Vejo a árvore da janela da cozinha. É um diospireiro. No dia em que nasci, aquela árvore já estava naquele ponto fixo na terra. Não consigo imaginar aquele jardim, que se estende para lá do terraço, sem a presença e a sombra daquele diospireiro.
Vejo a minha mãe a colher dióspiros e sei que o Outono chegou. Ela retira-os da árvore com toda a leveza do mundo, porque quem ousa quebrar a ligação de um fruto com a natureza, tem de pedir as mãos emprestadas a deus. É necessário atuar com todo o cuidado para não cortar abruptamente com esse elo que tem tanto de divino, como de natural. Para além disso, os dióspiros são frágeis e a sua moleza faz questão de se revelar com frequência.
Na mesa da cozinha está uma bandeja cheia de dióspiros. Tento contá-los, mas rapidamente desisto. Fico a absorver o ambiente que aquela cozinha espelha e recordo tantas lembranças em forma de pessoas, coisas e sensações. Os azulejos do chão, que preenchem aquela divisão, que para mim é sagrada, lembram-me incondicionalmente a minha avó, as posturas da minha avó, a voz da minha avó, os cozinhados da minha avó, a vida da minha avó. Realmente, esta casa não deixa de ser dela e as memórias que guardo não deixam de me pertencer, ainda que o tempo passe. Aproximo-me do lava-loiça e observo, durante breves segundos, a minha mãe, que não se apercebe do intruso. Não sei há quanto tempo é que ela está lá fora, mas, a julgar pela quantidade de frutos colhidos e armazenados no interior da cozinha, penso em vários quartos de hora.
No campo, as manhãs passam mais devagar. Na verdade, aqui, tudo demora mais tempo e isso é bom. Sabe bem. Uma vida no campo é mais longa do que uma vida na cidade, ainda que a medida temporal seja a mesma. No campo, os prazeres são eternos; parece que não têm nem começo, nem fim. Longe do betão da cidade, é fácil viver e, por isso, é fácil sentir.
Ainda é cedo. O Sol ainda não se mostrou todo, mas parece que o mundo já está de pé há tanto tempo. Os pássaros já voaram dezenas de quilómetros. O Tejo já chegou a Lisboa. E o vento já percorreu o país inteiro.
Na cidade, é difícil sentir as estações do ano. Talvez seja por isso que elas sejam tão difíceis de distinguir; elas confundem-se, entrelaçam-se. Ninguém é capaz de as identificar categoricamente. É difícil sentir o Outono na cidade – está cada vez mais difícil, pelo menos. Claro que as folhas das árvores caem e preenchem as ruas, as estradas e os jardins das cidades. E é certo que as mulheres e os homens não se esquecem das suas camisolas de manhã e ao fim da tarde (porque são prevenidos e recordam-se bem das vezes em que, mergulhados numa inocência profunda, deixaram os agasalhos em casa e passaram frio em momentos do dia).
Não nego que o Outono também existe ao longo dos ossos cinzentos das cidades, mas é tão diferente daquele que, todos os anos, ressuscita nos planaltos verdes e montes castanhos dos campos. O Outono citadino é diferente. É agitado e está sempre numa correria frenética, tal como todos os restantes processos do mundo, que estão cada vez mais apressados e menos calmos.
De repente (parece sempre que é de repente), tudo ficou mais rápido, mais veloz, mais intenso e, por isso, tudo ficou mais próximo. Na cidade, as pessoas têm tudo perto de si, menos a elas próprias, que estão cada vez mais distantes. Nesses labirintos de cimento, é fácil chegar a todo o lado: basta estalar os dedos, como se tratasse de um truque de um ilusionista fantástico, e alcançamos o queremos. No campo, somos obrigados a esperar e o único assento que temos para descansar o corpo é a terra toda, que, deitada, nunca acaba. Nada é instantâneo no campo. Aqui, tudo tem um tempo, seguido de um intervalo. O cantar dos pássaros. O choro da chuva (e as lágrimas de alegria de quem depende do campo para viver e que, por essa razão, quando vê gotas de chuva vê um filho a regressar a casa após trinta anos). A mudança das estações. E o amadurecimento dos dióspiros que a minha está a colher, enquanto eu fico parado, na cozinha, a sorrir secretamente para a avó que vive no meu coração cor de laranja, e o meu pai e o meu irmão leem no terraço, e as páginas dos seus livros são embaladas por um vento que só existe no Outono.