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Como é que, não sendo nem liberal nem republicano, Salazar chegou ao poder? |
Salazar gostava de chamar a atenção para o facto de ser filho de uma família modesta da província. Não era isso, porém, que o distinguia, mas outra coisa: Salazar foi o primeiro chefe de governo desde 1834 que não era liberal ou republicano. Era um ex-seminarista que, embora não ordenado, vivia como um eclesiástico e militava no Centro Católico, o partido da Igreja. Na sua terra, por volta de 1909, ainda o tratavam por “Sr. Padre Salazar”. |
Ora, Portugal, antes de Salazar, não parecia um país preparado para ter um chefe de governo assim. As instituições tradicionais, da nobreza à igreja passando pela monarquia, tinham sido liquidadas ou reduzidas. As “maiores forças políticas” organizadas em Portugal eram de esquerda, como o próprio Salazar notou num dos seus discursos. |
Como é que, não sendo nem liberal nem republicano, Salazar chegou ao poder? Foi um processo longo, e em grande medida dependente de outros personagens e de alguma contingência. A primeira razão esteve na Ditadura Militar estabelecida em 1926, ou mais precisamente no facto que possibilitou a Ditadura Militar: o colapso político das esquerdas – divididas pelo radicalismo jacobino, desacreditadas pelo descontrole financeiro e confundidas pelo advento do comunismo soviético. Sem isso, Salazar nunca teria sido ministro das Finanças em 1928. |
A segunda razão esteve no modo como os generais republicanos e maçons que dirigiram a Ditadura Militar, como o presidente Carmona, dependeram, para sobreviver à ofensiva do “reviralho”, da combatividade de jovens oficiais “nacionalistas” e da colaboração do clero. Salazar estava nas boas graças desses jovens oficiais, vários deles seus alunos na Universidade de Coimbra, e era um homem da Igreja Católica, chefiada em Portugal por um seu amigo, o cardeal Cerejeira. Sem os jovens militares nacionalistas e a Igreja Católica, Salazar não teria durado no ministério das Finanças. |
Mas só com eles, também não. Muitos liberais e republicanos encostaram-se à ditadura, e na década de 1930 iriam aderir à União Nacional. A esses, logo em 1928, o novo ministro das Finanças fez questão de tornar claro que não vinha com a missão de promover uma reconquista católica nem a restauração da monarquia. Pretendia, ao contrário, “baixar a febre política”, deixar os portugueses “viver habitualmente”. Não por acaso, o seu porta-voz oficioso na imprensa foi, durante anos, o escritor Augusto de Castro, um liberal. Foi essa a terceira razão do seu poder. Sem o compromisso de que, com ele, o governo nunca tomaria opções que compelissem todo um sector dos que apoiavam a ditadura a passar à oposição, nunca Salazar teria chegado a chefe do governo em 1932. |
Há ainda outra razão, tão importante como essas. A última impressão que Salazar deixou, a do velho de 1968, faz esquecer a primeira impressão, que explica em grande medida o seu sucesso: a do jovem de 1928, o professor universitário de 39 anos, disciplinado, trabalhador e realista. Não era só ele que era novo, mas os seus colaboradores: o seu auditor jurídico no ministério das Finanças, Marcello Caetano, tinha 23 anos. |
Salazar não se parecia de facto com ninguém na classe política que o país tivera até então. Insistiu aliás em proclamar essa diferença, como no discurso de 9 de Junho de 1928, aos oficiais da guarnição de Lisboa: “represento uma política de verdade e de sinceridade, contraposta a uma política de mentira e de segredo”. |
Ninguém confiara nas finanças públicas no tempo dos governos do PRP. Por isso, muitos entenderam a fraude monetária de Alves dos Reis, descoberta em 1925, não como uma golpada pessoal, mas como parte dos enganos e mistérios financeiros do poder republicano. Salazar propôs-se, não apenas equilibrar, mas tornar claras as contas do Estado. Muito magro, com uma voz ciciada, o ministro das Finanças não era uma figura imponente, mas fez embasbacar toda a gente com o orçamento sem défice e a moeda estável. Os portugueses votaram com o dinheiro: desde 1910, que estavam a enviar dinheiro para o exterior; na década de 1930, voltaram a pô-lo no país, que tinha novamente, a partir de 1931, uma moeda estável ligada à libra. |
Salazar insistiu em apelar a “todos os homens, independentemente da sua origem e categoria, do seu credo religioso, de suas preferências de regime, de suas antigas filiações partidárias, para um trabalho de conjunto a bem da Nação”. Ezequiel de Campos, deputado republicano e colaborador da Seara Nova, foi um dos que se juntou a Salazar. Um dia, confessou ao seu amigo João Sarmento Pimentel, exilado, que sacrificara a sua “ideia de liberdade” para realizar os seus projectos de desenvolvimento. |
Para dar cobertura a essa colaboração, o regime dispensou outras profissões de fé que não o “repúdio do comunismo” e apropriou-se eficazmente da cultura do patriotismo moderno desenvolvida por liberais e republicanos no século XIX. Utilizou a prioridade que todos atribuíam à tarefa de inverter a suposta “decadência” do país para pedir que o julgassem pelos resultados, não pelos meios. A cultura política das elites portuguesas, para quem a liberdade se tornara secundária em relação ao desenvolvimento, estava desarmada de argumentos, tanto à direita como à esquerda, perante uma ditadura bem sucedida. Significativamente, os momentos de maior contestação e incerteza do regime coincidiram com dificuldades financeiras, quando pareceu incapaz de proporcionar a prosperidade que prometia (em 1945-1949, por exemplo). |
Na última edição do programa E o Resto é História, e a propósito da recente conquista do Campeonato do Mundo de Futebol pela Argentina, conversei com o João Miguel Tavares sobre o facto de a seleção daquele país não ter jogadores negros. Ouça aqui o podcast. |
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Rui Ramos é historiador, professor universitário, co-autor do podcast E o Resto é História [ver o perfil completo]. |
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