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A semana foi dominada por dois temas: o relatório sobre os abusos na Igreja portuguesa e o pacote de medidas para a Habitação. Hoje tratarei deste último, com promessa de regressar ao primeiro numa próxima newsletter. |
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C. ficou desempregada em 2011. Recorreu ao alojamento local para pagar as contas. A pouco e pouco começou a prestar serviços a outros proprietários. Hoje emprega sete pessoas, o ordenado mais baixo está acima da mediana nacional. Dá ainda trabalho regular a lavandarias, fotógrafos, pintores, electricistas, canalizadores. Ou seja, alimenta todo um ecossistema – alimenta C. e alimentam milhares de outros microempresários do Alojamento Local. Agora, como ela escreveu numa rede social, “as propostas absurdas do Governo vão tirar o tapete a todas estas pessoas”. |
Victor Sebestyen nasceu em Budapeste e é historiador, tendo escrito sobretudo sobre a Europa de Leste e o comunismo. Um dos seus livros mais recentes é Lenine, o Ditador e, quando ontem estava a ouvir um podcast onde ele era entrevistado, notei como o biógrafo sublinhava um dos traços de carácter do fundador da URSS: nascido numa família da baixa aristocracia, depois empobrecida, detestava visceralmente a pequena burguesia. |
Não pude deixar de fazer um paralelo – não um paralelo político obtuso, mas um paralelo psicológico. É que, de facto, nada é tão visceralmente contrário aos instintos dos socialistas de todos os quadrantes do que a pequena burguesia. Mais concretamente todos os que fazem pela vida sem dependerem do Estado, todos os que criam pequenos negócios, todos os que ganham algum dinheiro sem pedir subsídios, todos os que tendem a ser irredutivelmente independentes e a ter uma noção muito clara dos seus interesses e de como a vida custa a quem não vive patrocinado, ou amparado, pelos poderes públicos. Um socialista não precisa de ser comunista para ter um instinto que o leva a desconfiar destes “independentes”: não são nem funcionários nem grandes empresas que vão ao beija-mão. Portanto são perigosos. |
Portugal, felizmente, ainda tem muitos milhares de “pequenos burgueses” – eu até diria que foram eles que nos salvaram nos anos da crise, reinventando-se e reinventando muitos áreas de actividade, incluindo naturalmente o Alojamento Local. Também por isso o PS de António Costa não gosta deles, pois eles não encaixam nem na sua “narrativa” sobre a inutilidade dos anos difíceis e ainda menos na “narrativa” da “recuperação de rendimentos”. Eu diria mesmo que, para os socialistas, eles estão a mais em Portugal. |
Se alguém tivesse dúvidas de que é essa a perspectiva dominante entre quem nos governa perdeu-as seguramente ao ouvir o nosso primeiro-ministro apresentar mais um pacote para resolver o problema da Habitação – digo mais um pois convém recordar aos mais desmemoriados que vamos no quarto pacote, que há cinco anos (não me engano, foi mesmo em 2018) se anunciou pomposamente uma “nova geração de políticas de Habitação”, e que depois se anunciou que até aos 50 anos do 25 de Abril se daria a todos os portugueses uma habitação condigna (agora já se deixou cair essa promessa). |
Há falta de casas no mercado? Há, mas isso não surpreende: há 20 anos construíam-se mais de 120 mil fogos por ano, agora não se constroem senão 20 mil. |
Há falta de casas no mercado do arrendamento? Há, mas quando António Costa (e a geringonça) tomaram o poder o mercado de novos arrendamentos era sensivelmente o dobro do que é hoje. |
Há muitas casas vagas? Há, mas não mais do que já havia há 10 anos (eram 735 mil em 2011 e 723 mil em 2021, de acordo com os Censos). |
Face a esta situação o que aconselharia o bom governo? Que se encontrassem formas de estimular o mercado, devolvendo confiança aos investidores de forma a que fossem construídas mais casas, que mais casas fossem oferecidas para arrendamento e que não fosse preferível manter casas vazias (porventura degradadas), antes investir nelas para rentabilizar esse património. |
Quando necessitamos de dezenas de milhar de novas casas por ano, para fazer baixar o custo da aquisição ou arrendamento e para acorrer ao meio milhão de famílias que vive em alojamento sobrelotados, não se devia imaginar que é com o dinheiro do PRR, que permitirá construir na melhor das hipóteses uns 30 mil fogos e que só está executado a 3%, que se vai resolver o problema estrutural. O problema estrutural só se resolve se houver confiança entre os investidores, e para isso é preciso garantir-lhes estabilidade legislativa e fiscal em vez de os ameaçar com medidas coercivas. |
Quando o Estado é no país o proprietário que mais imóveis tem desocupados e o senhorio que mais rendas tem em atraso não é credível sequer imaginar que possa agora passar a mega-agente imobiliário, substituindo-se aos investidores e aos proprietários. |
Quando esse mesmo Estado, por via dos governos de António Costa, conseguiu, em poucos anos – até em poucos meses – destruir a confiança que estava a regressar, desde 2012 e da “lei Cristas”, ao mercado do arrendamento, rarefazendo uma oferta que estava em crescendo, percebe-se que a única coisa que sabe fazer bem não é construir “sem começar pelo telhado”, é mesmo destruir começando pelas fundações. |
Quando se mudam as regras para os arrendamentos novos, instituindo uma espécie de novo congelamento das rendas, quando se mudam as regras para o alojamento local, colocando uma “espada de Dâmocles” sobre todo o sector a partir de 2030, quando se muda de novo a legislação fiscal, está-se não apenas a afastar novos investidores, está-se a promover o desinvestimento. E está-se naturalmente a estrangular todos esses detestáveis “pequeno-burgueses” que investiram na habitação e no arrendamento para arredondarem as pensões de velhice que não vão ter (o governo diz que as pensões estão garantidas), ou que então apostaram no alojamento local para escaparem ao desemprego e à pobreza, como C. (o governo prefere os subsídios ao empreendorismo). |
O Estado, prometeu-nos António Costa, vai tratar de tudo. Os socialistas têm sempre esse discurso e essa fé. E quando pelo caminho destroem um país acham sempre que a culpa é dos outros – talvez dos pequeno-burgueses. |
Ainda sobre a habitação, o que vale a pena ler |
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Para perceber o mercado da Habitação não há como ouvir Victor Reis, arquitecto e antigo presidente da IHRU (Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana) e foi por isso que ele esteve presente no último Contra-corrente desta semana, Habitação: é sempre possível tornar tudo pior. Ele também já discutiu o tema das políticas de habitação numerosas vezes no Observador, sendo que chamo a atenção especialmente para Nacionalização, estatização e governo-faz-de-conta, As rendas acessíveis são um conto do vigário e sobretudo Arrendamento: estragaram em 33 meses o trabalho de 33 anos. |
Ainda no Observador sugiro mais dois artigos, ambos escritos ainda antes de se conhecer o pacote de medidas. O primeiro, de Helena Garrido, As casas que o Governo nos tirou. Nele chama-se nomeadamente a atenção para a necessidade de “acabar com os incentivos perversos que prevalecem no sector da habitação se queremos que os mecanismos de mercado funcionem e a oferta de casa aumente mais rapidamente. No meio da ponte, querer mercado e não querer, é que não traz ganhos para ninguém.” O segundo, de José Miguel Ferreira, chama-se (Falta de) habitação: factos, mitos e sugestões num país onde trabalhar não chega para ter casa. |
Entre as reacções às medidas anunciadas destaco também duas. A de um outro António Costa, o jornalista, que no Eco escreveu sobre O PREC na habitação. O seu diagnóstico é muito negativo: “Era difícil fazer pior. À medida que o primeiro-ministro apresentava o plano de intervenção pública no setor da habitação (…), mais parecia que estávamos a ouvir a líder designada do Bloco de Esquerda (e a ironia é que nem Mariana Mortágua ficou satisfeita com esta estratégia de confisco público). António Costa não deu resposta a nenhum dos problemas do setor, isto é, a necessidade de haver mais oferta habitacional, pública e privada, e criou uma enorme desconfiança junto dos que poderiam ser contribuintes ativos para resolver a falta de habitação no mercado.” |
Camilo Lourenço, também jornalista de economia, escreveu no Jornal de Negócios sobre Habitação: tapar o sol com a peneira. Um dos aspectos para que chama a atenção é que, “ao estimular a taxa fixa, daqui a dois/três anos os bancos vão ouvir das boas quando os clientes descobrirem que estão a pagar muito acima das taxas variáveis. Nessa altura, o Governo vai obrigar a banca a facilitar o regresso à taxa variável?” |
Será que tudo começou em Salamina? |
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Miguel Morgado é uma figura rara em Portugal, pois sendo um académico (professor no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica) teve intervenção política relevante (trabalhou no gabinete Passos Coelho e foi quatro anos deputado do PSD) e mantém espaços de intervenção no debate público, onde tem dotes de polemista. Ao mesmo tempo continua a publicar obras onde se foge da espuma dos dias. Depois de Soberania – Dos Seus Usos e Abusos na Vida Política (2021) chega-nos agora Guerra, Império e Democracia – A Ascensão da Geopolítica Europeia. |
Nestes dias em que voltámos a dar atenção ao que se passa no Mundo e em que procuramos entender o porquê de uma guerra como a da Ucrânia, este livro não trata do presente mas de como a Europa, e o Ocidente, se foram tornando uma entidade distinta com uma geopolítica única. Contado de trás para a frente, Guerra, Império e Democracia começa na actual globalização, a primeira que não teve o Ocidente, e a Europa em particular, no seu centro, mas sim “aqueles países que estavam há alguns séculos condenados à pobreza mais abjecta”, e acaba a contar-nos a história de uma batalha, a batalha de Salamina, que Miguel Morgado considera ser o momento fundador da geopolítica europeia. O seu argumento é que foi nessa batalha onde os atenienses derrotaram os persas, que eram imensamente mais poderosos militarmente, que a Europa se separou da Ásia e começou a construir a sua identidade própria. É sem dúvida um argumento atrevido mas que merece a pena ser discutido, pelo que também por isso este livro é um bom contributo para, descobrindo os fios que nos unem a um passado longínquo, percebermos melhor os dias que vivemos. |
Três anos, tanto tempo, tempo nenhum |
A Covid abriu um parênteses nas nossas vidas. Olhamos para trás, e a referência é: “isso foi antes da Covid? ou já havia Covid?” E ao olhar para trás não sei bem dizer se o tempo acelerou ou se parou. Há coisas que parecem ter acontecido há imenso tempo, noutro tempo, outras que recordamos como se fossem ainda de ontem. Outras ainda que este corte no tempo apagou. |
Ora a Covid – ou melhor: o nosso confinamento – começou há sensivelmente três anos. No final de Fevereiro de 2020. Mesmo antes de tudo fechar ainda fui aos Estados Unidos, para umas férias a convite de uma boa amiga num rancho no Arizona. Lembrei-me delas (outra vez) com a ajuda do telemóvel e daquela aplicação que nos recorda as fotografias que tirámos no passado. E também me lembrei delas como um tempo ainda diferente, pois não sabíamos aquilo por que íamos passar. |
Deixo-vos aqui algumas imagens desses dias, incluindo uma selfie (eu quase nunca tiro selfies), para recordar os dias que passei a cavalo, eu que nunca tinha montado um cavalo antes. Foram bons dias, antes da Covid. |
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Tenham um bom domingo. |
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José Manuel Fernandes, publisher do do Observador, é jornalista desde 1976 [ver o perfil completo]. |