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O grande equilíbrio dos pequenos poderes |
Até agora, ao longo das últimas cinco newsletters, examinámos duas questões: a duração do Estado Novo e o seu sentido político. Vimos como Salazar conseguiu, nos dois casos, inserir o Estado Novo na sociedade portuguesa e na cultura política do seu tempo. Isso garantiu o sucesso da ditadura. Mas o sucesso de uma ditadura não é necessariamente o sucesso de um ditador. No Verão de 1926, a Ditadura Militar portuguesa passou rapidamente por vários “ditadores”: o general Gomes da Costa derrubou o almirante Mendes Cabeças, e foi por sua vez derrubado pelo general Carmona. |
Houve ditaduras que puseram em causa o seu líder de um modo decisivo: foi o caso do Grande Conselho do Fascismo em Itália, em Julho de 1943, ao votar contra Mussolini e assim precipitar a sua demissão pelo Rei, e foi também o caso do Comité Central do Partido Comunista da União Soviética, em Outubro de 1964, ao impor a resignação de Nikita Khrushchev. Não basta uma ditadura para manter um ditador. |
Salazar nunca foi dispensado de fazer política para se manter no poder, isto é, de congregar aliados e de dividir adversários. A historiografia reduziu a história política do Estado Novo ao confronto entre os salazaristas e as oposições. Mas a luta política dentro do salazarismo é pelo menos tão fundamental para perceber o Estado Novo. |
O Estado Novo, enquanto regime, nunca perdeu o ar de algo inacabado e impreciso, próximo do “começo” – e, portanto, também de um possível fim. Ao longo de décadas, foi mais uma “situação” (como aliás se dizia), um governo, do que propriamente um regime. |
O corporativismo, por exemplo, nunca saiu completamente do papel. Nos anos 1930, foi lançado a partir de uma subsecretaria de Estado, e não de um ministério. A Câmara Corporativa foi sempre consultiva. Tudo, de facto, se resumia à “chefia personalizada” de Salazar, que fundamentalmente conservou a estrutura de poder inicial: uma ditadura militar com um chefe de Governo civil que dirigia directamente a censura à imprensa e a polícia política. |
Ao passar pela direcção da União Nacional na década de 1950, Marcello Caetano descobriu que o Governo era “a única realidade política activa, apoiado no aparelho administrativo e nas polícias” (a administração expandir-se-ia de 30-40 mil funcionários na década de 1930 para cerca de 200 mil na década de 1960). Adriano Moreira viu o Estado Novo como um edifício de presidências, conselhos, assembleias e outros “órgãos que não tinham funcionado nunca com responsabilidade própria, e apenas estavam apontados na Constituição”. |
O que Marcello Caetano e Adriano Moreira diziam era que havia um poder salazarista, mas que esse poder não correspondia a instituições políticas autónomas, que tivessem uma base própria e fossem capazes de funcionar por si próprias. Em 1951, no congresso da União Nacional em Coimbra, Caetano perguntou abertamente: “O Estado Novo será verdadeiramente um regime, ou não será mais do que o conjunto das condições adequadas ao exercício do Poder por um homem de excepcional capacidade governativa?” |
A resposta era óbvia. Salazar soube usar as máximas da Antiguidade clássica: o tirano podia ser suportável se desse ideia de que não dominava por interesse pessoal. O “bom tirano” era, em primeiro lugar, um tirano sobre si próprio. E foi assim que Salazar se apresentou – sacrificado ao bem público, privado de ócios, de prazeres, de liberdade… |
Nunca ninguém contestou a sua honestidade pessoal. O velho grão-mestre da Maçonaria, Sebastião de Magalhães Lima (falecido em Dezembro de 1928), ainda teve tempo de o admirar desse ponto de vista: “Salazar é um homem profundamente honesto”. |
A todos os seus visitantes, Salazar impressionou pelo seu conhecimento dos dossiers e pela sua prudência. Durante a II Guerra Mundial, um agente inglês descreveu-o assim: “é como um homem que, tendo de transportar cargas pesadas através de uma ponte frágil, sabe o que a ponte pode aguentar e carrega o seu carro em conformidade”. |
Ouvia muita gente. Mas não gostava de grandes reuniões, preferindo falar com os seus colaboradores um a um. Aproveitou esse hábito intimista para deixar a todos a impressão de que estava com eles. Quando discursava em público, tinha o cuidado de ser abstracto e alusivo, para permitir várias interpretações. Evitou sempre definir-se claramente em relação às questões que sabia poderem fracturar os salazaristas (por exemplo, a opção entre república e monarquia). |
Por debaixo disto, dedicou-se, com minúcia, à colocação e circulação de pessoas – nas forças armadas, na administração central, na administração local, nos organismos corporativos, e ainda nas empresas onde o Estado tinha representação. Fê-lo com a manha que lhe recomendava em 1948 o seu ministro da Guerra, Fernando Santos Costa, referindo-se a um oficial que iria dirigir interinamente o ministério: “Se V. Exa. tiver ensejo de em qualquer dia lhe dar uma telefonadela só a perguntar se há alguma novidade, será muito bom. Fica lisonjeado e por isso mesmo mais ligado a V. Exa. como convém nestes tempos de desorientação que vão correndo”. |
Essa gestão da pequena elite política e social portuguesa, através de uma distribuição calculada de destaques, empregos, sinecuras, favores, “telefonadelas” e pequenas atenções, foi a sua principal arte e deveria ser talvez o principal objecto de estudo para quem queira perceber o poder salazarista. |
Ao longo do tempo, desenvolveu-se à volta de Salazar uma espécie de vida de corte, cujas intrigas ele próprio alimentava, com o sangue frio que lhe dava a convicção da sua superioridade. Em Setembro de 1966, observou a Franco Nogueira que em Espanha “o Franco está fazendo uma experiência, criando um princípio de caos, para depois ter fundamento para fazer regressar tudo ao começo e à sua autoridade”. E quanto a ele próprio, “não se me dava de um bocado de caos e confusão cá dentro, acho divertido”. |
O poder pessoal, exercido com tanta dureza como malícia, começou a parecer a muitos o motivo egoísta da ditadura. Significativamente, nenhum dos possíveis sucessores do “chefe” – e portanto, potenciais rivais – alguma vez escapou ao saneamento: Manuel Rodrigues, ministro da Justiça, Armindo Monteiro, ministro das Colónias e depois embaixador em Londres, Marcello Caetano, e até Pedro Theotónio Pereira, subsecretário de Estado das Corporações, perceberam que essa reputação era letal. |
Nas suas memórias, outro dos eventuais sucessores, Marcello Caetano, ministro das Colónias e depois ministro da Presidência, fala mesmo do “ciúme” que Salazar não conseguia disfarçar de todos aqueles em quem “adivinhasse actuais ou possíveis competidores”. Por vezes, fez questão de exibir a sua desconfiança. Em 1961, recomendou a Franco Nogueira, ministros dos Negócios Estrangeiros: “Em conselho de ministros, não revele segredos”. E explicou a razão: “Os ministros não merecem confiança”. Era assim mesmo que o regime estava organizado: por exemplo, ninguém a não ser o chefe do governo estava isento de censura prévia. |
Particularmente irritante para os mais lúcidos, era o hábito de Salazar, quando os afastava, de dar a entender que o fazia contra-vontade, por pressão da facção contrária. A ideia das “correntes” do regime servia a Salazar para evadir responsabilidades quando aniquilava politicamente alguém: era tudo feito em nome do “equilíbrio”. O seu jogo, aliás, não foi tanto equilibrar facções, mas manter uma guerra branda entre elas, de modo a fazer de si próprio o fiel da balança do regime. Era um mestre da intriga e da insinuação, jogando com as vaidades, as ganâncias, e as fragilidades dos que o rodeavam. |
A política salazarista teve sempre uma dimensão fundamental de “pequena política”. Em 1965, numa carta a Fernando Santos Costa, seu antigo rival na corte salazarista, Marcello Caetano concluiu: “o Dr. Salazar não queria instaurar um regime, mas sustentar um equívoco que lhe permitisse governar, dividindo”. |
A verdade é que nem sempre Salazar se terá sentido seguro na sua teia de personalidades e grupos contraditórios. Marcello Caetano, que também tinha as suas horas de malícia, não resistiu nas suas memórias, em 1977, a descrever um incidente que lhe teria dado a medida de quanto Salazar o temia. Na noite do dia 31 de Maio de 1958, Marcello visitou Salazar inesperadamente, anunciando que vinha da Presidência da República. Constava que o Presidente, o general Craveiro Lopes, se deixara embevecer por Marcello, e que essa teria sido uma das razões por que Salazar evitara a sua reeleição em 1958. Mas nessa noite de 31 de Maio, Craveiro Lopes ainda detinha legalmente os poderes da Presidência. |
Como Marcello Caetano conta, ao entrar no gabinete do Presidente do Conselho, viu, durante “um instante”, a cara de Salazar “transtornar-se numa expressão de ansiedade, para não dizer de aflição”: “ia jurar que pelo seu espírito passou, num relâmpago, a ideia de que, usando os poderes constitucionais […], [o Presidente da República] o tivesse demitido … Talvez, quem sabe, para o substituir por mim…” Mais do que terá ou não passado pelo espírito de Salazar, o episódio revela o que certamente passou pelo espírito daquele que, nesse momento, era o seu colaborador mais importante no governo. Os salazaristas nunca conviveram na paz dos anjos, nem entre eles, nem com Salazar. |
Na última edição do programa E o Resto é História, conversei com o João Miguel Tavares sobre o nosso hino: será que é muito bélico? Ouça aqui o podcast. |
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Rui Ramos é historiador, professor universitário, co-autor do podcast E o Resto é História [ver o perfil completo]. |
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