A Covid-19 vai afectar profundamente, não só a vida interna e a política dos Estados, mas também a geopolítica e a geoeconomia.

A pandemia chegou num momento em que várias causas políticas e económicas estavam já a pôr em causa a ordem mundial globalizada: desde o progresso dos partidos e movimentos nacionais-populistas ou nacionalistas populares na Europa, até à guerra comercial China-Estados Unidos e ao consequente aumento cruzado de tarifas.

No fundo, a globalização tinha transformado o mundo numa espécie de hipermercado; e se teve o mérito de desenvolver economias como as asiáticas, especialmente a chinesa, para onde se transferiu uma parte da indústria da Europa e dos Estados Unidos, e de melhorar a vida das suas populações, causou a correspondente desindustrialização do mundo euroamericano. Daqui veio uma redução numérica da pobreza em muitas regiões extra-europeias, mas também a perda de emprego, de poder de compra e de estatuto das classes trabalhadoras industriais da Europa e dos Estados Unidos e, progressivamente, das classes médias.

A pandemia veio agravar estas tendências. Quando queremos avaliar os efeitos económicos da Covid-19 não recorremos a nenhum precedente epidémico mas a crises financeiras, como a Grande Crise de 1929 e a crise de 2007-2008. O Pew Research Center, por exemplo, fez estudos comparativos entre a crise de 2007-2008 e a actual, quer em termos de queda objectiva dos índices económicos, quer das reacções das pessoas. E desde logo se viu a diferença, com aspectos geograficamente variáveis. Enquanto na Austrália, em Espanha, na Itália e no Reino Unido o sentimento é de que a situação é muito pior agora do que há uma dúzia de anos, os sul-coreanos e os norte-americanos mostram-se menos pessimistas que então. A velocidade de mudança das estimativas e das previsões é também muito significativa. No momento em que escrevo estas linhas (16 de Setembro), a OCDE acaba de publicar uma revisão de um declínio de 4,5% na economia global, em vez dos 6% esperados em Junho.

Num mundo em que, segundo alguns sábios e adivinhos, como Yuval Noha Harari, estaríamos a dois passos de uma longevidade humana à Matusalém, esta radical volatilidade de análises macroeconómicas, de previsões de vacinas e de curas, de sugestões de terapias, as divergências e polémicas entre especialistas e cientistas, as inevitáveis contradições dos políticos e das políticas, a surpresa e o medo, não podiam deixar de gerar teorias da conspiração.

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No mundo antigo, nos tempos medievais e praticamente até ao século XIX, era de rigor identificar uns culpados das pestes e calamidades e fazer deles “bodes expiatórios”. Os leprosos e os judeus, por exemplo, alegados instigadores da ira de Deus ou dos deuses, foram vítimas de excelência das cóleras populares. No mundo de hoje, a cólera político-jornalística encontra nos “líderes populistas” os seus bodes expiatórios, atribuindo as grandes hecatombes nos Estados Unidos e no Brasil às políticas erráticas e negacionistas de Trump e Bolsonaro. No outro extremo, são os “chineses” os culpados, acusados de fabricar uma arma biológica nos seus laboratórios de Wuhan e de a enviar para a Europa e Estados Unidos, destruindo as nossas economias para poderem comprar ao desbarato os nossos Estados e Nações.

Numa perspectiva de psicologia das multidões, as teorias da conspiração fazem sentido, na medida em que os seus autores e propagadores sugerem implicitamente que acreditar nelas, isto é, saber de ciência certa a “origem do mal”, é meio caminho andado para o combater e vencer. E, além disso, com o sistema multiplicador das redes sociais, há muito quem as propague, mesmo não estando convencido da sua veracidade.

Há teorias da conspiração de toda a espécie: no Irão, fontes oficiosas governamentais acusam o Satã ocidental; há uma cadeia de mails que culpa Bill Gates e as farmacêuticas; outros dizem que são os telefones celulares os propagadores. E, claro, na grande cabala, todos os poderes secretos do mundo, consoante os gostos ou opiniões dos teorizadores, podem estar envolvidos: o Opus Dei, a Maçonaria, Soros, os Cavaleiros de Colombo, Putin, a CIA, os Jiadistas, os Sionistas, os Chineses, os Americanos. Há também os negacionistas radicais, que dizem que tudo não passa de uma invenção para controlar, pelo medo, a população.

Segundo escrevia há algum tempo Max Fisher no New York Times, os governos também se associam a estas teorias: um alto funcionário chinês declarou que o vírus chegou à China trazido por militares americanos, no que foi corroborado por Maduro, presidente da Venezuela. O líder da Liga italiana mencionou os ratos e os morcegos da China como as fontes do vírus e os presidentes Trump e Bolsonaro, que apareceram inicialmente a desdramatizar a letalidade do vírus, mostraram-se depois prolíferos nos meios de cura.

Além de todos estes clamores, mais ou menos verosímeis, vêm as polémicas dentro da comunidade científica, que lembram as discussões dos teólogos bizantinos sobre o papel de Deus na Praga de Justiniano.

Mas no meio de tudo isto há algumas consequências que parecem, essas sim, certas e inevitáveis:

A pandemia interrompeu, definitivamente ou por muito tempo, circuitos económicos e comerciais, de produção industrial e distribuição de certos produtos. Os consumidores ou utentes, no sector dos medicamentos, ou da alimentação, por exemplo, vão passar a ser exigentes, mais exigentes, nos controlos de qualidade dos bens consumíveis, não se importando de pagar mais (caso possam…) para terem confiança no que consomem. Esta condição vai alterar profundamente alguns circuitos de abastecimento e vai criar uma procura de alternativas em que a proximidade física, o conhecimento da origem, a identidade cultural, a confiança mútua dos agentes vão, com certeza, contar. Uma procura de alternativas que valorize, em primeiro lugar, a própria produção nacional.

Assim, tudo indica que os países passem a procurar e a promover, na medida do possível, o aumento da sua capacidade de produção independente de produtos críticos relacionados com a saúde e alimentação. No entanto, como isso em muitos casos não é possível, é natural que se privilegiem identidades e solidariedades regionais, linguísticas, culturais. A União Europeia já desenvolveu algumas destas linhas e padrões.

É neste ponto que podemos encarar com novos olhos as nossas possibilidades no quadro da CPLP, onde existe uma identidade histórico-cultural e linguística, uma vasta comunidade de relações e ligações comerciais e afectivas e complementaridades económicas que, no quadro anterior, podiam não fazer sentido. Embora, numa perspectiva realista, alguns países, como é o caso de Angola, estejam em melhores condições para parcerias, numa redefinição dos circuitos de produção e distribuição de bens e serviços que será crucial.

No fundo, trata-se essencialmente de reavaliar e medir complementaridades entre economias e sociedades em campos muito vastos, alguns claramente por explorar.

Angola, por exemplo – e os responsáveis locais não cessam de o proclamar – tem neste momento crítico da sua história que ressuscitar como a grande economia agrícola e agro-industrial que foi no tempo colonial. E tem as condições naturais, as terras, as águas, as comunicações para o fazer. Portugal tem experiência e quadros preparados nesses sectores. A nós e a eles faltam capitais, mas, neste momento crítico da sua história, a UE terá, no seu próprio interesse, de desenvolver as economias do Sul, para pôr termo, de um modo racional e humano, à inevitável “invasão” do nosso continente pelos foragidos das guerras, das fomes, da miséria, que não vai parar sem uma política e uma geopolítica realista e generosa, que actue em força e rapidez, no sentido da paz, da segurança e do desenvolvimento do Continente Africano.