E quando um filho tem um acidente que lhe muda a vida? |
Há uns dias comecei a receber mensagens a pedir para divulgar uma página sobre uma menina que tinha tido um acidente e precisava de ajuda. Quando se tem uma conta de instagram com alguns milhares de seguidores, isto é o prato do dia. Pedidos de ajuda, histórias terríveis, outras não tão terríveis assim, e uma incómoda sensação de que, das duas uma: ou se publica todas, indiscriminadamente, e as pessoas que nos seguem já nem ligam, caindo todas as histórias em saco roto; ou há umas que ficam para trás, em detrimento de outras. Não é fácil fazer esta destrinça, confesso. |
Lido com casos duros há muito tempo. Durante os 20 anos em que fui jornalista, dediquei-me a histórias pesadas, densas. Não tinha intenção de explorar sentimentos, de expor as pessoas em momentos de fragilidade, como vemos amiudadas vezes em programas de entretenimento da televisão, que não se coíbem de colocar um piano a gemer baixinho enquanto a pessoa, em cacos, tenta que a voz não lhe falhe para poder proporcionar uma boa tarde de lágrimas ao espectador. |
Nunca foi esse o meu objetivo, como acredito que não seja o dos profissionais que o fazem (já sobre a intenção das respetivas estações, já não tenho a certeza absoluta), mas antes o de mostrar a força do ser humano. Encontrei pessoas capazes de comer o mundo, quando o mundo parecia querer devorá-las. Homens e mulheres que eram verdadeiras Fénix, ardendo e renascendo, ensinando-nos que podemos tudo, desde que estejamos dispostos a isso. Nem todos têm esta força, claro. E há os que se vão abaixo, os que não suportam o peso que a vida lhes deu, os que se apagam, os que desistem. Procurei não aborrecer esses porque – lá está – não tinha nenhuma tara por desgraças, mas sim um fascínio por superações. |
A Maria entrou na minha vida há uns dias e desconfio que não sai tão cedo. Não consigo esquecê-la, não há um dia em que não pense nela, não tem havido uma noite em que não acorde lá pelas 3h da madrugada com a sua história a martelar-me a cabeça. Conheci muitas histórias parecidas com a dela, já entrevistei várias pessoas a quem aconteceram tragédias semelhantes, mas, por uma razão ou por outra, a Maria mexeu comigo de uma forma especial. |
Quem é, afinal, a Maria Mendes? É uma menina de 13 anos, ginasta acrobata, que já representou Portugal em dois campeonatos do mundo e num campeonato da Europa. Vi vários vídeos dela, a voar, a dobrar-se ao meio, em rodopios impossíveis, sempre com um sorriso de quem está a fazer exatamente aquilo que ama. No dia 19 de Dezembro, a Maria teve um acidente durante um treino. Voou, caiu, fez uma lesão medular, e ficou tetraplégica. E isto é desastroso em qualquer idade, é violento para qualquer pessoa. Mas para uma menina de 13 anos, que fazia do corpo a sua arte, é ainda mais cruel. |
Talvez pelo facto de a Maria ter a idade da minha filha Madalena. Talvez por ter tanto talento. Talvez por todas as pessoas que a conhecem me dizerem que é um doce de menina. Talvez pela fase da vida em que estou, talvez porque sempre adorei ginástica (via em êxtase a Nadia Comaneci quando era miúda), talvez porque cheguei a inscrever a Madalena na Acrobática, mas ela nunca levou jeito (ainda bem, acrescentaria agora, de coração apertado). Talvez por tudo isto, a Maria entrou na minha vida e eu espero poder entrar na dela, ajudando no que me for possível. |
Não consigo imaginar o que seja para uns pais ter um filho dito “normal” e, num segundo, ficarem com um filho com uma deficiência adquirida. Sem querer diminuir a dor de quem tem um filho com uma deficiência à nascença – por Deus, nunca diminuiria uma fatalidade como essa -, arrisco-me a dizer que será, porventura, ainda mais difícil ter um filho dito “normal” que, por acidente ou doença, fique com uma limitação motora ou mental. Porque haverá sempre um termo de comparação. Um antes e um depois. Haverá sempre como que dois filhos num só. O que antes era de determinada maneira, e fazia isto e aquilo, e o que depois deixou de fazer isto e aquilo – mas que poderá fazer tantas outras coisas (e é aqui que os pais devem focar-se, no tanto que os filhos podem fazer, mesmo com a sua nova condição). |
Imagino que seja muito cedo para dizer isto aos pais da Maria. Vai ser preciso que todos passem pelas cinco fases do luto, até chegarem à aceitação. Só então poderão ver tudo o que é possível, em vez de estarem tomados por tudo o que se tornou, subitamente, impossível. |
Quando publiquei, nas minhas redes sociais, o pedido de ajuda que me foi feito (para tudo o que a Maria vai precisar), recebi minutos depois uma mensagem do Ricardo Teixeira, que entrevistei há uns anos, e que se ofereceu para ir falar com a família e com a Maria, para lhes garantir que o mundo não acabou. Também ele era um desportista, também ele andava, corria, fazer surf, estava a estudar. Um dia, deu um mergulho no mar, um mergulho banal (não foi do alto de uma rocha, não foi um mortal que não soubesse executar, não foi mais do que um mergulho como tantos mergulhos que todos damos para o mar) e, quando sentiu o impacto da cabeça a bater no chão e deixou de sentir as pernas, soube imediatamente que a sua vida tinha acabado de mudar. |
Aconteceu coisa parecida a Bento Amaral, outro tetraplégico que entrevistei, ainda há mais tempo. Tinha 25 anos quando, a apanhar uma “carreirinha” (uma onda que impulsiona o corpo até à areia), embateu num banco de areia e compreendeu logo, ao deixar de sentir as pernas, o que lhe tinha acontecido. Marta Canário, que também tive o prazer de conhecer, ficou paraplégica aos 15 anos, por culpa de uma fuga de gás de um esquentador na casa-de-banho. Por fim, praticamente toda a gente conhece o Salvador Mendes de Almeida (que ficou tetraplégico aos 16 anos, depois de um acidente de viação e criou, anos depois, a Associação Salvador, que tem feito um trabalho notável pelas pessoas com deficiência). Todos eles, não duvido, poderão ir conversar com a Maria, mal ela tenha chegado a um patamar de aceitação que lhe permita ouvir que há vida depois da fatalidade que lhe aconteceu. E pode ser uma boa vida – todos estes exemplos são casos inequívocos de vidas bem vividas, sem que aquele acontecimento funesto tivesse significado um fim. |
Os pais serão pilares fundamentais, e vão precisar de muita ajuda para serem esses pilares fundamentais. Para não protegerem em demasia, para darem as ferramentas para uma autonomia cada vez maior, para tentarem a todo o custo não comparar a filha de antes com a filha de depois. Li este artigo, de uma mãe a quem aconteceu o mesmo que à mãe da Maria (e à mãe do Ricardo, do Bento, da Marta, do Salvador, de tantos outros), e é muito interessante quando ela conta o momento em que se perguntou: “Porque é que eu não consigo aceitar o que aconteceu, se o meu filho já o fez? Ele é que está numa cadeira de rodas, e eu é que não consigo lidar com isto?” Depois, concluía que a sua frustração vinha do facto de que – como todas as mães – ela queria o melhor para o seu filho. E vê-lo numa cadeira de rosas não era – de todo – aquilo que tinha imaginado para ele. Não era o melhor. É por isso que há um longo trabalho de reajuste de expectativas. Não só por parte dos pais, como por parte de toda a família e todos os amigos. Os amigos, de resto, serão tão importantes como os pais, na medida em que um adolescente tem nos amigos a sua estrutura. Quantos mais se mantiverem por perto, mostrando que a essência da pessoa não se perdeu, e que gostam dela com a mesma intensidade, incluindo-a nos programas, com a naturalidade de quem inclui outro amigo qualquer, mais fácil será aceitar esta nova realidade. |
Escrevo isto sem saber do que falo, apenas a partir de tudo o que me contaram estes e outros entrevistados que passaram por situações semelhantes. Escrevo imaginando todo o turbilhão que irá naqueles corações, naquelas cabeças, porque bastou um segundo para tudo o que aquelas pessoas tinham por garantido deixar simplesmente de existir. Pode acontecer-nos a nós, a qualquer momento, e isso é muitíssimo perturbador. |
Cada vez que penso nesta história, teima em ocorrer-me um pensamento infantil: o de que só queria ter uma varinha de condão, para que nada disto tivesse acontecido, para que a Maria continuasse a sua vida como antes, a voar e a deslumbrar todos com os seus voos. Escrevo, porém, com a profunda esperança de que ela consiga voltar a voar, de outras maneiras. Que ela mantenha o sorriso e a vontade de viver uma vida plena. Que seja feliz.
Não conheço a Maria, mas quero muito que ela seja feliz. |
Vale a pena… |
Ajudar a Maria…
…nem que seja com um euro, para esta conta solidária criada para a apoiar:
PT50 0036 0447 9910 4548 3039 8
SWIFT: MPIOPTPL |
Ler o livro Lições de Vida
Escrito por Salvador Mendes de Almeida, são vários testemunhos reais de pessoas que conseguiram dar a volta, mesmo quando a vida parecia ter perdido todo o sentido. Exemplos de superação que nos servem de lição a todos.
(Ed. Livros d’ Hoje) |
Ler o livro Sobreviver
Escrito por Bento Amaral, é a história deste enólogo desde que ficou tetraplégico, quando apanhava uma onda no mar, aos 25 anos. Nesse momento achou que a vida tinha acabado, mas afinal ainda tinha tudo para fazer: terminou o curso de Engenharia Alimentar, tornou-se professor e enólogo, e não deixou a sua paixão: a vela. Em 2005 tornou-se campeão do mundo da modalidade.
(Ed. Sinais de Fogo) |
Ler o livro Ser Feliz é uma Escolha
Marta Guimarães Canário é um raio de luz e teve uma capacidade de aceitação fora do vulgar. Tinha 15 anos quando a vida mudou e continuou, quase como se nada se tivesse passado. É vê-la em festivais, concertos, na total loucura, porque nunca nada a impediu de coisa alguma. De resto, ela diz no livro: “Nós decidimos ser vítimas ou vencedores. É preciso lamber as feridas e voltar à luta.”
(ed. Matéria Prima) |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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