a quem é diferente não faz sentido, e pode ser prejudicial. Segundo Margarida Garcia dos Santos, administradora dos Colégios Fomento, numa entrevista ao jornal Sol em 2017, a aprendizagem de rapazes e raparigas é mesmo fisiologicamente distinta: “Sabemos que, por exemplo, no processamento matemático, as raparigas usam o córtex cerebral, enquanto os rapazes usam o hipocampo”. Achei isto fascinante e culpei imediatamente o meu córtex cerebral, por me ter dado sempre tão poucas alegrias na aprendizagem dos números. Foi bom poder finalmente atribuir uma culpa. E, imbuída da vontade de saber mais sobre o meu deficiente córtex, fui ler alguns artigos científicos que sustentassem esta tese. O que descobri foram estudos que garantem que o cérebro de rapazes e raparigas se comporta de igual modo quando estuda matemática, deitando um pouco por terra a afirmação anterior. |
Jessica Cantlon, professora de Neurociência do Desenvolvimento na Carnegie Mellon University e autora de um estudo publicado em 2019, disse: “Estudámos o comportamento de jovens rapazes e raparigas em testes de matemática e observámos que a sua performance era estatisticamente equivalente; era indistinguível”. Ora bolas, talvez afinal o meu córtex não tenha tido culpas neste cartório. A matemática foi-me possivelmente vedada pelo cérebro inteiro, pelas vísceras, pelo coração e pela alma. |
Matemática à parte, há quem defenda que sim, meninos e meninas aprendem de forma distinta. E também há quem desconstrua essa ideia. Depois há quem apresente as diferenças, as semelhanças e que defenda que o mais importante é mesmo o ambiente em que as crianças crescem – é aí que está o busílis da questão. |
Outra das razões apontadas para a existência das escolas não-mistas tem uma origem que me toca, por ter no seu cerne uma boa intenção (mas, já todos conhecemos o ditado: de boas intenções está o Inferno cheio). |
Um dos motivos para as escolas não-mistas terem ganho uma nova popularidade em vários pontos do mundo no século XX foi como resposta às preocupações feministas que ligavam a marginalização económica das raparigas ao sexismo existente nos ambientes onde ambos os géneros coexistiam. Como resposta a estas preocupações, a educação não-mista foi promovida como solução para empoderar as mulheres. Terá resultado? Terão essas meninas, saídas dessas escolas, encontrado equidade no mercado profissional, em comparação com as que estudaram em escolas mistas? Ganharão mais? Terão conseguido progredir na carreira na exata medida em que progrediram os colegas homens? Dúvidas. Muitas dúvidas. |
Apesar de todas as possíveis teorias ou estudos científicos que demonstrem que uns e outros aprendem de forma distinta, o que prevalece é o facto de a escola, para mim, ser uma espécie de ensaio para a vida adulta, uma antecâmara da vida dos crescidos, com as suas teias sociais, as suas hierarquias, as suas idiossincrasias, as suas injustiças, desigualdades, preconceitos, conflitos, resolução de conflitos, amizades, paixões, amores, desamores, alegrias e tristezas. |
Não me faz sentido haver escolas onde só haja rapazes, e escolas onde só haja raparigas, do mesmo modo que não me faz sentido que haja empregos só para homens ou empregos só para mulheres, restaurantes só para uns, hotéis só para outros. A vida não se faz em dois carrinhos: rosa para a direita, azul para a esquerda (e não, não estou a perpetuar o estereotipo do rosa para as meninas e do azul para os meninos porque eu não disse a que género estava a atribuir cada cor – pensavam que me apanhavam, hum?). |
Por muito que até fosse útil que as aprendizagens fossem feitas de forma distinta por causa das diferenças cerebrais entre cada género, diferenças fisiológicas, o que dizer de todas as outras aprendizagens? Que falhas ao nível da interação entre géneros ocorrem quando se separam uns dos outros, como se a sua mistura pudesse ser perniciosa, mais do que vantajosa? Como não aproveitar a beleza que existe na diferença, para explorar esse intercâmbio, essa relação, essa interligação? Poder-me-ão dizer que haverá sempre primos, irmãos, vizinhos. Nem sempre. Há cada vez mais filhos únicos, famílias pequenas e separadas geograficamente, em que não há primos, prédios descaracterizados em que ninguém se conhece (eu tive a sorte de crescer com dezenas de amigos na minha rua, mas os meus filhos já tiverem pouco disso). E, é por haver cada vez menor teia de crianças fora da escola que julgo ser esse o território por excelência para a convivência entre todos, e não apenas entre os miúdos do mesmo sexo. |
Junto dos que defendem a existência dos colégios não-mistos existe também muito a ideia de que, desse modo, diminuem as distrações e o estudo é mais eficaz. Uma tese que me arrepia até à medula, confesso. Distrações? Mas a escola tem de ser uma fábrica para jovens tecnocratas de sucesso, com entrada às 8h00, saída às 18h00, e apenas o trabalho como meta? As raparigas distraem os meninos com as suas saias curtas e tops insinuantes? Os rapazes perturbam as meninas com os seus piropos? As paixões de adolescência (e até os primeiros amores de infância) devem ser extirpados da escola, como se fossem ervas daninhas que destroem a flor da educação? Devemos então assumir que a escola só serve para se aprender matéria e nada sobre relações sociais e amorosas (exceto as que ocorram entre pessoas do mesmo sexo)? |
Lembro-me de uma amiga que estudou num colégio de freiras, só para meninas. Tinha uma farda, que consistia num kilt, camisa e pullover. A primeira coisa que a minha amiga e todas as amigas dela faziam, quando saíam da escola, era enrolarem a saia o suficiente para que ela se tornasse uma microssaia. Depois, iam à cata de rapazes. Assim mesmo: “à cata”. |
Lembro-me de achar estranha toda aquela curiosidade e excitação pelo sexo oposto, os risinhos quase histéricos, como se nunca tivessem visto nenhum espécime parecido de perto. Bom, ver já tinham visto. Mas não numa base diária, na sala de aula, na cantina, no recreio. Para elas, com efeito, os rapazes continham um mistério que, para mim, não possuíam de todo. |
Calma, respirem, não estou a afirmar que uns e outros saem das escolas famintos por uma valente ramboia com o sexo oposto. Mas parece-me sempre que separar, segregar faz com que haja uma espécie de “o proibido é o mais apetecido”. Como se o outro género fosse algo peculiar, por ser raro. Que diabo? Não andamos todos juntos, na vida? |
Posto isto, acho — como em todas as matérias — que cada um sabe de si, cada pai e mãe saberão o que é melhor para os seus filhos. E haverá sempre bons argumentos para cada lado, pelo que não haverá escolhas erradas. Caso contrário, já se teriam abolido, que hoje em dia há, nos países ditos civilizados, uma tendência inquietante para abolir tudo o que seja minimamente considerado perturbador, sejam palavras e expressões em livros, colheres de pau em restaurantes, monumentos históricos que relembrem épocas que hoje trazem embaraços, ou designações de género que afetem os que não se sentem com um género definido — e esses, a talho de foice — definitivamente, não deverão escolher o ensino não-misto. |
Vale a Pena… |
… apanhar o autocarro dos turistas (o famoso hop-on hop-off) e fazer Lisboa (ou o Porto, ou nas cidades onde existir e vocês viverem) como se fossem visitantes. Gosto de o fazer, de vez em quando. Ir no andar de cima, que é descapotável, e olhar para a minha cidade como se não fosse minha. Ouvir as explicações, e ir contextualizando para os mais novos. Acho mesmo um programa giro: ser turista na nossa própria cidade. Faz de conta que estamos a viajar. |
… apanhar o elétrico 28 e dar a volta à cidade de Lisboa, observando o casario, as colinas, os miradouros. Cuidado com os carteiristas. Eles devem apostar mais nos estrangeiros, mais abonados do que os tugas, mas se o leitor for alto e loiro, por exemplo, pode bem passar por sueco e ver a carteira subtraída antes de chegar à primeira paragem. |
… andar no Hippotrip pela capital. E o que é o Hippotrip, poderá perguntar alguém mais distraído? É um passeio num veículo anfíbio, que anda por terra e que também se aventura pelo Tejo, porque é carro, mas também é barco. O circuito dura 90 minutos e os animadores costumam ser bem divertidos, cheios de energia e a contar com a nossa interação. Não são guias tradicionais, apesar de contarem episódios sobre a cidade, mas o veículo também não é, de maneira que será uma tarde seguramente diferente.
Bilhetes: 18 euros (crianças) e 30 euros (adultos) |
Gostou desta newsletter? Tem sugestões e histórias que quer partilhar? Escreva-me para smsantos@observador.pt.
Pode subscrever a newsletter “Coisas de Família” aqui. E, para garantir que não perde nenhuma, pode assinar já o Observador aqui. |
Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
|
|