Heinz Wismann, diretor de estudos emérito da École des Hautes Études em Sciences Sociales de Paris, filósofo e filólogo, acaba de editar um novo livro – “Lire entre lignes. Sur les traces de l’esprit européen”. A sua afirmação de que “A Europa é um gesto, não é genética”, serve como ponto de partida para este texto.

Há a Europa física, a Europa geopolítica, a Europa mitológica, a Europa cultural, a Europa económica, a Europa social. E sobre estas classificações, nunca existiu consenso, são campos abertos ao debate.

No contexto europeu, existe a União Europeia, que é parte da Europa, mas não, integralmente, a Europa, apesar dos seus sucessivos alargamentos, desde a sua fundação, nas três comunidades dos Tratados de Paris (1951) e de Roma (1957), que originaram a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (Paris) e a Comunidade Económica Europeia e a Comunidade Europeia da Energia Atómica – Euratom (Roma). O modelo institucional da União Europeia – nas suas instituições essenciais – já se encontra desenhado em 1951: um órgão executivo, uma assembleia parlamentar, um conselho de ministros, um tribunal de justiça. Dos seis membros iniciais das três comunidades até aos vinte e sete membros atuais, o caminho percorrido foi um conjunto de gestos, nenhuma genética prévia organizou este espaço comum.

Quando se olha para os sucessivos desenhos históricos das linhas que criam e destroem comunidades políticas – essas linhas a que chamamos fronteiras, verifica-se que pouco há de genético, no seu desenho, redesenho, e sucessivas modificações causadas por aumentos populacionais, alterações climáticas, migrações, guerras, doenças ou causas menos visíveis e de natureza mais incremental.

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Se, por um lado, é inegável a importância do fator climático e da localização geográfica, por outro, estes não explicam o essencial do percurso humano. Durante milénios, houve comunidades nómadas a percorrer caminhos sazonais e outras que se sedentarizaram, em torno de cursos de água e terras férteis. As diferentes geografias foram determinantes para os movimentos pendulares de comunidades nómadas ou para a escolha dos lugares das cidades.

Todavia, tanto os graus de sofisticação como de barbárie de diferentes momentos da história humana, não são, facilmente, associáveis à geografia ou a exercícios genéticos. Os gestos que, sucessivamente, têm promovido o curso da História, ocorrem pelas mais diversas razões de ordem pessoal ou social. Guerras que surgem do antagonismo entre irmãos. Paz decorrente de casamentos e alianças. Divisões entre reinos por causa de diferenças ou conversões religiosas. Criação de excelência artística como afirmação de Poder. Organizações administrativas derivadas de hierarquias sociais. Enfim, tudo exemplos de gestos que fazem parte do quadro explicativo de diferentes devires históricos, na caminhada complexa que nos faz aportar ao Presente.

Apesar da afirmação ser uma simplificação, balançámos e balançamos, desde o fim da II Guerra Mundial, em 1945, entre dois discursos. Um, proferido por Winston Churchill. Outro, por Charles de Gaulle.

Winston Churchill, em 1946, na Universidade de Zurique: “Há um remédio que (…) em poucos anos tornaria toda a Europa (…) livre e (…) feliz. Trata-se de recriar a família europeia, ou a maior parte dela, e de a dotar de uma estrutura que lhe permita viver em paz, em segurança e em liberdade. Temos de construir uma espécie de Estados Unidos da Europa”.

Charles de Gaulle, em 1959, na Universidade de Estrasburgo: “Sim, é a Europa, do Atlântico aos Urais, é a Europa, toda a Europa, que vai decidir o destino do mundo!”.

Churchill e o Reino Unido, olhavam-se (olham-se?), numa relação privilegiada com os Estados Unidos, e o apelo à criação dos Estados Unidos da Europa tem óbvias similitudes com o modelo federal americano. De Gaulle e a França, olhavam-se (olham-se?) como líderes de uma Europa autónoma em relação aos Estados Unidos, criando o seu próprio caminho.

Estes dois gestos não são antagónicos, têm-se revelado complementares, no desenrolar da construção da União Europeia, na qual, a maior parte dos cidadãos dos países membros se revêm – o Eurobarómetro do Parlamento Europeu da Primavera de 2024 permite detetar que quase três quartos dos cidadãos da UE (73%) afirmam que as ações da mesma têm um impacto na sua vida quotidiana. Uma grande maioria concorda que o seu país, em geral, beneficia com a adesão à UE (71%).

Todavia, a construção europeia enfrenta desafios maiores, de que a próxima eleição para o Parlamento Europeu, em Junho, é um marco. Neste momento, é quase certo que os partidos populistas, nacionalistas e de extrema direita, vão ter um aumento da sua presença no Parlamento Europeu e, por essa via, influenciar os caminhos da União. Entretanto, talvez nunca como este ano, as campanhas eleitorais para o Parlamento Europeu funcionam como referendos aos governos nacionais e à afirmação do poder populista e extremista em cada um dos países membros da União – eleições europeias com forte pendor nacional.

As figuras de proa nas candidaturas de muitos dos partidos, em diversos países, foram escolhidas não pela sua experiência política, moderação ou trabalho feito, mas antes pelo seu mediatismo, e/ou imoderação, sem necessária conexão com provas dadas. A escolha de candidatos demonstra, muitas vezes, a vitória das aparências sobre a consistência e da demagogia sobre o idealismo.

Curiosamente, apesar do reconhecimento por governantes e académicos dos perigos da infeção viral que hoje alastra através das redes sociais, políticos moderados procuram usar a arma da imoderação para combater a mesma. Estranhamente, esquece-se que, mesmo na sociedade digital, é possível encontrar diferenças entre os meios e os fins, e reduzem-se as mensagens aos meios, perdendo-se, no espaço etéreo, os fins.

Que futuro nos podem trazer as personalidades que vão ser eleitas em Junho? Qual a sua consistência? O seu exemplo de vida? A sua capacidade demonstrada? Quais as suas propostas?

Não interessa, muitas vezes, nem a quem escolheu os candidatos, nem aos eleitores europeus, responder a estas questões. Parece interessar mais saber quantos seguidores se tem no Instagram, no Tik Tok, Facebook, X, e exposição à comunicação social.

Não há nenhum fatalismo genético, nas escolhas agora feitas dos candidatos nem nas escolhas dos eleitores.

De facto, o gesto – a afirmação da vontade — seria contrariar a devastação dos corpos e dos espíritos pela superficialidade, intoxicação da verdade, manipulação, a que estamos submetidos pelo universo internet.

Mas duvida-se dessa possibilidade, quando a Presidente da Comissão Europeia prepara a abertura aos partidos populistas pós-eleições europeias de Junho, ou os governos nacionais de diferentes países da União se dividem sobre a guerra na Ucrânia. Quando, em geral, os eleitores são mais permeáveis ao mediatismo dos candidatos que às suas propostas.

Políticos experientes, dividem-se entre os meios e os fins. A maior parte, acreditando que os fins justificam os meios, mas perdendo-se, na justificação antes de qualquer resultado.

Estamos, na Europa e no mundo, entre a consolidação de caminhos comuns e a derivação para outras geografias físicas e humanas. Entre a consolidação de uma União Europeia e a fragmentação nacionalista. E se é verdade que as diferenças no quadro europeu são, também, uma riqueza na sua construção, por outro, nas sombras, uma feroz luta de interesses e de dominação ocorre entre as grandes potências políticas e económicas.

Agora, de forma muito evidente, as escolhas que levam ao desenho futuro dos modelos sociais, fazem-se entre o exercício musculado do poder e a liberdade de expressão, tendo por base a intoxicação comunicacional como veículo de instrumentalização ou, alternativamente, a estatuição de formas verídicas de comunicar que, pela maioria, sejam reconhecidas como legítimas. Saber quais destes parâmetros vão assumir a preponderância é elemento essencial da arquitetura das sociedades que nos esperam.

No modo de resolução desta equação, decide-se o nosso futuro comum.

Não há nenhuma genética, nenhuma matemática, que resolva o problema – trata-se de saber quais os gestos, que pela nossa vontade, queremos desenhar.

O caminho é novo, podemos enfrentá-lo de forma criativa ou fecharmo-nos na aparente segurança de fórmulas conhecidas.

No começo do segundo quartel do século XXI, abrir os espíritos, abrir os braços, fazer a paz ou antes, fechar o diálogo, serrar os punhos, preparar a guerra, são critérios e escolhas nas quais só por desistência podemos deixar as respostas, exclusivamente, nas mãos de outros.

Também nós, cada um de nós, procurando estar esclarecidos, somos voz, somos parte, somos gesto.