As palavras são brevemente nossas. Depois de escritas, libertam-se com a leveza das folhas no Outono e entregam-se, despojadas, à ventura. Podem regressar e atraiçoar-nos no silêncio de uma hora inesperada ou surdir em ruidosos estilhaços — fragmentos bruscos e volúveis que inundam o caminho. Gravamos nelas uma ideia, um sentido, uma ilusão, acreditando erradamente que lhes ditamos a sorte, o destino. Depara-se-nos, porém, a crudelíssima verdade: fomos condenados a partir, elas nasceram para ficar.

Para conhecermos verdadeiramente uma palavra, precisamos de a sangrar até à raiz. A etimologia — que Voltaire, descrente nos métodos linguísticos da sua época, dizia ser uma ciência em que as vogais nada valem e as consoantes pouco contam — é o cais de infinitas viagens por lugares distantes, ignotos, em busca de metamorfoses.

Debalde, o filólogo italiano Alfredo Trombetti tentou provar a origem comum de todas as línguas. Antes dele, outros se abalançaram a fazê-lo, ancorando o propósito no mito de Babel, revelado no Livro do Génesis. Num tempo em que havia uma única língua, os Babilónios, chegados à planura de Sinar, situada indefinidamente entre os rios Tigre e Eufrates, decidiram erigir uma cidade com palácios magnificentes e uma torre, singular e desmesurada, capaz de romper o céu e roubar a divindade. Para castigar o orgulho e a arrogância do intento, Deus resolveu confundir a linguagem dos construtores, ávidos de fama, e dispersou-os por todas as regiões do mundo, criando uma pletora de idiomas e culturas.

Na génese de «Babel», o étimo hebraico balal, que significa precisamente «confundir». O padre António Vieira confirma a linhagem nos Sermões: «[O] mesmo edifício, que começou em torre, acabou em confusão e por isso se chamou Babel.»

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Embora alguns filólogos apontem o anamita, o basco, o chinês, o hebraico e o tupi como línguas primevas, ninguém desvelou até hoje a matriz — o instante ancestral e supremo do qual nasceram todas as palavras. Sabemos, todavia, pertencer aos Sumérios o mais antigo sistema de escrita. Na civilização suméria, que remonta a 3500 a. C., foi inventada a escrita cuneiforme, designação que se deve às incisões em forma de cunha. A técnica era usada inicialmente para o registo das colheitas em placas de barro.

As similitudes entre os idiomas vivos são incontáveis, fruto de coincidências e transformações fonéticas. O dicionarista Fernando V. Peixoto da Fonseca sinaliza, em O Português entre as Línguas do Mundo (Edições Almedina), a proximidade entre línguas sem conexão directa e geograficamente distantes, como o basco, que apresenta «afinidades de estrutura» com o japonês e o quíchua, falado pelos indígenas do Peru, descendentes dos Incas. «Quíchua» descende de um vocábulo desse povo: quéchua. E o significado é multissensorial: a região temperada da serra.

No texto Nacionalidade Linguística, publicado no The Guardian e acolhido em A Invenção Ocasional (Relógio d’Água), a escritora Elena Ferrante sintetiza e desmistifica: «Uma língua é um compêndio de História, de Geografia, de vida material e espiritual, de vícios e virtudes não só de quem a fala, mas também de quem a falou ao longo dos séculos.»

A língua portuguesa é o epítome dessa simbiose, comportando partículas de inúmeras épocas e lugares, como ensina Antenor Nascentes no superbíssimo Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, uma das fontes que inspiram a nossa reflexão.

À semelhança das demais línguas românicas, com excepção do romeno, os elementos latinos dominam o nosso léxico, o que se deve à superioridade da civilização romana na Lusitânia e à afinidade com o celta, de que ainda há vestígios, por exemplo, na toponímia.

Os elementos gregos superabundam, tendo chegado até nós em diferentes eras: pelo latim, aquando da colonização romana, mas também quando o cristianismo se alastrou no Ocidente, quando o Baixo Império se impôs no Mediterrâneo e no Sul da Hispânia, e ainda na época das Cruzadas. Alguns termos ligados à arte e ciência, provenientes do grego clássico, integraram o nosso léxico pelo caudal do francês. O grego moderno contribuiu igualmente para a nossa riqueza vocabular.

No que tange aos elementos românicos, salienta-se o parentesco com o espanhol. Em Dificuldades da Língua Portuguesa, Manuel Said Ali usa de cautela e conclui não ser possível saber o que «uma língua tirou do tesouro da outra». Por seu turno, o influxo do francês remonta ao século XI, prendendo-se com a vinda do conde Henrique de Borgonha, pai de D. Afonso Henriques, para a Península Ibérica. O Bom Cavaleiro — como Alexandre Herculano lhe chamou um dia — e os franceses do respectivo séquito trouxeram espadas e palavras. Do italiano, absorvemos termos ligados às belas-artes, por exemplo.

Os Germanos, dominadores e belígeros, deram-nos vocábulos da esfera militar, alguns por via do latim, como «guerra» e «trégua». Os Visigodos influenciaram o onomástico, especialmente no Norte. Ao anglo-saxão, devemos os nomes dos pontos cardeais. Quanto aos anglicismos, observa-se terem adentrado na nossa língua directamente ou pela aluvião do francês.

Os termos com partículas árabes pululam em domínios de natureza vária: agricultura, arte, ciência, comércio, guerra, indústria. A influência é visível nos topónimos, especialmente no centro e Sul. Relevantes, pelo uso frequente, a preposição «até», a interjeição «oxalá» e o substantivo «fulano». Não existem, porém, arabismos ligados aos sentimentos, com excepção de «mesquinho», que deriva de miskīnu (pobre, infeliz).

            O eflúvio dos referidos elementos não turva a profusão de outros átomos — não raro, de proveniência longínqua — essenciais a tantas e tantas palavras usadas na comunicação hodierna, como as seguintes.

«Avatar», «carmim», «curcuma», «marajá» e «rupia» procedem do sânscrito, antigo idioma dos Brâmanes, a mais elevada das quatro castas tradicionais indianas. Do tâmul, língua dravídica do Sul da Índia e do Norte e Oeste do Sri Lanka, extraímos «anaconda», «charuto», «vetiver». Descendência chinesa têm «chá», «chávena» e «ganga». «Patchuli» vem do inglês patchouli, mas descende do bengali pachapat. O perfume chegou a Inglaterra no século XIX e só depois se espalhou pela Europa. O étimo tibetano blama originou «lama», com o sentido de sacerdote e guia espiritual no budismo do Tibete e da Mongólia.

No idioma indígena australiano, ancora a palavra «canguru». No Dictionary of Word Origins, Joseph Shipley relata ter sido o navegador e cartógrafo inglês James Cook quem cunhou kangaroo quando chegou a Queensland em 1770. Trata-se provavelmente de uma corruptela da resposta dada aos exploradores ingleses quando estes perguntavam o nome do animal. «Não percebo», diziam os nativos.

Assinalável é o intercâmbio com o Japão, o que se não estranha, visto terem os marinheiros portugueses sido os primeiros europeus a lá aportar, em 1542 ou 1543. Os nipónicos deram-nos «biombo», «catana», «gueixa», «haraquiri», «iene», «micado», «quimono», «saqué», «samurai». E, como ensina Tai Whan Kim, no excelso The Portuguese Element in Japanese, publicado na Revista Portuguesa de Filologia em 1976, levaram do nosso acervo biidoro (vidro), bōbura (abóbora), bōro (bolo), botan (botão), igirusu (inglês), furasuko (frasco), kappa (capa), karumero (caramelo), pan (pão), sabon (sabão). O autor enumera ainda alguns termos caídos em desuso: iruman (irmão), kapitan (capitão), karusan (calção), kurusu (cruz), manteika (manteiga).

A lista não tem epílogo, e as palavras brotam em torrente de outros quadrantes. Do taino, língua aruaque que está na base do crioulo haitiano, recebemos «furacão», «maca», «tabaco». Derivam do nauatle, língua indígena mexicana, «abacate», «cacau», «chocolate», «tomate», «xícara». Com partículas do caribe, falado pelas tribos homónimas da América Central e do Sul, os vocábulos «canoa», «cobaia», «colibri», «savana», «tubarão». Do quíchua, nasceram «alpaca», «coca», «condor», «guano» e «pampa». Gerado no taitiano, presente no Taiti e noutras ilhas da Polinésia Francesa, o vocábulo «tatuar». Do tupi, tronco de línguas indígenas da América do Sul, vêm «abacaxi», «arara», «jacaré», «jaguar», «mandioca».

Também desaguaram no português elementos com matriz europeia. Do checo, procedem «cheque» e «caleça». Do húngaro, provém «hussardo». O catalão influenciou-nos com «bosque», «nau», «orgulho», «robalo». O napolitano legou-nos «lava». Sem surpresa, o dialecto veneziano ofereceu-nos «gôndola», e com ela a miríade de sonhos que flutuam nos canais glaucos da cidade.

As palavras borboleteiam pelo mundo num atlas invisível e sem fronteiras, invadindo terras setentrionais e merídias. Renascem pela voz do ancião que narra lembranças em histórias quiméricas e do poeta que as transforma em dor numa elegia. Livres, desarmam o tempo e nunca se abandonam ao olvido.

Eis a nossa herança: o tesouro que o devir escolheu e guardou. Conhecer a língua é honrar o passado, a raiz. Na origem, vislumbres de alma. Na memória, um pedaço de nós.