1É precisamente por termos uma filha

A definição de família pode dar origem a múltiplos debates filosóficos, mas a literatura geralmente ajuda nas tarefas difíceis. É um momento literário deste tipo que encontramos em O teu rosto será o último, quando João Ricardo Pedro descreve a discussão que a resistência ao Estado Novo gera entre marido e mulher:

«“Vamos embora. Podemos ir embora. Temos amigos na França, na Alemanha, eu tenho família em Espanha, é um saltinho, pegamos na nossa filha e saímos daqui.” Ele argumentava que a Espanha ainda era pior, e que estava quase. Que o regime estava prestes a ruir. Que existiam movimentações externas. Pressões diplomáticas. Os Estados Unidos, a Inglaterra. Era uma questão de meses. Acabavam a discutir. “Temos uma filha”, dizia a minha mãe a chorar. “É precisamente por termos uma filha.”»

É precisamente por termos uma filha. Ou, mais genericamente, é por termos uma família que fazemos muitas das coisas que fazemos, nomeadamente, todo o tipo de sacrifícios para lhe deixarmos um mundo melhor, seja uma vida mais confortável e com menor sofrimento, seja um regime político mais democrático e livre. Até muito recentemente na história da humanidade, a família constituía o primeiro ponto a partir do qual nos pensávamos no mundo – o entendimento individualista do homem é um produto da modernidade, e o individualismo exacerbado um subproduto muito recente.

Na filosofia peripatética, este aspeto é evidente: a perspetiva analítica de Aristóteles encontra na família a célula básica da organização social. Ela não é autossubsistente, o que levou à constituição de tribos e aldeias, por sua vez reunidas em poleis, que seriam a forma comunitária perfeita – mas é em torno da família que se organiza a oikonomía e se cria uma ampla rede de deveres e obrigações que liga os seus membros.

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Há, naturalmente, razões biológicas para isto e a psicologia evolutiva (área polémica) tem oferecido contributos relevantes para a compreensão do nosso comportamento: a família é fundamental para a reprodução dos nossos genes e representa, nessa medida, a nossa sobrevivência para lá da morte. Seria este gene egoísta, para usar a expressão de Richard Dawkins, a justificar os imensos sacrifícios que estamos dispostos a fazer pelos nossos filhos (considerando que, enquanto espécie, temos baixos índices de propagação), mas também as responsabilidades que estamos dispostos a assumir pela família mais alargada, nomeadamente pelos nossos sobrinhos e primos, que ainda nos carregam geneticamente.

Encontraríamos a mesma lógica nas grandes religiões monoteístas: a proteção da família e a condenação do aborto, dos métodos de contraceção e da homossexualidade resultariam da necessidade de propagação dessas religiões em contextos altamente competitivos. Quanto mais os crentes se reproduzem, maior é a probabilidade de sobrevivência dessa fé, pelo que as suas regras devem proteger as possibilidades de reprodução.

E a própria instituição do casamento deveria ser entendida historicamente como um mecanismo de proteção genética: se o princípio de fidelidade garantiria ao marido a paternidade real da descendência, a impossibilidade de dissolução garantiria à mulher que o homem continuaria a providenciar a sua vida e a dos seus filhos para lá do término da sua fertilidade, quando o homem poderia procurar novas parceiras para expandir os seus genes.

Desta forma, a família estava ligada de forma inexorável à nossa sobrevivência, mesmo quando nos pensávamos enquanto indivíduos. E as nossas obrigações presentes correspondiam a obrigações futuras das próximas gerações em relação a nós.

2A transformação familiar

O século XX veio, contudo, transformar radicalmente a instituição familiar e a sua dinâmica, com particular contributo de dois fatores: o desenvolvimento tecnológico e a criação do estado social.

O impacto da tecnologia na família está proficuamente estudado, em especial quanto à reformulação dos papéis desempenhados pelos seus membros. Mais do que as máquinas de lavar, terá sido o fogão a gás a libertar as mulheres para o desempenho de outras tarefas (uma vez que acender e manter o fogo constituía uma missão demorada e contínua), e todos os novos aparelhos domésticos avançaram na mesma lógica. A progressiva emancipação da mulher face às tarefas domésticas libertou-a para uma vida profissional e, com isso, toda a organização familiar de cuidado e educação dos filhos se revolucionou. Simultaneamente, os avanços científicos permitiram dispositivos de controlo de natalidade, que passou a ser criteriosamente dominado pela mulher.

Mas a tecnologia ofereceu igualmente novas garantias de sobrevivência. A esperança média de vida teve um crescimento contínuo ao longo do último século, enquanto a mortalidade infantil caiu a pique, levando à diminuição do número de filhos. A ideia de sobrevivência genética foi-se adaptando e as últimas décadas têm oferecido uma reflexão de cariz mais individualista: a grande ambição já não é a de sobrevivermos na nossa descendência, mas a de avançarmos para alguma forma de transição pós-humana. A aspiração humana é agora a de viver para sempre enquanto indivíduo, seja pela substituição deste corpo biológico por um corpo mecânico ou eletrónico, seja pela transição para uma espécie de equipamento de memória externa. Se a modernidade se caracteriza pelo entendimento da natureza como um objeto nas nossas mãos (pensemos em Francis Bacon, o filósofo, e o seu Novum Organum, de 1620), o individualismo exacerbado da contemporaneidade assume em pleno a sua tentativa de emancipação biológica.

Importa recordar que este individualismo moderno resulta diretamente da criação do estado moderno: é a modernidade que estabelece a noção abstrata de poder que nos coloca como agentes individuais de direitos e deveres, pelo que o desenvolvimento e crescimento do estado significou sempre um aprofundamento desse individualismo. Mas será a função social do estado a abalar radicalmente a lógica familiar: as obrigações que tradicionalmente cabiam à família – previdência, apoio, cuidado – foram transferidas para instituições estatais, o que naturalmente dispensa a necessidade de descendência e fragiliza as relações familiares mais amplas.

Este aspeto, quase sempre negligenciado, é evidente nos países onde o estado social é mais amplo (como nos admirados países nórdicos): onde se acredita que os serviços de previdência social vão assegurar as nossas necessidades presentes e futuras, regista-se um decréscimo da natalidade, uma desvalorização do casamento e fenómenos agravados de solidão nos mais velhos. Um estado mais amplo tende a enfraquecer as redes de solidariedade familiares e comunitárias, ao mesmo tempo que nos torna menos autónomos e mais individualistas.

3A fuga total

O caminho percorrido conduziu-nos, não inesperadamente, a um individualismo agravado, em que a família parece agora representar todos os males do mundo e do passado – pelo que dela nos devemos libertar se queremos ser verdadeiramente livres e devidamente progressistas. Ao invés de nos concebermos a partir da família e das obrigações recíprocas que a alimentam, somos constantemente bombardeados com uma visão da família do tipo da de Alexander Portnoy, naquele que é, provavelmente, um dos melhores romances do século XX norte-americano:

“Para que servem, no fundo – pergunto eu – todas essas regras e proibições dietéticas, senão para nos dar a nós, criancinhas judias, o hábito da repressão? Vai-te habituando, meu querido, habitua-te, sim, habitua-te. A inibição não cai assim do céu, sabe – requer paciência, requer concentração, requer um pai ou uma mãe dedicados e cheios de espírito de sacrifício e uma criancinha esforçada e atenta para criar, no espaço de poucos anos, um ser humano verdadeiramente tolhido e servil.”

Essa demonização da família transporta-nos para uma realidade alternativa, na qual estaríamos marcados, como Portnoy, “da cabeça aos pés pelas minhas repressões, como um autêntico mapa das estradas. As auto-estradas da vergonha, da inibição e do medo atravessam-me o corpo todo.” E se não podemos negar que a realidade por vezes assume vestes abomináveis, em justiça temos de reconhecer o caráter excecionalíssimo dessas circunstâncias.

Decisões como a recente Recomendação do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida sobre o processo de Consentimento Informado em menores de idade, que visa ampliar a autonomia dos adolescentes e recusa, nessa medida, o direito à curiosidade por parte dos pais, são sintoma do modo individualista do nosso tempo, mas partem de uma noção malfazeja de família. Como se os interesses, as obrigações e, sim, a curiosidade não decorressem desse laço insolúvel que nos liga à família e que leva os pais a quererem o bem dos seus filhos e os filhos a cuidarem dos pais quando estes são mais velhos. Partir de uma consideração autonomista e individualista do adolescente condenar-nos-á a uma sociedade de adultos egoístas e idosos abandonados.

É este espírito do tempo que tem oferecido campo fértil para uma cultura de queerização, em crescimento fulgurante nas gerações mais jovens. Na tentativa de desfazer no ar tudo o que é sólido, já não basta a essa cultura a fuga total que Édouard Louis descreve em Para Acabar de Vez com Eddy Bellegueule. Para ser Édouard, Édouard tentou “acabar de vez” com Eddy, isto é, com o seu passado, as suas raízes, a sua família. Como nos diz em História da violência:

“Os estudos, a ideia de estudar tinha surgido muito mais tarde, quando compreendi que esse seria o único caminho possível, ou pelo menos o único caminho que me permitiria afastar-me não só geograficamente, mas também simbolicamente, socialmente, e, portanto, totalmente, do meu passado. (…) Só os estudos poderiam permitir-me uma fuga total.”

Mas Édouard Louis sabe que esta fuga é ilusória. Da mesma forma que não podemos emanciparmo-nos da natureza e da biologia, não nos podemos libertar da nossa família e do nosso passado e é por isso que os seus livros revolvem continuamente em torno dessa família e desse passado. Crescer é o processo de descobrir a ilusão da fuga total, mas trata-se de um caminho de amadurecimento pessoal e que tem de ser percorrido individualmente.

A cultura de queerização quer, no entanto, mais do que esta tentativa de fuga individual e é aí que reside o seu perigo: nascida do individualismo exacerbado da última década, o que se pretende aqui, sob as vestes de um novo vocabulário e uma nova linguagem, é a abolição social da família – com o objetivo claro de nos fazer esquecer de que é nela que reside a nossa identidade e a nossa maior possibilidade de liberdade.