A inteligência guineense acordou estupefacta com as declarações do Doutor Bacelar Gouveia, constitucionalista português, sobre o momento desconexo da política e da justiça guineenses.  Bacelar Gouveia está em Bissau para falar numa conferência internacional, sob o lema ‘A Justiça e os Desafios Contemporâneos’, curiosamente num país onde a justiça está caprichosa e vergonhosamente obliterada.

No meu entender, Bacelar Gouveia ensaiou um jogo perigoso ao parecer sugerir, com uma estranha ousadia, que os guineenses deveriam deixar tudo como está e até violar os prazos dos mandatos estabelecidos e juntar a realização das duas eleições num único momento ou seja, no último trimestre do próximo ano. Com isto para reforçar ainda mais, o quadro de um lamaçal de ilegalidades vigente no território. Tudo porque, por um lado fazer eleições “não é coisa barata”, e por outro lado, porque o tempo definido por lei, para a realização das eleições no país, ou seja, entre outubro e novembro, “é uma janela muito reduzida”.

Ato continuo, quando este senhor diz, referindo-se à inconstitucionalidade da dissolução da Assembleia Nacional Popular, ter estranhado “que tendo havido de facto a alegação no que respeita à inconstitucionalidade da dissolução da Assembleia Nacional Popular, a questão não tenha sido levada aos tribunais competentes”. Deve ter pensado que somos todos estúpidos, incluindo homens e mulheres, mais brilhantes do que ele.  Bacelar Gouveia convida-nos a ir a um tribunal que ele mesmo sabe que há muito deixou de existir, pelo menos como tal. E como sabe o senhor Bacelar Gouveia, o responsável por este estado de coisa tem um nome. O cinismo quando extravasa, afunda-se, invariavelmente, na boçalidade. Afinal os guineenses não têm de combater os seus próprios males, mas também, e quiçá sobretudo, os males que vêm de fora e que lhes entram em grande no país adentro.

É caso para se dizer, quanto custa o tamanho descaramento.

Para um melhor enquadramento do leitor deste artigo, vamos revisitar de seguida, as palavras e os posicionamentos categóricos recentes do “amigo da Guiné-Bissau”, o Senhor Professor Doutor João Claúdio de Bacelar Gouveia, aquando do colapso institucional na Guiné-Bissau, em resultado da dissolução do parlamento nacional.

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Quando se anunciou a dissolução do parlamento da Guiné-Bissau, em dezembro último, este autointitulado amigo da Guiné-Bissau, posicionou-se publicamente de forma clara, tendo considerado de inconstitucional, inválida e sem força jurídica o decreto presidencial que dissolvia o parlamento de forma ilegal, chegando a afirmar o seguinte: “Eu julgo que a decisão do Presidente da República [da Guiné-Bissau] não é correta. É uma decisão inconstitucional, porque viola o artigo 94.º da Constituição. O artigo diz que o parlamento não pode ser dissolvido no período de um ano após a sua eleição”.

Tenho de reconhecer que aqui, o professor respirou honestidade intelectual, momento de grande exaltação dos valores da legalidade. Tanto mais que acrescentou: “Eu lamento muito, como amigo da Guiné-Bissau e como conhecedor do seu Direito Constitucional, lamento muito o que se está a passar. Penso que isto vai complicar a situação na Guiné-Bissau, que nós já sabemos que tem uma história atribulada nos últimos anos e tínhamos a esperança de que, de facto, as coisas tivessem acalmado e tinha havido uma esperança de que as coisas agora iriam ser cumpridas, iam ser respeitados os trâmites condicionais na vida política e, pelos vistos, não é isso que está a acontecer, pelo menos com esta decisão”,

A energia da lucidez e de bondade intelectual, patenteou-se ainda mais quando, tranquilamente  enaltece:  “Faço aqui um apelo também aos intervenientes e em particular ao senhor Presidente da República, que eu estimo, mas que naturalmente revogue este decreto presidencial, porque é manifestamente inconstitucional e até pode correr o risco de ser desobedecido por parte do parlamento, que pode entender que o decreto é inexistente e pura e simplesmente manter se em funções como se a dissolução não existisse, porque, na verdade, ela é inválida e não produz força jurídica”.

Bacelar Gouveia contradiz-se porquê? O quê que mudou na Lei fundamental da Guiné-Bissau, desde então? Como é que um professor de direito aponta-se desta forma?

Porquê que depois de tanta energia em defesa da normatividade positiva, um cidadão avisado, corrompe toda a racionalidade ativa para se sucumbir numa vulgaridade intelectual?

Na verdade, a História por vezes é um lugar estranho.

Frente a esta degradação do comportamento, eu pergunto a mim mesmo, o que nos vale tanto conhecimento, tantos títulos, tanta sagacidade, tanta gravata, quando a linha que liga as nossas palavras às nossas ações, não vislumbram retidão!

Como escreveu Theodore Dalrymple, num dos seus brilhantes ensaios sobre a degradação dos valores, “Muitos intelectuais ignoram os perigos da degradação moral e apoiam a transgressão das convenções sociais, o que pode levar ao caos”.