1 O Plano Ferroviário Nacional recentemente apresentado visa “definir a rede ferroviária que assegura as comunicações de interesse nacional e internacional em Portugal. Com este plano, pretende-se conferir estabilidade ao planeamento da rede ferroviária para um horizonte de médio e longo prazo”.
“Conferir estabilidade” é vital, porque os governos anteriores caracterizaram-se por constantes oscilações relativamente às opções políticas ferroviárias, que nos custaram já cerca de 200 milhões de euros sem a construção de qualquer obra, naquilo que é mais uma pesada herança socrática, à qual não faltaram as inevitáveis suspeitas de corrupção.
Estas oscilações resultam sobretudo da dificuldade em articular e conjugar a comodalidade interna e internacional – definida pela Comissão Europeia como “an approach of the globality of the transport modes and of their combinations”, que envolve a articulação entre a ferrovia, a aviação civil, a rodovia e até o transporte marítimo e fluvial – com a rede a definir pela nossa vizinha Espanha e procurando, simultaneamente, não desperdiçar os cofinanciamentos comunitários. Há, no entanto, mais um fator que deve ser levado em conta, o da evolução tecnológica, sob pena de corrermos o risco de, metaforicamente, iniciar a instalação de uma rede de cobre para comunicação telefónica no tempo dos telemóveis.
Nas prioridades da definição da rede ferroviária nacional pontuam objetivos de desenvolvimento, coesão nacional e unidade territorial, facilidade de circulação de pessoas e mercadorias e a ligação das empresas ao centro europeu, em suma, objetivos estratégicos e geopolíticos. Está em causa a coerência nacional e o desenvolvimento do interior, enquanto país que deve ter as suas ligações internacionais priorizadas de acordo com a via mais rápida de acesso ao centro europeu e, a nível nacional, priorizadas segundo os seus eixos principais de coesão nacional, de forma que nenhuma cidade portuguesa tenha ligações ferroviárias mais rápidas com cidades estrangeiras vizinhas do que com uma cidade nacional.
2 Em termos de ferrovia, é essencial a distinção entre transporte de mercadorias e de passageiros porque há mercadorias, especialmente as pesadas, incluindo as matérias-primas, que não podem ser transportadas por via aérea ou rodoviária. A ferrovia tem vantagem incontestada no acesso deste tipo de mercadorias aos centros peninsular e europeu, porque simplesmente não há outra alternativa economicamente viável. Neste caso, a ferrovia é incontornável, devendo constituir a prioridade das nossas ligações internacionais, especialmente a partir do porto de Sines, que é nosso único porto de águas profundas e “o principal porto na fachada ibero-atlântica, cujas características geo-físicas têm contribuído para a sua consolidação como ativo estratégico nacional, sendo, por um lado, a principal porta de abastecimento energético do país (petróleo e derivados, carvão e gás natural) e, por outro, posiciona-se já como um importante porto de carga geral/contentorizada com elevado potencial de crescimento para ser uma referência ibérica, europeia e mundial”.
A principal prioridade a nível ferroviário deverá ir para o setor onde a ferrovia é insubstituível – o transporte de mercadorias – e, neste âmbito, as provenientes do Atlântico para a Europa. O escoamento dessas mercadorias para a Europa a partir de Sines – à maior velocidade possível que seja economicamente viável – deve ser o critério definidor do traçado prioritário, a fim de se poder concretizar o potencial de crescimento desse porto como um dos principais portos europeus, constituindo-se como um polo de desenvolvimento com efeitos sensíveis no PIB e exportações portuguesas.
3 Já a estratégia para o transporte de passageiros parece mais difícil de equacionar, devido às diferentes velocidades envolvidas. Existem, no entanto, alguns importantes dados novos que permitem apontar em determinada direção.
A inviabilidade económica, e até social, da tão falada “alta velocidade ferroviária” (TGV) tem sido reconhecida no país europeu que nela mais investiu – 50 mil milhões de euros – e que dispõe da mais extensa rede de TGV da Europa, só ultrapassada a nível mundial pela China: a nossa vizinha Espanha (com 3.402 km, seguida pela França com 2.800 km). O estudo “Contabilidad Financiera y Social de la Alta Velocidad en España”, realizado por Ofelia Betancor y Gerard Llobet, conclui que “nenhuma rede espanhola de alta velocidade será capaz de amortizar os custos iniciais de investimento, mesmo levando em conta a existência de determinados benefícios sociais”, e só algumas das linhas instaladas chegarão sequer a cobrir os custos de funcionamento. Em Portugal, o Tribunal de Contas concluiu que os 11,6 mil milhões de euros que se pretendia investir nas linhas de alta velocidade portuguesas (Faro-Lisboa-Porto-Braga, rumo a Vigo) “não apresentavam viabilidade financeira” e que “o eixo Lisboa-Madrid, o primeiro que se previa vir a ser implementado, também seria financeiramente inviável”.
Em termos de inviabilidade social, recordemos que o referido estudo espanhol concluiu que “o perfil do usuário do comboio de alta velocidade costuma ser o de um viajante de classe alta/média que se desloca por motivos de trabalho, distinto do perfil dos contribuintes que vão acabar por ter de o financiar”. Ou seja, a generalidade dos contribuintes será obrigada a financiar um transporte que praticamente só será utilizado pela classe média/alta.
Isto significa que o TGV não conseguirá competir com a aviação civil no transporte de passageiros de longa distância. A única vertente onde o TGV tem vantagem sobre o avião é a ambiental, mas mesmo essa não é sustentável no médio/longo prazo. Efetivamente, a Comissão Europeia, na sua Sustainable and Smart Mobility Strategy – 2020, prevê que um “zero-emission large aircraft will be market-ready” em 2035. As implicações desta previsão europeia são devastadoras para a alta velocidade ferroviária e em especial, no nosso caso, para o corredor Lisboa-Madrid, que ficaria deserto de passageiros: o maior incentivo para se pagar mais num percurso mais lento do que o proporcionado pelo avião seria o ambiental e este irá desaparecer em torno de 2035. A entrada em serviço de um grande avião de passageiros sem emissões de carbono tornará simplesmente obsoleta a ideia de transporte ferroviário de passageiros a longa distância.
Há ainda outros fatores que levam a que, a partir da terceira década deste século, se reduzam drasticamente as potencialidades da ferrovia de passageiros, também nas distâncias médias: os automóveis serão elétricos e com pilotos automáticos que evitam o cansaço da condução, dispondo das características ideais para percursos de algumas horas. Na realidade, os Portugueses têm uma preferência pelos automóveis e a tendência não é no sentido de diminuir: o próprio Programa Nacional de Investimentos 2030 reconhece que “o peso do automóvel tem crescido e o peso do modo pedonal, comboio e transporte público rodoviário, tem descido”.
Em termos de transporte de passageiros, a ferrovia continuará, no entanto, a mostrar-se vantajosa nos transportes públicos de massa para circulação dentro dos grandes centros urbanos, devido à sua característica única de poder transportar cerca de uma centena e meia de passageiros em pé por carruagem, sem constrangimentos de tráfico.
4 A diferença entre a procura do transporte ferroviário de mercadorias e de passageiros não é nova e reflete-se claramente nos gráficos seguintes, incluídos no Programa Nacional de Investimentos 2030 (Anexo 3, Diagnósticos Setoriais), que analisam a evolução da quota modal para ambas as categorias de transportes. Entre 2005 e 2016 registou-se um aumento da quota modal ferroviária para mercadorias de 9,2% para 14,5%, (+5,3%) enquanto a quota modal para passageiros subiu apenas de 4% para 4,2% (+0,2%), em igual período.
5 As características portuguesas apontam para a necessidade de se apostar em linhas ferroviárias de alta prestação (mistas: passageiros + mercadorias), e não de alta velocidade (reservadas a passageiros), numa rede assente sobre dois eixos ferroviários principais distintos, consoante se trate de transporte de mercadorias ou de passageiros.
No primeiro caso – mercadorias – um eixo ocidente-oriente, permitindo o transporte de mercadorias para o centro europeu no trajeto mais curto possível que resultar das negociações com Espanha e à máxima velocidade economicamente viável. A preferência nacional aponta para dois sub-eixos distintos de escoamento, um passando pelo Norte peninsular rumo ao centro da Europa (por Vilar Formoso) e outro dirigido à capital espanhola (por Elvas), partindo ambos de Sines, a cuja linha deveriam convergir as ligações de mercadorias nacionais.
No caso do transporte de passageiros a distâncias médias/longas, a ferrovia não deve ser prioritária, devido às mencionadas inovações tecnológicas. A construção da ligação ferroviária em alta velocidade Lisboa-Madrid ficará completamente obsoleta – financeira, social e ambientalmente – em 2035, quando entrar no mercado de transportes o referido “grande avião sem emissões de carbono” previsto pela Comissão Europeia. A entrada em funções deste avião porá, inclusivamente, em causa uma eventual linha ferroviária de alta velocidade Lisboa-Porto: o “zero-emission large aircraft” preenche o objetivo anunciado pela Comissão para 2030: “scheduled collective travel for journeys under 500 km should be carbon neutral”.
Esta inovação tecnológica justifica a estratégia ferroviária prudente delineada no Programa Nacional de Investimentos 2030 (PNI 2030): elaboração faseada da nova linha Lisboa-Porto, começando pela construção em bitola ibérica e articulada com a rede convencional para receber comboios com patamares de velocidade entre os 220 e os 250km/hora, embora as travessas em que assentam os carris sejam polivalentes, isto é, preparadas para a futura migração da linha para bitola europeia.
Recorde-se que a diferença temporal entre percorrer os cerca de 300 km de distância entre Lisboa e Porto a 250 km/h (limite de velocidade da linha convencional) ou a 300 km/h (em linha de alta velocidade) são 12 minutos, não compensando o investimento na criação de uma linha de alta velocidade (que apenas está homologada em bitola europeia) para esse trajeto.
A ideia de se criar um “Eixo Ferroviário Atlântico Peninsular” ligando o Algarve à Galiza e ao centro europeu pelo Norte de Espanha poderá justificar a migração para bitola europeia, mas não a alta velocidade, pelas mesmas razões apontadas no caso do percurso Lisboa-Madrid.
6 Em termos de comodalidade, pode concluir-se que o avião sem pegada de carbono, previsto para entrar em funcionamento em 2035, conjugado com o investimento nacional já efetuado em autoestradas e o predomínio crescente de automóveis e camiões elétricos autodirigidos, tornará obsoleto o transporte de passageiros em distâncias longas e médias por ferrovia dentro de cerca de 15 anos, caso se concretizem as previsões da Comissão Europeia.
7 Em suma, as inovações tecnológicas previstas para as próximas décadas apontam para que:
- No transporte de mercadorias, a ferrovia poderá contribuir significativamente para a criação de um grande polo de desenvolvimento, a nível europeu e mundial, em Sines, se conseguirmos criar condições de escoamento de mercadorias em linhas ferroviárias de alta prestação – não de alta velocidade, que são exclusivas para passageiros – para o centro europeu, via Norte, por Vilar Formoso, e para o centro peninsular, via Elvas.
- O transporte de mercadorias deve constituir o critério fundamental para o desenho da rede ferroviária interna, que necessitará ser modernizada, totalmente sinalizada, eletrificada e equipada com novo material circulante, utilizando-se a rede já existente e evitando investir em novas linhas, exceto onde faltarem ligações entre capitais de distrito.
- No decurso das próximas décadas, a ferrovia tornar-se-á progressivamente mais desinteressante para o transporte de passageiros a distâncias médias e longas devido à concorrência do avião sem emissões de carbono, previsto pela Comissão Europeia para entrar em funcionamento em 2035, e do automóvel/camião elétricos e autodirigidos, não se encontrando fundamentação, económica ou social, para a construção de linhas de alta velocidade Lisboa-Madrid ou até Lisboa-Porto que sejam exclusivas para trânsito de passageiros. A construção de uma nova linha Lisboa-Porto justifica-se apenas no caso de ser integrada no objetivo geopolítico de valorização do Eixo Peninsular Atlântico, devendo, neste caso, permitir a circulação de mercadorias e estender-se do Algarve à Galiza, para além de ser cofinanciada pela União Europeia. O transporte ferroviário de passageiros continuará a justificar-se amplamente apenas na vertente de transporte público a nível urbano e suburbano.
Sem que se tenha construído qualquer obra, o projeto de alta velocidade português, orçado inicialmente em 11,6 mil milhões de euros e do qual apenas iriam beneficiar “viajantes de classe alta/média”, arca já com cerca de 200 milhões de euros de prejuízo, a ser pago por todos os contribuintes. É tempo de olhar com bom senso e sentido de responsabilidade a integração da alta velocidade na rede ferroviária nacional, sem preconceitos contra ou a favor, antes tendo em vista exclusivamente a contribuição que esta infraestrutura poderá trazer para o progresso e desenvolvimento geoeconómico e geopolítico nacionais.
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