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A semana passada tinham-nos chegado boas notícias da guerra, com a ofensiva ucraniana em Kharkiv, esta semana Vladimir Putin respondeu com uma mobilização parcial e a ameaça de usar armas nucleares. Bluff? É preciso ter cuidado: Putin deixou-se encurralar e um animal encurralado é sempre mais perigoso. Quanto às recomendações de leitura, esta semana trago-vos uma sugestão muito pessoal e já perceberão porquê. |
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Quando Putin era criança perseguiu um rato até o encurralar num canto do patamar do apartamento em que vivia em Leninegrado, hoje São Petersburgo. Nessa altura o rato atirou-se ao próprio Putin, dentes arreganhados. |
Esta é uma história que o líder russo gosta de contar quando dá entrevistas, como quinta-feira recordou Paul Wood, um antigo correspondente da BBC, num artigo na Spectator. E Putin conta-a para a seguir acrescentar: “Foi nessa altura, nesse patamar, que recebi uma rápida mas duradoura lição sobre o significado da palavra ‘encurralado’”. |
Não sabemos há quantos anos o senhor do Kremlin aprendeu esta lição, mas depois de o ouvirmos esta semana temos obrigação de também nós percebermos o alcance da palavra “encurralado”, temos obrigação de perceber que um animal encurralado é mais imprevisível e mais perigoso. Por vezes, muito mais perigoso. |
Depois do discurso de Putin – e que vale a pena analisar ponto por ponto, nas entrelinhas, como fez o Observador –, multiplicaram-se as declarações de líderes ocidentais e análises nos órgãos de informação que convergiam por regra num mesmo ponto: o líder russo está desesperado e está em perda porque a forma como conduziu a guerra na Ucrânia colocou-o num beco sem saída. Estou de acordo, até estou de acordo com quem considera que as peripécias que rodearam a hora a que devia ter sido transmitido o discurso são sinais de que há uma crise no Kremlin, que haverá mesmo algum caos. Mesmo assim não fico tranquilo. |
Mais de sete meses passados sobre o início da guerra é hoje evidente que a aventura militar se baseou num engano – a convicção de que os ucranianos se renderiam facilmente, porventura até aplaudiriam os invasores – e se concretizou de forma desastrada – mau planeamento, pior equipamento, recursos militares insuficientes. Anos a fio, Putin cultivou o sonho de reverter a decadência da Rússia e as consequências do colapso da União Soviética, anos a fio Putin alimentou a ficção de que ucranianos e russos eram um só povo que só estavam separados por causa da influência maligna do Ocidente, anos a fio Putin alimentou a imagem de um líder forte que nunca permitiria que a sua Rússia deixasse de ser uma grande potência militar. Mais: Putin, e ideólogos de Putin como Sergei Karaganov (ver as entrevistas que deu a Bruno Maçães e ao New York Times), têm defendido que o Ocidente vive uma situação de pré-colapso moral e que é por isso que tem aumentado o que consideram ser a beligerância anti-Rússia. Pela mesma lógica de raciocínio, também nunca os poderes corrompidos desse mesmo Ocidente seriam capazes de fazer frente a uma Rússia determinada e vitoriosa. |
Como sabemos nada disto correu como o previsto – não correu logo em Março na batalha de Kiev, não correu depois com a feroz resistência que travou as tropas russas no Donbass, não correu agora com a rápida reconquista do oblast de Kharkiv, não correu também na frente ocidental, onde a NATO reencontrou a sua vocação e unidade. Só que, como de resto notava o mesmo Karaganov logo em Abril, esta é uma guerra que a Rússia não pode perder, pois na sua perspectiva o que está em causa não são apenas as elites dirigentes e o regime, é a própria Rússia. |
Quando li essas entrevistas pela primeira vez pereceu-me que Karaganov, um antigo conselheiro de Yeltsin e de Putin, exagerava ao falar da sobrevivência da Rússia – no fundo, estaria a confundi-la com a sobrevivência da clique dirigente de que ele também faz parte. Hoje estou menos seguro, e menos seguro ainda fiquei depois de ouvir Vladimir Putin. |
As derrotas militares russas nos campos da Ucrânia não são apenas reveses militares ultrapassáveis (hipoteticamente ultrapassáveis) com a mobilização parcial agora decretada – a derrotas militares russas tiveram um efeito muito mais devastador para o qual já não há recuo pois expuseram a extrema debilidade do poder russo, o grau de ineficiência do Estado e das Forças Armadas, o atraso tecnológico e até uma brutalidade sem nome, intolerável mesmo para países habituados à violência. Essas derrotas militares degradaram, e degradaram muito, o poder do Kremlin: degradaram a sua relação com países que se tinham por aliados ou amigos, da China à Índia, do Irão ao Cazaquistão, que perceberam que o gigante tem pés de barro e que nem como fornecedor de material militar é fiável (a forma como Putin foi tratado, menorizado mesmo, na cimeira da Organização para Cooperação de Xangai que decorreu em Samarcanda é muito significativa); degradaram também a sua imagem de “homem forte” numa Rússia que continua a ser um império, e um império de tipo colonial, um império plurinacional – diz-se existirem na Federação Russa 190 grupos étnicos diferentes – onde as periferias continuam a alimentar a voracidade de Moscovo. O impensável até há pouco tempo – o renascimento de aspirações separatistas – pode acontecer se essas periferias sentirem que o centro está fraco. |
Tudo isto porque, como explicou à Spectator Yuri Shvets, um antigo oficial do KGB, “é como se todo o regime, incluindo as Forças Amadas, incluindo os serviços secretos, não fossem mais do que uma gigantesca aldeia de Potemkin”. Para ele, o erro de Putin ao iniciar esta guerra foi que assim arruinou a ficção dessa aldeia: “As pessoas ainda estão espantadas por perceberem que tudo o que acreditavam na Rússia era falso, era uma realidade virtual, e que o mundo real é diferente, é um desastre”. |
Que consequências terá esta evolução? Será ainda possível a Putin reunir o exército de 300 mil homens que agora convocou (há quem fale em mais, fale num milhão), ou a degradação do moral entre os combatentes já chegou a um ponto que eles só pegam em armas porque a Rússia de Putin ressuscitou um crime dos tempos de Estaline, o crime de “rendição voluntária”? Conseguirá o regime suster a erosão do seu poder e da sua imagem e cerrar fileiras, ou o declínio é agora irreversível? |
Não creio que tenhamos respostas rapidamente, até porque o espectáculo da votação nos referendos, com as urnas a serem levadas a casa da pessoas por equipas escoltadas por soldados, não indicia que venha daí o incentivo de que Moscovo necessitaria para reverter o curso das operações no terreno. |
Pelo que volto aonde comecei: tenham medo de um animal encurralado. O rato da infância de Putin virou-se contra ele de dentes arreganhados, e hoje sabemos que os dentes de Putin são o arsenal nuclear da Rússia. |
Um povo em armas, “cidadãos soldados” |
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Li esta semana uma das melhores reportagens a que até agora tive acesso sobre a forma como os ucranianos se organizaram quase espontaneamente para resistirem aos russos e assim vencerem a sua primeira grande batalha, a batalha de Kiev. Trata-se de um longo texto do Wall Street Jounal, The Ragtag Army That Won the Battle of Kyiv and Saved Ukraine. Eis uma passagem que resume aquilo que o texto conta, com detalhes pequena batalha a pequena batalha: |
“They formed armed groups with whatever weapons they could lay their hands on. They fed and equipped fighters and billeted them in their homes. They shimmied up trees in search of cellphone reception to report on enemy movements. The result looked like something little seen in modern warfare—a domestic insurgency fused onto a traditional army. ‘We are like a hive of bees’, said Yaroslav Honchar, head of an attack-drone crew who make their own armed craft. ‘One bee is nothing, but a thousand can defeat a big force.’ To a degree not fully appreciated, it was these citizen soldiers, teaming up with active-duty personnel, who turned the tide in the most consequential battle in Europe since World War II and preserved Ukraine’s status as a sovereign nation.” |
Continuando centrado neste conflito e sobre o discurso de Vladimir Putin e as suas consequências, eis alguns textos que me pareceram especialmente interessantes: |
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Para além de todas estas referências há ainda o podcast do Contra-Corrente onde eu e a Helena Matos discutimos o significado e alcançe desse discurso de Putin: Referendos e mobilização: vem aí escalada nuclear? |
Andy Warhol e um livro da minha amiga Alice |
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Quando no verão de 2016 estive nos Estados Unidos a tentar perceber se um tal Donald Trump tinha a mínima hipótese de se tornar Presidente dos Estados Unidos, depois de alguns dias em Washington decidi viajar até às antigas regiões industriais da Pensilvânia, lugares onde me diziam que o apoio ao homem do cabelo cor-de-laranja estava a crescer. Depois de passar algum tempo numa dessas áreas economicamente deprimidas – base da minha reportagem algo premonitória A cidade onde os democratas vão votar Trump –, dei um salto até Pittsburgh onde, entre duas entrevistas, arranjei tempo para visitar o museu dedicado a Andy Warhol. Durante a visita reparei na fotografia de uma das musas do artista, Edie Sedgwick, e interroguei-me sobre se não seria ela a irmã desaparecida de Alice, a minha amiga americana de Colares. Era, mas o destino de Edie e da sua relação com Warhol nunca foi tema nas muitas conversas que eu e ela mantivemos ao longo dos anos. Era como se Edie não existisse, e na verdade, descobri agora ao ler As It Turns Out: Thinking About Edie and Andy, era mesmo quase como se nunca tivesse existido, ao ponto de só muito recentemente, ao folhear uma revista, Alice ter ficado a saber em que dia a sua irmã mais nova fazia anos. |
Admito que esta conversa pareça um pouco bizarra para a maioria dos que me estão a ler, mas ela justifica-se precisamente porque estou a acabar esse As It Turns Out, o livro que Alice Sedgwick Wohl, que tem 91 anos, acaba de publicar e que é uma mistura de livro de memórias e de reflexão sobre o porquê do fascínio quase instantâneo que essa sua irmã suscitou na Nova Iorque dos anos 1960, no mundo da pop art que tinha Warhol como centro. E devo dizer-vos que vale a pena, quer pelo que nos revela sobre a vida da aristocracia da Nova Inglaterra e de uma família, a Sedgwick, que se muda para um rancho em Santa Bárbara, na Califórnia, quer sobre o que depois nos conta sobre uma certa Nova Iorque. Para minha alegria o livro foi também muito bem recebido pela crítica americana, tendo tido recensões elogiosas no New York Times, na New Yorker, no Los Angeles Times, no Washington Post e na Avenue, para só citar os títulos mais importantes. |
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A despedida do Verão |
Pouco tempo depois de ter conhecido a Alice e o seu marido, o historiador de arte Helmut Wohl, eles convidaram-nos para um piquenique na praia. Estranhámos: na nossa cultura urbana piqueniques na praia era algo que associávamos a garrafões de vinho e frangos assados, mas admitimos que com eles fosse algo diferente. E era – tanto era que os piquenique ao pôr-do-sol se tornaram uma rotina dos nossos verões. Tudo feito naturalmente como deve ser, com mesa, cadeiras, toalhas e qualidade no que se come e bebe. O hábito não é coisa portuguesa, tanto não é que quando chegamos está quase toda a gente de saída do areal e ficamos quase com a praia por nossa conta, e não sei se será coisa americana, mas foi seguramente um daqueles pequenos-grandes prazeres que aprendemos com estes nossos amigos americanos. Espero que a fotografia vos dê uma imagem de como pode ser simultaneamente simples e maravilhoso — sobretudo agora que o Verão acabou. |
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José Manuel Fernandes, publisher do do Observador, é jornalista desde 1976 [ver o perfil completo]. |