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Ferro Rodrigues tinha sido um Presidente da Assembleia da República parcial, Augusto Santos Silva acrescenta à parcialidade a ambição política, a dissimulação e, até, ver-se como o “Príncipe” (e o ideólogo) do PS. |
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Presidir à Assembleia da República não corresponde só a uma posição honorífica nem se espera que o titular do cargo limite a sua actividade política a alguns discursos de circunstância. Espera-se mais, sobretudo espera-se equilíbrio e ponderação num lugar onde muitas vezes é necessário fazer de árbitro. Aliás esperar-se-ia ainda mais em tempos foram de maioria absoluta – como os de hoje –, pois nesses tempos o papel moderador do presidente da AR pode ganhar novos contornos se pensarmos como é fácil, em Portugal, abusar dessa posição maioritária. |
Vou ser sincero: não fiquei com boas recordações do anterior presidente da Assembleia da República que, por mais de uma vez e em momentos importantes, não deu mostras da imparcialidade que se espera, e exige, de quem exerce esse cargo. Julguei mesmo que não seria possível ir para pior, até por me recordar do comportamento dos anteriores presidentes, por norma de forma equilibrado e equilibrador. |
Enganei-me: Augusto Santos Silva está a conseguir a proeza de ser ainda um pior presidente da Assembleia e eu talvez não devesse ficar admirado. Afinal de contas tinha obrigação de o conhecer e de me recordar das muitas tropelias que marcaram a sua vida política. |
Mais culto do que o habitual num mundo político onde suspeito serem cada vez mais os que têm horror à simples ideia de lerem um livro, com mais experiência do que quase todos – neste momento só há em Portugal um político com mais dias de experiência governamental do que Augusto Santos Silva, e esse político chama-se António Costa (a 16 de Janeiro do mês passado, contas do Expresso, Costa já acumulava 5756 dias como secretário de Estado, ministro ou primeiro-ministro e Santos Silva tinha-se quedado pelos 5497…) –, o actual presidente da AR é às vezes apresentado como o “Príncipe” do PS. Nunca tive essa opinião, mesmo sabendo que nos governos foi servindo para quase tudo e que serviu sempre lealmente, às vezes mesmo mais do que lealmente. |
Devo dizer que tive, por duas vezes, choques directos com Augusto Santos Silva. Primeiro quando lutei para que os rankings das escolas fossem tornados públicos, algo a que Santos Silva se opôs ferozmente quando era ministro da Educação (felizmente ocupou pouco tempo a pasta e o seu sucessor emendou a mão). Depois quando, na qualidade de ministro dos Assuntos Parlamentares, ele teve o pelouro da comunicação social e procurou aprovar um Estatuto do Jornalista que diminuía a nossa proteção no que respeita ao dever de sigilo das fontes (felizmente o Presidente da República vetou o diploma e obrigou a mudar algumas das regras mais perniciosas). |
Acho também estranho que alguém que teve tantos dias nos mais variados governos não esteja associado a nenhuma reforma relevante. Lembram-se do que fez como ministro da Educação? De alguma marca deixada como ministro da Cultura? Recordam-se de algo importante, para além de muitas polémicas, que associem aos seus anos como ministro dos Assuntos Parlamentares (de uma maioria absoluta de má memória)? E como ministro da Defesa, qual o legado? Já agora foi ainda, não se esqueçam, ministro dos Negócios Estrangeiros… |
O que me lembro são de outras coisas. Lembro-me, por exemplo, de como se indignou com aquilo a que chamou “campanha negra” que tinha por objectivo “uma tentativa de assassinato político e moral de José Sócrates”. Isto foi em 2009. Em 2014, quando o mesmo José Sócrates foi preso, a sua preocupação foi dizer que “nesse processo, o PS não é parte, ponto final”, ao mesmo tempo que criticava o Ministério Público e a imprensa pelo que tinham revelado das suspeitas que recaiam sobre o antigo primeiro-ministro. Só em 2018 – sim, só em 2018 – viu por fim a luz ao considerar que as suspeitas sobre Manual Pinho haviam sido “a gota de água”. De facto foi preciso muita água para finalmente se declarar, vejam lá, “embaraçado” e “traído”. |
Também me lembro da sua truculência, uma agressividade que chegou ao ponto de considerar os professores que se manifestavam contra o Ministério de Maria de Lurdes Rodrigues, em 2008, de não distinguirem “entre Salazar e os democratas” (muito significativas estas declarações considerando os dias que correm e o que ele também já disse sobre algumas das actuais greves). Essa virulência chegou ao ponto de um dia (em 2009) o próprio Ricardo Costa ter escrito que ele lembrava um general israelita às portas de um campo palestiniano: “ataca com tal brio e exagero que só consegue fazer com que se discutam os meios que usou e nunca a origem do conflito ou os males dos outros”. |
Ora é este mesmo Augusto Santos Silva – o que defendeu Sócrates até Sócrates já não ser do PS – a escrever agora que um dos eixos do combate à extrema-direita é a defesa da “integridade moral, não mostrando nenhuma condescendência com as ofensas à lei e os desvios à ética do serviço público”. Mais: aquele que, como ministro dos Assuntos Parlamentares de Sócrates, se distinguiu pela sua agressividade argumentativa, perora nos dias que correm sobre a necessidade de impedir “a degradação dos termos de debate, substituindo os argumentos pelos insultos”. |
E porque é que o faz? Porque agora, como em 2009, parece preocupá-lo mais “a condenação antecipada nos média” dos políticos sob suspeita, tal como parece inquietá-lo mais o “desnudamento sem limites da pessoa de cada ator político”, forma púdica que encontrou neste artigo para repetir o discurso mas rasteiro contra a “lógica de tentarmos descobrir a roupa suja”. |
Porventura mais polido, “noblesse oblige”, o actual presidente da Assembleia continua a ser o mesmo político que convive mal com a liberdade de crítica (e por isso também andou por aí a considerar que as redes sociais não podiam ser “uma espécie de zona livre”) e que, ao mesmo tempo que escreve sobre a defesa intransigente da “representação pluralista de todas as correntes políticas”, tudo faz no Parlamento para marginalizar o Chega, sendo cúmplice do barramento da eleição por este partido de um dos seus vices, como indica a Constituição e era prática estabelecida. |
Aliás a forma como tem polarizado muitas sessões parlamentares, suscitando verdadeiros duelos verbais com o Chega e André Ventura, pouco ou nada têm a ver com princípio democráticos, antes obedecem à mais estreita lógica política: primeiro, à estratégia socialista de promover o Chega para assim tentar afastar para sempre o resto do centro-direita do poder; depois à sua estratégia pessoal de surgir como o campeão da esquerda e do centro-esquerda de forma a ser o candidato presidencial do PS em 2025 pois, como disse, “a república precisa de uma candidatura forte na minha área política”. |
Só lhe falta dizer que é ele quem pode protagonizar essa candidatura, mas não se duvide que está em campanha permanente, o que é uma novidade quando pensamos que nunca um anterior presidente da Assembleia utilizou o lugar como trampolim para outros voos. De facto, como certeiramente escreveu João Miguel Tavares, é mesmo a primeira vez que alguém naquele lugar – o lugar de segunda figura do Estado Português – o usa para “se promover a candidato à Presidência da República”. |
Lamento por isso ter de admitir que pior é sempre possível, mesmo quando julgamos que é impossível. |
“We have freedom, give us wings to protect it” |
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No momento em que todos esperam uma grande ofensiva russa – só não se sabe como e onde –, Volodymyr Zelensky esteve esta semana em Londres, Paris, Bruxelas e ainda Varsóvia. Nesse périplo não veio apenas pedir as armas de que a Ucrânia necessita, veio recordar que a guerra que a Ucrânia está a travar é uma guerra pela liberdade – a liberdade dos ucranianos e também a liberdade dos europeus. Fez dois discursos notáveis, porventura o mais emotivo e tocante em Londres, cheio de frases que nos ficam na memória, talvez o mais político em Bruxelas, perante os deputados do Parlamento Europeu. Vale a pena recordar o que disse, ficando aqui a versão integral do discurso de Londres e aqui um bom resumo do de Bruxelas. (No Contra-corrente de quinta-feira estivemos a falar da importância do que ele nos veio dizer a todos.) |
No entretanto, e enquanto esperamos para perceber onde é que a Rússia vai atacar, é importante recordar as condições inumanas a que o Kremlin sujeita as suas tropas, tratando os seus soldados como munições descartáveis. Para isso deixo-vos três trabalhos tão notáveis como arrepiantes: |
- Russia Throws Soldiers Into Ukraine Firing Line to Gain Inches, uma reportagem do Wall Street Journal, talvez a melhor que li sobre os combates que têm tido por palco Bakhmut. É longa, dura, mas vale muito a pena lê-la.
- Russia Pays a Bloody Price for Small Gains on Eastern Front, um trabalho do New York Times sobre o mesmo tema, também muito bem feito mas sem o detalhe da reportagem do WSJ.
- Collecting the dead in Ukraine, um texto de Julius Strauss na Spectator. Já falei nesta newsletter deste jornalista, um veterano de muitas guerras, a propósito de um podcast que recomendei. Agora podemos ler na velhas revista britânica esse mesmo relato (Strauss acompanhou um grupo de voluntários ucranianos que recolhem os corpos dos mortos, incluindo russos, que ficam no campo de batalha) e ficar a saber que um dos jovens com quem o repórter esteve morreu entretanto: “A week later, the Black Tulip took time off work, a rare event. They gathered for a funeral in nearby Slovyansk. As a van arrived and a coffin was carried out and prepared for burial, Lyudmila Sosnenko cried out in anguish: ‘Why? My son…’ In the coffin was Denys, the 21-year-old Black Tulip with the Donbas baseball cap. A few days after we had parted he had been killed when his van hit an anti-tank mine.”
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Deixei para o fim uma sugestão diferente, um texto de Bernard-Henri Lévy publicado na revista judaica The Tablet: Who’s Afraid of Vladimir Putin? Como sempre com este autor é um texto forte, sentido, de que vos deixo aqui uma passagem:
The dignity belongs to the Ukrainians, who wish to be European only insomuch as Europe is the country of those who do not wish to live as vassals, trembling, their necks out in offering to the assassins.
The honor is Zelensky’s, the European who defends, with great panache, the achievements of a democratic civilization that is, on three-quarters of the planet, just a painful hope and a dream.
The least we can ask, in France, of the animals sick with fear is to have just a fraction of the courage of Ukraine, and of her president. |
Não é só em França que esta interrogação nos desafia – é em toda a Europa e é naturalmente também em Portugal. |
Mulheres repórteres de guerra |
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Por uma feliz coincidência chegaram-me às mãos esta semana, no mesmo dia, dois livros com um importante traço comum: ambos envolvem mulheres jornalistas repórteres de guerra. Um não podia ter mais actualidade: trata-se de Ucrânia Insubmissa, de Cândida Pinto e do repórter de imagem David Araújo e relata o que testemunharam nas primeiras semanas de uma guerra que os apanhou aos dois em Kiev, nesse fatídico 24 de Fevereiro de 2022. O outro é a história de seis mulheres que, na linha da frente na II Guerra Mundial, fizeram a diferença: As Enviadas Especiais, de Judith Makrell. |
Tive a felicidade de, há muito, muito tempo (em 1998 mais exactamente) me cruzar com Cândida Pinto num cenário de guerra, trabalhava ela ainda na SIC (está agora na RTP) e eu no Público. Foi numa Bissau quase deserta onde os bombardeamentos tinham quase hora certa e quando uma guerra civil generalizada parecia certa. Testemunhei a forma séria, ao mesmo tempo cuidadosa e corajosa, como se movimentava num terreno inevitavelmente perigoso para poder recolher e contar as melhores histórias, e por isso foi com gosto que peguei neste seu livro que fixa em letra de forma o que viveu e testemunhou na Ucrânia, nos primeiros meses da guerra, “rente ao chão, onde estão sempre os civis em qualquer conflito”. |
Já o outro livro permitiu-me recordar a vida de duas figuras que já conhecia – Martha Gellhorn, que depois de fazer o seu tirocínio ao lado de Hemingway na guerra de Espanha conseguiu, entre outras façanhas, desembarcar nas praias da Normandia disfarçada de enfermeira, e Clare Hollingworth, que relatou em primeira mão a concentração de tropas alemãs na fronteira com a Polónia nas vésperas da invasão, em 1939 –, mas neste livro acompanha-se também o que de extraordinário fizeram Lee Miller, Sigrid Schultz, Virginia Cowles e Helen Kirkpatrick. Seguindo as suas pisadas, e recordando o que escreveram, somos levados a reviver os horrores de um guerra que julgávamos ter sido capaz de acabar com todas as grandes guerras na Europa – e escrevo “julgávamos” porque já não temos a certeza que vivamos essa segurança. Os tempos voltaram a ser muito perigosos e quem disso duvidar que leia as histórias contadas por Cândida Pinto e fotografadas por David Araújo, pois está lá de novo todo o horror de uma mortandade que, para muitos, é a segunda nas suas vidas. São os que “cruzam o arco das guerras”: a da sua infância, na década de 1940, e agora a da sua velhice, nesta terceira década do século XXI. |
O Padrão, numa manhã de há quatro anos |
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O meu telemóvel prepara-me de vez em quando pequenos vídeos com imagens que selecciona do meu arquivo pessoal, tudo sem que eu lhe peça nada. Por regra esses vídeos limitam-se a juntar fotografias tiradas num local, ou a alguém, ou então numa data certa. Esta semana o meu “espertinho” fez um desses vídeos com fotografias que tirei há exactamente quatro anos, ao nascer do sol, ao Padrão dos Descobrimentos. Não as tirei por nenhuma razão especial, além de achar a luz mágica e o dia estar de uma maravilhosa transparência. Estava a olhar para elas e decidi escolhê-las para a partilha desta semana pois acabam por ser também bem actuais, já que o Padrão tem polarizado discussões e até é imagem de capa do mais recente (e bem interessante) livro do historiador João Pedro Marques, Descobrimentos e Outras Ideias Politicamente Incorrectas. |
Para além disso o Padrão até lembra um catedral renascentista quando o comparamos com as duas esculturas de refinado mau gosto que esta semana foram inauguradas também à beira Tejo, algumas centenas de metros a montante, dizem que para honrar os “heróis da pandemia”. Só me ocorre um lamento: pobres heróis e pobres de nós, que temos de ali continuar a passar. |
Tenham um bom domingo. |
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José Manuel Fernandes, publisher do do Observador, é jornalista desde 1976 [ver o perfil completo]. |