Para que serve, ao certo, o quadro de honra? |
Fiz o pré-escolar e a primária num colégio inglês do qual guardo as melhores memórias. O colégio funcionava num palacete lindíssimo, com um salão nobre com tetos trabalhados, um lustre espantoso, um piano, e uma escadaria de madeira que servia de escorrega aos alunos (há pouco tempo fizemos uma surpresa à nossa professora primária e fizemos-lhe lá a festa dos 80 anos, repetindo a proeza de descer a sumptuosa escadaria de rabo – aventura que se revelou bem mais complexa do que quando tínhamos 8 anos, confesso). |
Nesse meu primeiro colégio, havia quadro de honra. Nunca lá figurei. Lembro-me de almejar atingir aquela espécie de pódio, mas, sempre que as minhas notas chegavam, o desejo afundava-se um pouco mais. Quando o ano letivo começava, a minha esperança renovava-se. Até que deixei de acreditar e simplesmente desisti. Estava visto que aquilo não era para mim. |
No início, olhava para os eleitos como se fossem deuses do Olimpo. Cresceram na minha consideração, mirava-os com estranheza e fascínio. Como é que havia pessoas que conseguiam ser excelentes a Português, Inglês, Matemática, Estudo do Meio e Ginástica? Como é que, além disso, ainda eram bem-comportados e participativos? Deviam ser feitos de outra massa, seguramente. |
Com o passar do tempo, deixei de os olhar com enlevo, para passar a achar que eram irritantes, que não eram como o comum dos mortais, e sentia que me olhavam do alto do seu brilhantismo, ainda que até pudessem não o fazer. A verdade é que eu estudava e esforçava-me, porém não ia além da mediania (tirando a Português, em que lá conseguia ser mais do que mediana, e a Matemática, em que não chegava sequer a ser satisfatória). |
Os meus dois primeiros filhos foram para um colégio onde não havia quadro de honra, pelo que, durante vários anos, não voltei a pensar no assunto (para que conste, se houvesse, nenhum dos dois teria visto o seu nome lá escrito). Até que, certo dia, recebemos uma carta convidando-nos para a cerimónia em que a nossa filha Madalena (a terceira) iria receber um diploma de mérito. E aí… como dizer? Insuflei como um pavão. Oh, felicidade! Oh, contentamento! Uma filha que atingiu o Olimpo. De certo modo, foi como se eu tivesse entrado para o quadro de honra, com trinta anos de atraso. Confirmava-se aquela história de a vingança ser servida fria. |
Bom, e afinal de contas o que é que eu penso sobre o quadro de honra (ou de mérito ou de excelência – há várias versões para a mesma coisa)? Penso que é uma daquelas ideias que foi criada com boas intenções, mas cujo resultado prático pode não ser tão fantástico assim. Olhando para o meu caso concreto: aquilo estava ali e eu até queria lá chegar, e esforçava-me por isso. Porém, sem sucesso. O que sentia? Que devia ser burra como uma porta de chapa ondulada. E, a determinada altura, simplesmente deixei de tentar. |
No caso da minha filha, a coisa foi diferente. Ela chegou lá e podia ter-se sentido impelida a continuar a figurar entre os “melhores”. Mas não. Não ligou absolutamente nada (dá Deus nozes…) e pronto, saiu airosamente do Olimpo para nunca mais lá voltar. |
Se estiver atento, o leitor terá reparado que pus umas aspas na palavra “melhores”. Porque a pergunta é: serão os alunos realmente melhores porque têm melhores notas? Não será essa uma visão simplista? E agora o leitor poderá estar a pensar: “Que ressabiada do pior, esta senhora. Como não conseguiu nunca ser uma das melhores, e dos quatro filhos só uma passou de raspão pelo Monte divino situado entre a Macedónia e a Tessália, logo desdenha do quadro de honra. Pois, claro. É como um pobre dizer à boca cheia que o dinheiro não traz felicidade.” |
Compreendo a análise, porque eu própria estive aqui a cogitar se seria ressabiamento. Mas creio que não. É óbvio que senti uma vaidadezinha quando a Madalena recebeu aquele diploma, e acho que qualquer pai ou mãe sentirá o mesmo (ainda para mais se tiver essa espinha atravessada na garganta). |
Mas, pensando bem sobre o assunto, creio que se trata de mais uma prova de que o nosso sistema de ensino está todo alicerçado nas notas, em números (como o psicólogo Eduardo Sá referiu neste episódio de “Porque Sim Não é Resposta”, da Rádio Observador). E não em tentar entender os alunos na sua individualidade e imensa complexidade. |
Quantos alunos medianos ou mesmo fracos terão capacidades que nunca puderam explorar, num sistema que está obcecado com resultados e rankings e com a escolha dos “melhores”? E em que medida essa pressão para atingir a excelência é efetivamente um incentivo para aqueles que, rapidamente, percebem que não conseguem lá chegar, por muito que até se esforcem? |
E a verdade é que há quem realmente se esforce, mas não consiga abrir as portas do Paraíso, seja por falta de inteligência (acontece e ninguém tem culpa), seja por falta de método de estudo, imaturidade, deficientes condições de vida e/ou de estabilidade emocional, entre tantas outras razões possíveis. Não será o quadro de honra uma forma de inferiorizar quem não lhe chega? |
Ainda me dou com algumas das pessoas que assentaram arraiais no quadro de honra durante anos a fio e… sabem que mais? Não há uma única que tenha uma vida assim tão melhor do que a minha. Por acaso era um estudo interessante, que eu não sei se já alguém levou a cabo: o que é feito dos alunos que eram excelentes a tudo? Estão realizados profissionalmente? Têm sucesso nas suas áreas? Estão no quadro de honra da vida? |
Há ainda outra questão, que me parece pertinente. O quadro de honra (ou de excelência) pressupõe que se seja excelente em todas as disciplinas. Será mesmo razoável (e saudável) exigi-lo aos alunos? Será mesmo positivo ser bom a tudo? Ou melhor: excelente a tudo? Não sei a resposta. Sei que nunca exigi excelência aos meus filhos. Talvez faça mal, não sei. Só sei que não me senti capaz de lhes exigir aquilo que eu não consegui dar (e – repito – não foi por falta de esforço). |
Com toda a franqueza, fico sempre com pele de galinha quando algum dos meus filhos me conta do colega que largou a chorar, num pranto, porque teve 90%, confessando, entre soluços, que os pais vão ficar zangados porque devia ter tido mais. Nunca entendi nem vou entender os pais que, perante um teste de 90% perguntam: “porque é que não tiveste 100%?” Respeito, como respeito as opiniões distintas da minha em geral, mas não me peçam que compreenda. |
Nem só de notas se devia fazer o percurso escolar. De que serve ter tudo corrido a 100% (ou a 20 valores) se depois são miúdos que não sabem ter uma conversa, não sabem mover-se na teia social intrincada da escola (antecâmara da vida lá fora), não sabem dançar, rir, fazer rir, ter empatia, convidar amigos para almoçar ou dormir em casa, serem convidados para irem, também, a casa de amigos? De que serve ter marrões, se não se aposta nas suas ferramentas socioemocionais, tão importantes para a vida toda? |
Quando olho para o nosso sistema de ensino, para a febre dos testes, das notas, dos rankings, lembro-me do filho de um amigo, que estudou vários anos na Austrália. Por lá, tanto contava a Matemática como o facto de o aluno fazer surf, voluntariado ou outra coisa qualquer. Esse filho do meu amigo não era especialmente bom a uma determinada disciplina, mas tinha decidido tirar o curso de nadador-salvador e fazia a sua parte, nas praias da cidade. Isso contava exatamente o mesmo que as outras disciplinas, fazendo com que os skills sociais e profissionais não estivessem à margem do percurso escolar. Não havia a dissociação que existe por cá entre escola e vida, como se fossem carris distintos e não estivessem intimamente ligados. |
Em suma: acho que o quadro de honra não serve para muito mais do que para fazer os paizinhos sentirem-se nos píncaros (guilty as charged). E para os miúdos olharem uns para os outros de cima para baixo, e de baixo para cima. Quando, em bom rigor, deviam olhar olhos nos olhos, entreajudando-se, de preferência. |
Vale a Pena… |
Ler o livro Ainda Bem Que a Minha Mãe Morreu
Calma, mãe, não é o que eu vou pensar quando partires – conto, de resto, que continues por cá durante muitos anos. Mas a autora, Jennette McCurdy, teve uma infância bastante mais lixada que a minha. Aos seis anos fez a primeira audição como atriz e a mãe estava obstinada em torná-la uma estrela. Foi assim que lhe restringiu a alimentação e a obrigava a pesar-se cinco vezes por dia. A autora finalmente alcançou o estrelato e, enquanto a mãe rejubilava, a filha entrava numa espiral depressiva. Lá está, como isto anda tudo ligado, é mais ou menos como o quadro de honra: por vezes é mais excitante para os pais do que propriamente para os miúdos. De qualquer forma, o livro está narrado com um humor muito negro e mostra como a morte de uma mãe pode ser, num caso patológico como este, uma espécie de corte umbilical muito tardio, e um verdadeiro grito do Ipiranga.
(Ed. Lua de Papel) |
Ler o livro O Que Fazem os Sentimentos Quando Ninguém Está a Ver
E se os sentimentos fossem criaturas? Como seriam? E o que fariam quando ninguém estivesse a ver? Escrito por Tina Oziewicz, traduzido do polaco por Teresa Fernandes Swiatkiewicz e ilustrado por Aleksandra Zajac, este é um livro lindo sobre essas criaturas que são os sentimentos, umas mais calmas, outras nervosas, umas criaturas simpáticas e outras resmungonas. É um livro surpreendente e divertido que ajuda as crianças a entenderem melhor o que sentem.
(Ed. Fábula) |
Ver a Orquestra Bamba Social
Como é que é, seus foliões? Tudo vestido de matrafona, a atirar serpentinas e a a sambar? Para os fãs do Carnaval, este espetáculo vem mesmo a calhar (e mesmo para quem não é fã, porque isto é música da boa). Mundo Novo é o novo álbum da Orquestra Bamba Social,que o vai apresentar ao vivo untamente com uma festa de Carnaval, numa disposição de 360 graus, com o público à volta. Vai haver muito samba no pé. No final, a celebração carnavalesca continua com Farola (Dj set). Ah… and last but not least, o espetáculo conta com as participações especiais de César Mourão e Tiago Nacatato.
Sábado, 18 de fevereiro, às 21h30, no Super Bock Arena (Pavilhão Rosa Mota), no Porto.
Bilhetes a partir de dez euros |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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