Trabalhos forçados (para toda a família) |
O tema não é novo e está sempre a dar que falar. Deverão as crianças pequenas (primeiro ciclo) levar trabalhos para fazer em casa, ou deverá a escola ser o único local onde a aprendizagem é feita e consolidada? Já se assistiu a trocas de argumentos de defensores de ambos os lados da barricada, todos eles com a sua razão, e é por estas e por outras que fico muitas vezes com dificuldades em posicionar-me claramente num dos extremos. Se me ficasse apenas pela minha própria história, não só diria aos sete ventos que os trabalhos para casa não deviam existir, como gritaria, escreveria panfletos, convocaria manifestações, encetaria petições, levaria o caso às últimas consequências. |
Nunca fui uma aluna brilhante. Também não era uma desgraça, passei sempre de ano (o que nem sempre é uma boa ideia, acho que um chumbo, por vezes, pode ser providencial), mas fui uma aluna mediana. Estudava muito, o que fez com que crescesse a achar que era burrinha. Talvez não estivesse errada, mas o certo é que aquela discrepância entre o tanto que eu marrava e o poucochinho que alcançava, fez-me uma certa mossa na autoestima. Hoje, mais do que achar que existia um défice cognitivo qualquer, reconheço que o mal estaria porventura no método de estudo, na fraca capacidade de concentração, e em algum desinteresse por matérias que, muitas vezes, me aborreciam mais do que me estimulavam. |
Ora, não sendo uma aluna excelente, e tendo problemas sérios com a disciplina de Matemática, posso assegurar-vos que trazer trabalhos para casa era o meu maior tormento. Por um lado, porque nunca os conseguia fazer sem ajuda, por outro, porque quem me ajudava era a pessoa mais desprovida de paciência e pedagogia que o mundo já produziu: a senhora minha mãe. Lembro-me de hesitar dois segundos numa resposta, e de já lhe ver tremer um olho. Quando falhava um resultado, o nariz enrugava-se-lhe, e eu imaginava que ela podia começar a rosnar-me. |
Um dia, passou-se de tal maneira que me deu com uma colher de pau na bochecha (eu fazia os trabalhos enquanto ela preparava o jantar). Apesar de ser uma nódoa em números, era relativamente boa nos reflexos. De maneira que, ainda a colher vinha no ar, já eu estava a virar a cara para me defender. Erro crasso: acabei a levar com a colher de pau no sobrolho, que inchou imediatamente. Mortificada pelo que havia feito, a minha mãe caiu em si, creio que me terá pedido desculpas, porque me recordo de se ter afadigado a cuidar do meu olho tumefacto, visivelmente consternada, arrependida e culpabilizada. |
Isto lido à luz dos dias de hoje, parece que a minha mãe era uma agressora, e que eu estaria melhor aos cuidados de uma instituição. Calma, eram aos anos 1980, em que bater nos filhos era tão normal como ter sede. Levei as minhas palmadas, que não creio que tenham destruído alguma coisa cá dentro, mas esta situação em concreto foi realmente um azar – aquilo que era para ser uma pancadinha-de-abre-olhos numa bochecha, acabou a dar-me um inchaço, é certo, mas também a alegria de ver a sessão de trabalhos de casa terminada – já tive dores maiores, com zero benefícios. |
Como o leitor poderá facilmente compreender do relato anterior, eu tinha tudo para brandir bandeiras anti-TPC, acantonar-me à porta da Assembleia da República, fazer greve de fome, levar o assunto ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (aposto que o nome deste tribunal é politicamente incorreto, no tempo de todas as sensibilidades, e que já deve estar a ser – se é que não foi já – alterado para Direitos Humanos). Mas depois vieram outras experiências, que amenizaram um pouco esta minha aversão aos TPC. |
O meu primeiro filho fez a primária num colégio que não enviava trabalhos para casa. E eu achei ótimo (claro). Mas, depois, quando chegou ao 5º ano, senti que ele não tinha métodos de trabalho, de estudo, não sabia fazer sozinho em casa, esquecia-se, perdia-se, sentava-se, levantava-se, distraía-se. Não sabia fazer. Foi um período de adaptação difícil e, nesse sentido, comecei a pensar se não lhe teria feito bem ir preparando terreno para quando as coisas se tornassem mais complexas. Apaziguei a opinião extremada contra os TPC E foi nesse ponto que fiquei, e é aí que ainda me encontro. |
Ou seja: acho que nem tudo, nem nada. Nem sempre, nem nunca. Como, de resto, com quase todos os aspetos da vidinha em geral. É dos lugares-comuns mais verdadeiros, o de que no meio é que está a virtude. Não acho que os miúdos devam levar trabalhos para fazer em casa todos os dias, até porque a quantidade de horas que muitas crianças passam na escola já se inscreve no quadro do absurdo. Quando uma criança chega à escola às 8h00 e sai às 19h00, o facto de ainda ter TPC deveria estar elencado na classificação de maus-tratos. |
Concordo com os trabalhos ao fim-de-semana, por exemplo. Ou a leitura de um livro, durante a semana, com o objetivo de se fazer uma apresentação num dia estipulado (e, desse modo, incutir hábitos de leitura).
Em 2006, Harris Cooper, professor de Psicologia da Duke University (EUA), publicou um estudo em que se revelava a evidência de uma correlação entre os trabalhos para casa e o sucesso escolar. |
Ainda assim, e apesar de concordar que é importante que os miúdos se acostumem a estudar fora do ambiente escolar, a saber estar à sua secretária, bem sentados, concentrados, a tentar que trabalhem sozinhos, reconheço que isto pode servir duas situações perniciosas: por um lado, pode acentuar as desigualdades sociais (pais mais informados terão mais facilidade em ajudar os seus filhos, versus pais menos diferenciados não saberão como fazê-lo), por outro, pode criar verdadeiras tempestades na relação entre pais e filhos. |
Esta última situação é-me muito familiar. Não só pelo que vivi na infância mas também pelo que já vivi com os meus quatro filhos. Sabem aquela coisa de repetir um padrão? Pois bem: confere. Por mais que tenha odiado a falta de paciência que a minha mãe teve para comigo, por mais que me sentisse profundamente infeliz por não ter a resposta na ponta da língua, algo que deixaria a minha mãe orgulhosa, e o meu sobrolho intacto, a verdade é que dei por mim, muitas vezes, a perder as estribeiras com os meus filhos. O verbo está no passado porque, com o mais novo, tenho mesmo tentado manter uma distância de segurança sempre que é para “ajudar” nos TPC. |
Sejamos francos: eu não sou professora, não sou pedagoga, não sei como fazer. Quando ele não consegue, sinto-me impotente e dou por mim a ser má, a gritar, quando devia fazer o oposto: entender que ele não consegue, manter a calma, e procurar outras maneiras de o ajudar. Na teoria de “como estudar com um filho”, passo com distinção. Na prática, são outros quinhentos. Vale-me o facto de reconhecer tudo isto e, por isso, ter decidido passar a pasta ao pai e ao irmão mais velho. Eles que ajudem, que eu não tenho préstimo para isso. Além do mais, já estudei reis, rios, rochas, aves, corpo humano, equações, recursos de estilo, verbos, e o raio, mais vezes do que as que me competiam. Estou oficialmente reformada do ensino básico, secundário e superior, muito obrigada. |
Por tudo isto, continuo neste limbo, entre odiar os TPC, mas achar que, com conta peso e medida (e pessoas minimamente preparadas para ajudar os miúdos quando eles pedem ajuda, afastadas de colheres de pau, de preferência), podem ser uma boa ferramenta. |
Vale a Pena… |
… Ler o livro Mar Negro, de Ana Pessoa e Bernardo Carvalho
Uma banda desenhada especial, bem ao jeito da editora Planeta Tangerina. Um livro para maiores de 15 anos, sobre adolescentes e a procura da identidade. Não esquecer que o livro Desvio (dos mesmos autores) venceu o Prémio Amadora BD para Melhor Obra de Ilustrador Português (2020).
(ed. Planeta Tangerina) |
… Ler o livro Canção Doce, de Leila Slimani
O livro é absolutamente asfixiante. Uma mãe (Myriam) decide retomar a sua atividade profissional porque se sente sufocar ao ser apenas mãe. O marido começa por não gostar muito da ideia, mas depois de descobrirem a ama Louise, ambos sentem que a vida ganhou novas cores. A ama conquista o coração das crianças e dos pais e torna-se imprescindível no quotidiano de todos. O problema é que… o melhor é ler. Mas se não costuma deixar os seus filhos com uma ama para ir jantar… pode acontecer que nunca mais os deixe. E isso não é bom. Se for esse o caso, não leia.
(ed. Alfaguara) |
… Almoçar ou jantar no restaurante World of Heroes
É um restaurante enorme cheio de super-heróis king-size. Os mais novos ficam boquiabertos a olhar para o Super-Homem, o Homem Aranha, ou o Hulk, o que pode dar jeito se forem ruins para comer. Sejam comilões ou pastelões, a verdade é que os hambúrgueres são mesmo, mesmo bons.
Largo das Palmeiras 11a, Lisboa. Tel.: 926 975 347 |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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