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Está preocupado com a saúde mental dos seus filhos? Ainda bem |
O ano letivo passado foi, para a minha filha, um ano difícil. Durante muitos meses não percebemos o que se passava. Começámos por achar que tinha entrado a pés juntos na adolescência (tem 13 anos acabados de fazer, pelo que tudo se passou aos 12). Começou por estar mais calada, mais fechada no quarto, mais séria, mas, de repente, foi como se a alma lhe tivesse sido sugada por um qualquer sugador-de-almas. Não tenho melhor forma de o descrever. |
Apática, sem intervir, sempre com sono, sempre sem vontade para nada. Ao longo do ano, tive de a ir buscar à escola dezenas de vezes por estar com dores de cabeça. Faltou às aulas muitos dias. Ficava na cama, no escuro. Tinha sempre dores de cabeça. |
O primeiro passo foi levá-la a uma neurologista pediátrica. Eu sofro de enxaqueca e temi que fosse o mesmo. Confirmou-se. A neurologista deu-lhe várias recomendações, receitou medicamentos para as crises, e nós, pais, achámos que talvez estivesse descoberta a causa. Quem sofre desta doença, que já foi considerada pela OMS como a segunda mais incapacitante do mundo (só precedida pelo AVC), sabe que pode ser devastadora a ponto de engolir a vontade de viver. Era uma má notícia, claro, mas os medicamentos estão cada vez mais avançados, e talvez fosse possível encontrar uma saída. Pelo menos havia, finalmente, uma explicação. |
Só que não. A indolência continuou, as notas caíram a pique, e não parecia haver nada, mas absolutamente nada, que lhe mudasse o ânimo. Levei-a a almoçar, só mãe e filha, ao seu restaurante preferido, inventei programas a duas, para tentar perceber se haveria ali mais alguma coisa (ouvimos tantas histórias “macacas” que é fácil deixar a imaginação à solta e temer alguma bizarria vivida em segredo), falei com pais de colegas, pedi à diretora de turma que estivesse mais atenta, reuni a família cá de casa para debater o assunto, e notei que até um dos irmãos, que implica com ela desde sempre, lhe deu tréguas. Afinal, que pica dá provocar um “morto”? |
A par com o humor, que era muito mais indiferente do que propriamente triste, comecei a reparar que comia cada vez menos. Emagreceu, o que não era propriamente mau uma vez que tinha algum peso a mais, mas aconteceu tudo muito depressa. E, tendo em conta a restante conjuntura, aquele emagrecimento súbito fez-me ficar ainda mais atenta. Um dia, a nossa empregada disse que ela tinha deitado comida fora, pensando que ninguém estava a ver. E foi então que enviei um e-mail ao pediatra. |
O Dr. Jaime Marçal, que é cá dos meus (só se alarma quando pode haver razão para isso), mandou-me ir lá imediatamente. Nestes 21 anos em que o conheço, só aconteceu isto uma vez: foi quando, há uns 10 ou 11 anos, lhe disse que o nosso filho Martim estava sempre cansado e que não conseguia subir para o beliche porque lhe doíam as pernas, entre outros sintomas. Na altura, suspeitou, em silêncio, de uma leucemia, mandou-nos ir ter com ele ao hospital o mais depressa possível, pediu análises urgentes e, felizmente, as piores suspeitas não se confirmaram – era uma mononucleose. |
Desta vez, quando entrámos, vi-o a escrutinar a Madalena com o olhar, mal ela cruzou a porta. Como se lhe tirasse as medidas, em busca de sinais de magreza extrema. Não havia. Ela tinha perdido uns seis quilos de um momento para o outro, mas não estava propriamente “esquelética”. Espicaçou-a, fez-lhe perguntas, ela respondeu com letargia, e ele percebeu que aquela pessoa estava nos antípodas da miúda que conheceu desde o primeiro dia de vida, enérgica, determinada, dinâmica. Depois de a examinar, pediu-lhe que saísse, para falar comigo a sós, e disse: “Podemos ter apanhado isto, seja lá o que for, muito no início. Recomendo que a leve já a um psicólogo ou um psiquiatra, para não evoluir. Tenho aqui miúdos que me chegaram aos trinta quilos, com a idade dela, e até mais velhos. É melhor agir depressa do que ficar à espera.” |
Não tenho qualquer preconceito com o tema. Já fiz psicoterapia, ainda que tivesse achado, durante anos, que “não tinha tempo para depressões”. Felizmente, acho que todos somos um bocado parvos de vez em quando, por isso procuro não me martirizar com isso. Ao longo da vida tenho, de resto, aprendido a pensar duas vezes antes de falar e, até, a pensar duas vezes antes de pensar. É que, sempre que cuspo para o ar, costuma cair-me em cima. E aquela pessoa toda ativa, sem tempo para se ir abaixo, um dia teve de reconhecer que precisava de uma ajudinha para conseguir simplesmente levantar-se da cama. Não faz mal nenhum, nem sou menos por isso. Se quando partimos um braço, vamos ao médico, quando estamos partidos por dentro, por que raio esperamos que passe sem intervenção especializada? O mesmo com qualquer filho meu. Não sei curar-lhes todas as dores (infelizmente). E, por isso, nada como procurar quem saiba. |
Ela mostrou-se imediatamente recetiva, quando lhe pus a questão, e começou a psicoterapia, semanalmente. Um mês depois, talvez mais, pareceu-nos haver algumas diferenças. Uma certa leveza, uma maior intervenção nas conversas familiares, um ou outro sorriso oferecido sem (tanto) esforço. E, um dia, passados alguns meses de consultas, a meio de uma discussão que seria perfeitamente trivial, ela largou a chorar: que odiava o ensino articulado, que odiava a formação musical, que odiava as audições, e o piano, e tudo. Fiquei estática, na ombreira da porta, sem reação. |
Para quem não saiba, o ensino articulado consiste na inclusão do ensino artístico – que pode ser música ou dança – na oferta curricular. Ou seja, além de Matemática, Português, Geografia, e as restantes disciplinas “normais”, estes alunos têm Instrumento, Classe de Conjunto e Formação Musical (com as respetivas notas na pauta, juntamente com as avaliações das outras matérias). |
Como assim? Ela que gostava tanto de tocar, que dançou feita doida, aos 6 anos, quando lhe comprámos o piano, que estudava Bach com alegria (cada vez menos alegria, é certo)? Aquilo era tudo novo e incompreensível para mim, para nós. Disse que já o tinha verbalizado à psicóloga, e que desejava muito sair, no próximo ano (este). Quando, em choque, lhe perguntei por que raio não nos tinha contado antes, soluçou um ainda mais surpreendente: “Tinha medo de vos desiludir”. |
Haverá pais que traçam sonhos para os filhos, coisas concretas, muitas vezes objetivos que eles próprios queriam ter alcançado e que projetam nos pequenos, para que eles consigam cumpri-los. Haverá outros pais que, já possuindo um talento, almejam ver nos filhos essa mesma habilidade, como que para dar seguimento a um caminho familiar de sucesso. Não é o nosso caso. Nunca quisemos que ela estudasse música para colmatar alguma frustração de não o termos feito. Nem somos músicos em busca de um filho que nos continue as pisadas. Sempre quisemos que escolhessem aquilo que os fazia felizes. E como o piano parecia fazê-la feliz, o ensino artístico pareceu-nos um bom percurso. Exigente, culturalmente rico, intelectualmente interessante. Para mais, somos pais abertos à mudança, nada rígidos na nossa educação, pelo que aquele “medo de vos desiludir” ficou a trabalhar na nossa cabeça, como uma equação difícil de resolver. |
Claro que lhe mostrávamos várias vezes orgulho no seu progresso. Afinal, ela sabia uma língua que nós todos, lá em casa, desconhecíamos. E isso era notável: olhar para uma partitura e saber o que fazer com ela. Transformar aqueles rabiscos em música. É óbvio que, por vezes, lhe pedimos que tocasse para familiares e amigos, possivelmente fazendo-a sentir que o nosso orgulho se transformaria numa enorme deceção quando nos desse a notícia de que, afinal, aquilo já não lhe fazia sentido. Isto da parentalidade é um cobertor sempre demasiado curto: se não demonstrássemos vaidade seríamos porventura “acusados” de não ligarmos à sua evolução; já mostrando a nossa vanglória, acabámos, de certo modo, a deixá-la encurralada na sua escolha. |
Conversámos com a psicóloga. E sim, a nossa filha tinha chegado em mau estado à primeira consulta. Totalmente desinteressada de tudo, sem força anímica, numa tristeza funda que não sabia de onde vinha. Foi preciso escavar (e, lá está, há quem saiba escavar rochas, há quem saiba dissecar corpos, e há quem saiba perscrutar almas) até descobrir a origem de toda aquela desesperança. |
O horário do ensino articulado e toda a pressão inerente estavam a esmagá-la. E se há quem lide lindamente com isso (veja-se os atletas de competição, e tantos outros miúdos que frequentam o Conservatório de Música ou de Dança), ela não estava a conseguir. Mais fraca? Menos capaz? Não. Simplesmente diferente. |
Para nós foi perfeitamente indiscutível que a iríamos deixar sair. Não por optarmos pelo “facilitismo”, ou por não incentivarmos os nossos filhos a perseguirem as suas decisões com empenho. Simplesmente porque ficou claro que aquela “escolha” já não fazia sentido e já só lhe trazia sofrimento. |
Não tenho palavras para agradecer o acompanhamento psicológico que teve, assim como me faltam adjetivos para descrever a diferença da Madalena do ano passado para a Madalena deste ano. É literalmente como se fosse outra pessoa. A nossa pessoa. Alegre, divertida, pispineta, dinâmica. Impossível não notar a diferença. Até o irmão, que lhe tinha dado tréguas, voltou a implicar com ela. Aaaah, como é bom voltar a ter alguém com quem trocar argumentos! No outro dia, ao vê-la chegar aos pulinhos de um almoço de amigas, abracei-a e exclamei um “Bem-vinda!” que significava bem mais do que contentamento pelo seu regresso a casa naquele dia. Ela sorriu um sorriso cúmplice, de quem sabia bem ao que me referia. |
Na segunda-feira, 10 de Outubro, assinalou-se o Dia Mundial da Saúde Mental. E se é verdade que falta muita coisa, nomeadamente profissionais de saúde no SNS, também não é menos verdade que falta, em primeiro lugar, encarar a doença mental como algo tão natural como outra doença qualquer. Sem estigma, sem vergonha, sem achar que é passageiro, que se resolve sozinho, que é “frescura” de quem não tem problemas “a sério”. A saúde mental é a base de tudo, até mesmo de muita da nossa saúde física. Não a levar em linha de conta é como fazer uma casa sem alicerces. Mais dia menos dia… vem tudo abaixo. |
PS: este texto foi escrito com o consentimento da Madalena. “Para que outras crianças se sintam à vontade para falar com os pais sobre o que sentem, e para que outros pais consigam entender melhor os seus filhos.” |
Vale a pena… |
Visitar a exposição Icons, com fotografias de Steve McCurry |
Talvez não com crianças muito pequenas, porque há algumas imagens duras, mas levei o Mateus (8 anos) e tudo decorreu com normalidade (afinal, quem vê telejornais hoje em dia está preparado para tudo). E a verdade é que esta exposição vale mesmo a pena. São mais de cem fotografias de grande formato que fazem a retrospetiva da carreira deste conhecido fotógrafo, cujo trabalho abrange conflitos, tradições antigas, cultura contemporânea, a vida e os seres humanos, em geral. É dele a famosa fotografia da rapariga afegã – Shabat Gula – cujo olhar cativou a atenção do mundo ao ser capa da National Geographic em 1985 (e novamente em 2002).
Até 31 Janeiro, na Cordoaria Nacional, em Lisboa. |
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São mais de 400 páginas que reúnem largas centenas de algumas das melhores tiras de desenho de Hugo van der Ding, o humorista culto e mordaz que se tem evidenciado na imprensa e nas redes sociais.
(ed. Oficina do Livro) |
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Escrito por Millie Jacobs, é um livro que só faz sentido para quem tenha um animal de estimação e ainda mais sentido fará para os que tiverem perdido um há pouco tempo. Quem os tem sabe como se tornam parte da família. Perdê-los traz muitas vezes uma dor profunda e solitária, porque há muitas pessoas que não a entendem. Neste guia, a terapeuta britânica recorre a testemunhos de pessoas que passaram por uma dor semelhante, recorre à sua própria experiência pessoal, bem como à experiência profissional no processo do luto. Há um capítulo específico para crianças, em que a autora ensina a lidar com as emoções, a ultrapassar a perda e a honrar os companheiros.
(ed. Asa) |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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