O primeiro 5 de Outubro
Portugal, ou o que iria ser uma nação independente de muitos séculos, foi oficialmente criado pelo Estado afonsino no dia 5 de Outubro de 1143 quando, depois de uma longa trégua, em Zamora, D. Afonso VII de Castela e Leão, Imperator Totius Hispaniae, reconheceu o primo, Afonso Henriques, como Rex Portucalensis.
Afonso Henriques era cristão, era guerreiro, era político, e não queria estar sujeito ao primo; os fidalgos de Entre-Douro-e-Minho, senhores da guerra que arrancamos às crónicas medievais e a alguma ficção de Herculano e de Arnaldo Gama, não gostavam dos seus pares de Castela; os galegos, com os condes Peres de Trava, oscilavam entre uns e outros. Havia também uma Igreja portucalense, com arcebispos de Braga e bispos do Porto que não queriam depender nem de Santiago, nem de qualquer Sé metropolitana castelhana. E uns burgueses nas cidades que acalentavam alguma independência dos nobres guerreiros que, supostamente, os protegiam. E finalmente, cá muito em baixo, uns servos da gleba que tratavam de amanhar a terra, criar filhos e gado e ir escapando aos desastres da guerra e às pestilências.
Com esta sociedade de “ordens”, o filho do conde D. Henrique de Borgonha e da filha ilegítima de D. Afonso VI, D. Teresa, criou um novo reino. Sempre a combater, primeiro contra os galegos e os partidários da mãe, depois contra os castelhanos e os leoneses e depois ainda contra os “mouros”, que foi empurrando para o Sul, seguindo uma linha – Leiria, Santarém, Lisboa, Alcácer do Sal – que flectia depois para Évora, fechando com Beja, Moura, Serpa e Juromenha.
Passou a vida nisto – na guerra – e a fazer filhos e filhas, à volta de vinte reconhecidos. A Santa Sé, que na Respublica Christiana funcionava como uma espécie de Nações Unidas – com menos retórica e maior eficácia –, demorou a reconhecer o novo reino de Portugal. Com o muçulmano por inimigo principal, Roma não queria fragmentações entre os cristãos nas cruzadas do Ocidente e só reconheceria D. Afonso Henriques a 23 de Maio de 1179, pela bula Manifestis Probatum, de Alexandre III. A Bula dirigia-se “ao caríssimo filho em Cristo, Afonso, ilustre rei dos portugueses”, “bom filho e príncipe católico”.
Nesse tempo, os almóadas dominavam El Andaluz, Henrique II era rei de Inglaterra e Luís VII, rei de França. Os Estados, os novos reinos, estavam então a começar e, aqui no Ocidente, iriam formarnações. A portuguesa daria prova de vida 200 anos depois, quando Castela, pela via da legalidade dinástica, quis impôr um rei estrangeiro ao reino de Portugal.
Foi este o primeiro 5 de Outubro, em Zamora, forjado por um “pai- cavaleiro” a quem Pessoa pediria “o exemplo inteiro e a inteira força” contra futuros “infiéis”.
O 5 de Outubro de 1910
O outro 5 de Outubro foi há 112 anos: Portugal, a nação portuguesa, já tivera o seu tempo de expansão nos séculos XV e XVI, a sua ascensão, e a suaqueda. Já seguira a evolução europeia dos regimes – monarquia feudal, monarquia católica absoluta, despotismo esclarecido, invasões francesas, revolução liberal, guerra civil, monarquia constitucional, liberalismo convulso, regeneração, fragmentação partidária.
A Europa do último quartel do século XIX era toda monárquica, com excepção da Suíça e da França – com uma “jovem República”, a Terceira, proclamada em 1871, depois da derrota frente aos prussianos.
O partido republicano português era então um pequeno partido burguês, sem operários, com militares subalternos e alguns de letrados. Uma espécie de “clube republicano”, como o que Eça caricatura em A Capital, sito na Rua do Príncipe; clube a que Artur Corvelo – que começara por achar “o partido republicano em Portugal bem desunido, bem vago, sobretudo bem limitado” – acabaria por aderir, subitamente arrebatado por uma “grande energia de amor humanitário”, uma forte disposição de “esposar a miséria universal” e uma infundada esperança de encontrar ali operários, frente aos quais pudesse, brandindo a espada, decretar incêndios de palácios e interrogar reis prisioneiros “num terror de apoteose popular”.
Mas o que era então ainda um partido de caricatura iria crescer à custa das profundas divisões dos monárquicos no pós-fontismo e, sobretudo, do que foi sentido como uma humilhação nacional – o Ultimato.
A Esquerda cresceu , assim, à custa do patriotismo ofendido e exacerbado, cavalgando populisticamente a humilhação dos portugueses perante os abusos do imperialismo britânico que “os Braganças”, cúmplices da internacional realista, permitiam. As campanhas de ocupação dos “Africanos” e a consequente extensão e consolidação do Império não conseguiram estancar os efeitos dessa humilhação.
A fragmentação partidária, os escândalos financeiros reais ou imaginários da Fazenda e da Coroa criaram uma hostilidade às “elites governativas” nas classes ascendentes das cidades. João Franco tentou uma solução kaiseriana, ao mesmo tempo que tratava de modernizar a direita com o seu novo partido. Mas tudo dependia do apoio de D. Carlos e a esquerda portuguesa, que sempre se mostrou capaz de juntar o maquiavelismo das soluções à retórica dos grandes princípios, assassinou o rei a 1 de Fevereiro de 1908. D. Manuel, traumatizado, abandonou João Franco e depois tudo se precipitou para a “balbúrdia sanguinolenta” que também acabaria por ser a Primeira República.
Nesse 5 de Outubro, a República triunfou depois de poucas horas de um duelo de artilharia em Lisboa das peças da Rotunda e dos cruzadores tomados pelos marinheiros republicanos contra uma força da Bateria Móvel de Queluz, comandada por Paiva Couceiro. Couceiro era um combatente corajoso e coerente, mas, inexplicavelmente, avisado em Cascais da revolução em marcha, resolve seguir a rotina de todos os dias, indo de comboio até Paço d’Arcos e a pé de Paço d’Arcos para Queluz – e chegando tarde à contra-revolução.
Assim – e com os tradicionais assassinatos de padres por “populares”– se passou o 5 de Outubro de 1910.
No fim da linha
Neste último 5 de Outubro, Portugal já não está na dianteira de coisa nenhuma, nem da constituição do Estado, como em 1143, nem do republicanismo europeu, como em 1910 – e já não tem impérios, a haver ou a perder. É um pequeno país da União Europeia, que se debate, não só com os problemas dos pequenos países com lugar cativo na “cauda da Europa” mas com outros que lhe são próprios.
Não terá talvez já excepcionalidade além da permanência, vai para meio século, de uma atmosfera ideológica dominante e inalterável, resistente às oscilações do poder partidário. É uma mentalidade que se alimenta é alimentada pelo discurso político e mediático: uma retórica oitocentista, maniqueia, moralista, baseada em histórias já de si simplistas mas ainda assim simplificadas de modo a poderem ser absorvidas e repetidas num meio cada vez mais pobre, cultural, moral, intelectual e realmente, em que aparentemente “está tudo bem”; histórias antigas de bons, maus e vilões, sempre os mesmos; anúncios apocalíticos da chegada de bandos iliberais, de ditaduras fascistas, de direitas populistas. A originalidade portuguesa estará aqui na continuidade dos mesmos “princípios imortais”, da mesma epopeia “anti-fascista”, da mesma glorificação festiva de uma cruzada de pantomina alheada da realidade passada, presente e futura.
Gramsci, quando escreveu no cárcere os seus Cadernos, lembrou precisamente o que já sabiam os Iluminados do século XVIII: que as ideias dominantes de uma época eram as ideias da classe dirigente, por isso, para mudar a classe dirigente, a classe operária teria de mudar as ideias dominantes. Seguindo o seu conselho, a classe política actual, temendo que “os populistas”, cavalgando o descontentamento popular, a mudem, agarra-se a velhos fantasmas e difunde-os nos discursos comemorativos – todos essencialmente iguais –, agitando papões iliberais e empenhando-se na remoção mediática de tudo o que a possa pôr em causa ou ao seu poder.
Chama-se a isto “ hegemonia cultural”, o que, dada a incultura generalizada é, aqui uma denominação quase risível.
Ao menos, neste 5 de Outubro, ao contrário do que aconteceu no de 1910, já não se matam padres em Arroios. Agora há métodos mais abrangentes, modernos e eficazes de tomar e conservar o poder, como o assassinato moral, o entorpecimento do povo com o ópio dos “novos direitos humanos europeus”, a imposição de “legislação avançada” – métodos que moem mas que também acabam por matar. E não são só dois padres em Arroios que matam.