Todas as sociedades se regulam por um tempo circular, um tempo linear e um tempo incerto. O 25 de Abril e, porventura para muitos portugueses, a densidade temporal que termina a 25 de Novembro é, sem dúvida, o momento anual do tempo circular e em que tentamos perceber o quão longe ou perto estamos da cosmovisão original, sem dúvida plural, que imaginámos enquanto projeto de sociedade. Ou seja, em que acertamos contas com o tempo linear, que pressupomos de aproximação progressiva a essa cosmovisão.

Não é certo quantas gerações temos desde o 25 de Abril, mas é essa tensão e propensão do tempo linear a que chamamos ‘geração’ que devemos avaliar em cada 25 de Abril. Talvez tenhamos aquela que lutou por diferentes tipos de democracia que, de uma forma ou outra, se descobriu como grandemente formal e incompleta. Talvez tenhamos aquela que sonhou com a Europa e fez escolhas entre a meritocracia e as antigas e novas formas de clientelismo, e que se vai descobrindo periférica e perdida. Talvez tenhamos, finalmente, aquela em que o desencanto e a revolta convive já com o fascismo social e em que vários já se revêm numa possível nova ordem: um autoritarismo. É como se o tempo linear, alimentado anualmente pelo tempo cíclico do 25 de Abril, se tivesse esgotado e entrássemos agora num novo tempo: somente incerto. Neste 25 de Abril pessoas de todas as gerações encontram-se no desencanto e na revolta e tal é bastante visível nas manifestações a que temos assistido nestes últimos meses: os que vêm para a rua têm entre 20 e mais de 60 anos! Esta evidência de um tempo incerto implica, portanto, uma reflexão sobre as nossas instituições e o seu falhanço. Houve o tempo das ‘reformas’ várias, o tempo mesmo das ‘reformas estruturais’, o tempo da ‘modernização’…e, porventura, agora, o tempo da ‘transformação’ quando nada da mudança prevista chegou a tempo! Propomos aqui que todas as nossas instituições se afundaram no ‘administrativismo’ e ou fazemos um reset das instituições ou a revolta e o autoritarismo são o horizonte que nos espera: ambos se apresentam ao mesmo tempo como sintomas e curas de um tempo que se sente como incerto.

A educação, a saúde, a justiça, a defesa e segurança, a pilotagem (da Administração Pública central) e a representatividade (da instituição política) estão todas em causa. E estão em causa, porque o seu objeto social (educação, saúde, etc.) deixou de ser o objetivo central de cada uma das instituições, tendo sido secundarizado e substituído pelos meros meios: a burocracia administrativista passou grandemente a ser o fim em si mesmo de cada instituição. Mas, mais que isso: trata-se, de facto, de um ‘administrativismo de resultados para a fotografia’, ou seja, o que interessa é apresentar um simulacro de resultados…seja para o INE, para o governo, para a comunicação social, ou para Bruxelas! Não interessa (nunca interessou) fazer verdadeira monitorização ou avaliação de políticas! Sabíamos sempre que se houvesse uma séria auditoria o que se descobriria!

E com isto as instituições centrais do nosso Estado Social, e mesmo do nosso Estado de Direito, foram sendo tomadas por vários interesses e estratégias. A concentração da representatividade (instituição política), como da pilotagem (Administração Pública central) e, mesmo, do setor empresarial do Estado, em Lisboa foi uma parte da estratégia: assim as portas giratórias eram mais fáceis e geria-se o acesso das ‘cliques’ (leia-se, grupos de pessoas em que todas se conhecem) que interessavam ao centro do poder. As concentrações de poder ao nível organizacional e a redução da democraticidade interna das organizações foi outra das estratégias, favorecendo a manipulação do Estado Social por cliques e interesses geridos mais centralmente. Uma burocracia organizada por silos e auxiliada por regimes jurídicos cheios de truques (legislação fantástica sem regulamentação nem fiscalização; uma contínua reformulação legislativa que a torna um mar de adendas; regulamentos que desvirtuam a legislação; adopção num tempo a la carte de diretivas europeias, etc.), associada a uma ausência de escrutínio externo das nossas instituições e uma justiça que não funciona, tornaram toda a excepção possível (em que os pareceres ajudam), implicando, de facto, uma situação de contínua paralegalidade ou até ilegalidade sufragada na vida das nossas instituições. Todo este ambiente criou uma permanente dissonância organizacional: a lei, a burocracia, a disciplina organizacional e a justiça como arma de subalternização de todos os que não pertencem à clique para a qual todas as excepções são possíveis.

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Quando a vida se torna simplesmente um ‘apostar no cavalo certo’, cria-se um clima atrativo para toda a espécie de oportunistas sem escrúpulos que tomam os vários setores do poder. Não estamos com isso a dizer que todos os que estão no poder o são. No entanto, a escolha é cada vez mais simples e clara: ou consegues pertencer a uma clique ou tens de aprender a ser perdedor! Quando essa consciência se torna coletiva estamos já num tempo de fascismo social em que de um lado se aceita já o autoritarismo que postula a morte social do outro e, portanto, do outro lado, não há que esperar senão a revolta. O infiltrar de uma predisposição fortemente autoritária e autoritarista em várias das nossas instituições deveria fazer soar vários alarmes. Curiosamente, o autoritarismo desejado é o reflexo de um autoritarismo instalado: uma nova ordem que desinstale a desordem autoritária que já lá está. Esse é o momento em que o tempo linear renovado pelo tempo cíclico do 25 de abril deixa de ter sentido: entramos num tempo incerto.

Ainda é possível o reset das nossas instituições? Não é já certo, mas a fazê-lo é agora! Precisamos de uma verdadeira transformação na nossa instituição de pilotagem, a Administração Pública central. É ela a quem cabe fazer o reset das instituições do nosso Estado Social: a Educação, a Saúde a Justiça, a Defesa e a Segurança. Como em Portugal a instituição de pilotagem (Administração Pública central) foi tomada por interesses políticos conjunturais e outros interesses instalados na sua órbita, é preciso que a representatividade política possibilite uma (re)construção da Administração Pública com a incumbência de uma efetiva pilotagem. Servir não serve mais como lema à Administração Pública: o serviço ao cidadão e ao bem comum (res publica) foi usurpado pelo serviço ao que cada interesse político (bem-intencionado ou não) considerava ser a fórmula adequada em cada momento. É a hora de pilotar e fazer o reset das instituições para evitar o pior. E tal reset não pode ser feito apenas por juristas, pois o problema é social e cultural!

A aproximação da marca temporal dos 50 anos do 25 de abril é, porventura, a última oportunidade para uma reflexão séria e alargada sobre o futuro de Portugal a partir do confronto de todas as gerações que, de alguma forma, vivenciam ainda o rescaldo do tempo original. Uma marca semelhante só se voltará a repetir com o centenário, mas as gerações de então estarão já tão distantes, que o 25 de Abril muito provavelmente não passará de um evento longínquo, relembrado a partir dos arquivos e manuais. Devemos, por isso, iniciar esse balanço e reflexão, colectivizando-o o quanto antes. A questão – ‘que visão de futuro para o país?’ – que hoje, mais do que nunca, se impõe, não pode ser desligada desse tempo original. A pilotagem e o reset das instituições que temos implica ter esse tempo presente para que novos horizontes se abram à discussão e uma visão de futuro, verdadeiramente agregadora, possa mitigar o tempo incerto em que vivemos.