Discurso de Vladimir Putin ao país

Presidente russo fez a primeira declaração ao país desde o início da guerra, a 24 de fevereiro

Dirijo-me a vocês, a todos os cidadãos do nosso país. De várias gerações, de todas nacionalidades. O povo do nosso grande país está unido pela grande Rússia histórica aos soldados, oficias e voluntários que lutam na linha da frente. Aos irmãos e irmãs da repúblicas de Donetsk, Lugansk, Zaporíjia, Kherson e doutros territórios libertados pela Rússia.”

Com este início, o Presidente russo garante que a opinião pública do país está “unida” e mobilizada em torno da guerra da Ucrânia, desvalorizando as críticas que têm sido feitas nos últimos dias por alguns setores da sociedade (tais como os deputados municipais de Moscovo e São Petersburgo). Vladimir Putin recorda (e fá-lo-á novamente) a “Rússia histórica”, numa alusão à região da Nova Rússia (que inclui o Donbass e o sul da Ucrânia). Usa também o termo “irmãos” para descrever os habitantes das autoproclamadas repúblicas separatistas, passando uma imagem de proximidade entre os cidadãos da Federação Russa e os daqueles territórios.

São precisos passos imediatos para defender a soberania e a integridade territorial da Rússia. Nós temos o direito a determinar, a definir a nossa vontade, os nossos desejos e enfrentar o Ocidente que está a tentar impor os seus princípios.”

Vladimir Putin volta a criticar, com esta passagem, o mundo unipolar controlado pelo Ocidente, que quer “impor os princípios” à Rússia. Ora, o Presidente russo não aceita esta visão — e está pronto para “enfrentar” e destruir a ordem internacional que vigora atualmente. A passagem recupera, de forma subliminar, o argumento que o Presidente russo apresentou em fevereiro para justificar a intervenção militar: a ameaça que a NATO representa para a “integridade territorial” da Federação Russa e o “direito” do país a defender-se dessa ameaça.

O objetivo do Ocidente é enfraquecer, dividir e fragmentar a Rússia. Já dizem diretamente que, em 1991, conseguiram destruir a União Soviética e chegou agora a hora da Rússia, que se deve dividir em várias regiões. Esses planos há muito que estão na cabeça deles.

Tendo novamente na mira o Ocidente, Vladimir Putin evoca o fim da União Soviética e diz, sem apresentar nenhum dado concreto, que agora é a vez de a Rússia ser “destruída”. Num momento em que surgem relatos de quebras no apoio da população russa ao esforço de guerra, esta mensagem terá uma componente mais interna — o chefe de Estado apresenta um cenário extremo de possível desagregação do país, de forma a que a população encare o conflito na Ucrânia como fundamental para a continuidade da Federação Russa.

Eles [o Ocidente] apoiam bandos de terroristas do Cáucaso e alargaram a NATO para próximo das nossas fronteiras. Durante anos, reforçaram o seu armamento, principalmente na Ucrânia, transformando os ucranianos em carne para canhão.”

No seu discurso, o chefe de Estado russo menciona os “terroristas do Cáucaso”. Esta passagem estará relacionada com o apoio do Ocidente ao regime da Geórgia, país localizado na região do Cáucaso que esteve em guerra com a Rússia em 2008 — e que ainda mantém disputas territoriais com Moscovo, nomeadamente na Ossétia do Sul e na Abecácia. Putin volta a falar da NATO, desta vez de forma direta, para justificar a aproximação das fronteiras da aliança militar do território russo (inclusive, alega, com entrega de armamento a Kiev).

Esta guerra começou em 2014, quando eles deram início deram origem a um genocídio do povo ucraniano que foi dominado por um regime ditatorial.

Vladimir Putin lembra agora que a guerra começou há oito anos, mais concretamente após o Euromaidan — uma série de protestos na Ucrânia que levaram à destituição do ex-Presidente pró-russo, Viktor Ianukovytch. Em 2014, a Rússia anexou uma região do sul da Ucrânia, a Crimeia, mas inverte a narrativa para defender que, desde esse momento, as ações de Kiev para recuperar esse território se traduziram em ataques contra a própria população ucraniana. De resto, o Kremlin sempre acusou os Estados Unidos e a União Europeia de terem apoiado as revoltas populares, mas, desta feita, o chefe de Estado russo vai ainda mais longe e acusa diretamente o Ocidente de impor um “regime ditatorial” na Ucrânia.

Será inevitável novas contraofensivas ou ataques ucranianos contra a Rússia e a Crimeia e, por isso, temos de intervir e continuar com os objetivos estabelecidos. Lugansk está praticamente livre de neonazis. Em Donetsk continua a luta.

Implicitamente, o Presidente russo admite que as contraofensivas da Ucrânia na região leste tiveram sucesso e obrigaram Moscovo a agir. Aliás, ao dizer que o oblast de Lugansk não está completamente ocupado pelas forças russas, reconhece que a cidade de Lysychansk está a ser controlada pelos ucranianos. A conquista daquela localidade por Moscovo levou a que, no início de julho, o Kremlin celebrasse a tomada de toda a região de Lugansk, mas parece que houve um revés e que está apenas “praticamente livre de neonazis” — não totalmente. Mais uma vez, Putin recupera um argumento apresentado no início da ofensiva — o objetivo de “desnazificar” a Ucrânia — sem que tenha conseguido sustentar essa ideia ao longo do último meio ano.

Nós apoiamos aqueles ucranianos que o regime de Kiev transformou em reféns. Dei ordem ao ministro da Defesa para definir o estatuto legal das milícias de Donetsk e Lugansk para terem o mesmo direito dos soldados da Federação da Rússia, nomeadamente em apoios sociais e apoio médico.

Vladimir Putin parece já contar com as tropas pró-Rússia que combatem em Donetsk e Lugansk, equivalendo-as em termos de privilégios às Forças Armadas Russas. Se, por agora, aparenta ser apenas um estímulo e um sinal rumo à integração destes territórios na Federação Russa, não é de admirar que — após os referendos — as tropas daquelas regiões sejam integradas no exército russo, aumentando o contingente de forma significativa.

Nas conversações em Istambul, Kiev gostou das nossas propostas que visavam proteger os interesses da Rússia, mas isso não era do agrado do Ocidente. E, por isso, o Ocidente ordenou à Ucrânia para não aceitar a proposta de paz. Os ucranianos abriram as portas a novos bandos de mercenários e a militares ucranianos liderados e comandados por militares da NATO.

Em jeito de confidência, o Presidente russo revela que, durante as conversações para alcançar a paz em Istambul que ocorreram no final de março, a Ucrânia não se terá oposto às exigências da Rússia. No entanto, contrariando a versão de Kiev, Vladimir Putin afirma que foi o Ocidente que não aceitou um cessar-fogo e, num ato de ingerência direta na política interna do país liderado por Volodymyr Zelensky, enviou “mercenários” e para o território ucraniano. Além da alegada ingerência política, Putin defende que os militares que combatem no terreno, na Ucrânia, são “comandados” pela hierarquia da aliança atlântica. O ponto é: a Ucrânia não tem uma liderança política nem militar livres.

A política de terror e violência tem dimensões cada vez maiores e bárbaras. Sabemos que aqueles que vivem nos territórios libertados dos neonazis são habitantes da histórica Nova Rússia (Zaporíjia, Donetsk, Lugansk e Kherson). Eles veem o que os neonazis fazem nas regiões ocupadas. Os herdeiros dos opressores nazis matam, insultam as pessoas nos territórios. Atacam hospitais e escolas, organizam ataques terroristas contra cidadãos pacíficos. Não podemos, não temos o direito moral de abandonar as pessoas e entregá-las aos carrascos. Não podemos deixar de ouvir o pedido sincero deles. Os parlamentos e as administrações das regiões decidiram realizar o referendo e pediram-me para apoiar o referendo. Faremos tudo para garantir a segurança nos referendos. Para que as populações possam manifestar a sua vontade. Nós apoiamos.

Anunciando o seu apoio à realização dos referendos em quatro regiões, Vladimir Putin explica os dois motivos que o levaram a tomar esta decisão: a primeira prende-se com o facto de o Presidente russo encarar aquelas localidades como parte da Nova Rússia, logo, integrantes da “Rússia histórica” — como havia dito no início do discurso — e da atual Federação Russa; o segundo motivo relaciona-se com a alegada “política de terror” levada a cabo pelos “neonazis ucranianos”. Nesse ponto, Putin procura apresentar-se como o rosto da libertação, o líder político que vai garantir a liberdade e não vai “abandonar as pessoas” dos territórios ocupados pela Rússia, deixando-as à mercê de “carrascos”.

Hoje, as nossas Forças Armadas, estão numa linha de cinco mil quilómetros e enfrentam o armamento do Ocidente. E decidimos tomar medidas de acordo com a realidade, nomeadamente para defender a soberania da Rússia e garantir a segurança do nosso povo. Considero necessário apoiar a proposta do ministério da Defesa da mobilização parcial. Repito: mobilização parcial de cidadãos que estão na reserva e que já fizeram o serviço militar ou têm capacidades importantes neste momento — e irão ter mais treino para participar nas operações militares. O decreto da mobilização parcial já está assinado. Hoje mesmo começa a mobilização.

Mais uma vez, Vladimir Putin admite que a guerra na Ucrânia não está numa fase favorável, justificando-o com a extensão das frentes de guerra e também com o apoio das armas do Ocidente. Sendo assim, anuncia a mobilização parcial. No entanto, ciente da impopularidade da medida, o Presidente russo faz questão de repetir que a mobilização é apenas “parcial”, havendo um contexto específico para que tal aconteça, neste caso a ameaça que paira sobre a soberania do Estado russo.

Prevê-se também medidas fundamentais para o complexo militar-industrial russo, de maneira a aumentar o fabrico de armas. Os problemas que possam aparecer na realização deste programa deverão ser resolvidos pelo governo.

Vários analistas internacionais têm apontado para as debilidades da Rússia no que diz respeito ao fabrico e à compra de material de guerra por causa das sanções impostas nesse domínio pelo Ocidente. Por exemplo, soube-se recentemente que o Kremlin comprou mísseis de artilharia à Coreia do Norte e que a China não vai vender armamento a Moscovo. Ora, Vladimir Putin assume que a Rússia se depara com uma escassez do material bélico que consegue alocar ao conflito na Ucrânia, pretendendo aumentar a produção do complexo militar-industrial russo.

O Ocidente não pára com ameaças contra o nosso povo, há políticos e responsáveis do Ocidente que falam no fornecimento de mísseis de longo alcance à Ucrânia e à Crimeia. Falam mesmo em ataques a própria Rússia — há regiões na fronteira russa que estão a ser bombardeadas e utiliza-se tecnologia da NATO para fazer espionagem em toda a Rússia.”

Como já tinha feito anteriormente, Vladimir Putin volta a diabolizar o Ocidente, que o Presidente russo alega que pode pôr em risco a continuidade do Estado russo. O objetivo deverá ser tentar manter o apoio da população russa, principalmente após o anúncio da mobilização parcial, fazendo-a acreditar que uma guerra (a referência explícita e direta ao termo que define o conflito da Ucrânia continua longe das intervenções públicas) está iminente se não se tomarem medidas com a máxima urgência.

Londres e e outras capitais dizem diretamente que os combates devem passar para o território da Rússia e que as decisões deverão ser tomadas no campo de batalha. Fazem também chantagem nuclear, há declarações de dirigentes da NATO que admitem o emprego de armas de destruição massiva contra a Rússia.”

Com esta passagem, o Presidente da Rússia define o Reino Unido como um dos principais inimigos, algo que não é de estranhar, dado o apoio do governo britânico à Ucrânia. Sem nunca mencionar quaisquer declarações em específico, Vladimir Putin acusa alguns dirigentes de fazerem ameaças nucleares à Rússia. E vai mais longe no argumentário sobre a ameaça que paira sobre o integridade territorial do seu país: quando diz que “as decisões deverão ser tomadas no campo de batalha”, Putin sublinha a ideia de que o desenrolar do conflito é imprevisível e que, do lado ucraniano, a qualquer momento podem surgir ataques diretos contra o outro lado da fronteira (e, consequentemente, contra a população russa).

Quero lembrar que a Rússia também tem meios de ataque e mais modernos que a NATO. Se a integridade territorial e a defesa da Rússia estiverem em perigo, utilizaremos todos os meios ao nosso alcance para resolver os problemas. Os russos podem ficar descansados: a nossa defesa e segurança serão garantidas. Garantiremos a integridade territorial da nossa terra-mãe, a nossa independência e a nossa liberdade, repito, com todos os meios de que dispomos. Isto não é bluff. Os líderes do Ocidente devem saber que o mal pode virar-se contra eles.

No final do discurso, Vladimir Putin eleva o tom ao Ocidente e promete responder com “todos os meios” de que a Rússia dispõe se a integridade territorial e a defesa da Rússia estiverem em perigo. Mas não explica, em termos concretos, em que circunstâncias é que esse passo — aqui, entende-se uma referência ao armamento nuclear — pode ser dado. O Presidente da Rússia enaltece também o poderio do armamento russo, tentando acalmar a população, e avisa os líderes ocidentais de que o “mal se pode virar contra eles”, garantindo que estas declarações não são “bluff”.