Para falar da forma como se olha para a eutanásia e para o suicídio assistido em Portugal, talvez seja necessário falar sobre a forma como a Igreja Católica olha para o suicídio. Todo o bom ateu sabe que para o bom católico a única entidade com o poder de decidir sobre a morte humana é Deus. Logo, que a própria pessoa ou um médico autorizado o possa fazer é considerado um pecado.

Shakespeare imortalizou as palavras “ser ou não ser: eis a questão”. É uma pergunta perpétua da existência humana e que deve ser respondida pelo próprio e por mais ninguém. A verdade é que não podemos impedir ninguém de tirar a sua própria vida. Querer morrer é um desejo que tão depressa pode ser considerado contranatura como o mais natural possível. Combatemos contra a morte todos os dias, quase sem nos apercebermos e sem pensar. Desviamo-nos dos carros, respiramos mais profundamente se nos faltar o ar, não engolimos pedaços de comida gigantes que nos possam fazer sufocar.

O Parecer do Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médica sobre os projectos de lei de suicídio assistido e da eutanásia, emitido em 2018, é, no mínimo, estranho, e rejeita por completo a eutanásia e o suicídio assistido na prática médica. Ora, citando o Parecer, e segundo a Lei de Bases dos Cuidados Paliativos (Lei N.º 52/2012) “os cuidados paliativos devem respeitar a autonomia, a vontade, a individualidade, a dignidade da pessoa e a inviolabilidade da vida humana”. A lei pode, de facto, ter várias interpretações, mas se a vida humana é inviolável não será uma violação obrigar um Homem a viver, se este não o deseja? Neste mesmo Parecer, a Ordem dos Médicos refere, e cito, que deve “assumir uma atitude de tolerância em relação à diversidade de opiniões, sejam elas religiosas, espirituais, políticas ou outras”. A verdade é que a Ordem dos Médicos Portugueses não aceita com tolerância a vontade de um Homem que deseje não deixar nas mãos de Deus a hora da sua morte. É falso que a legalização da eutanásia promova uma cultura de morte. O que é na verdade uma cultura de morte? Eu imagino uma espécie de manifestação onde se erguem cartazes onde se podem ler slogans como “Não matem os nossos avós!” ou “Não matem os bebés com os vossos preservativos imorais!”.

Legalizar a morte medicamente assistida apenas em circunstâncias muito específicas e estudadas (e volto a escrever muito específicas e estudadas) não é o mesmo que promover a morte de todos os idosos e de todas as pessoas com doenças muito graves ou incuráveis. É apenas permitir que um ser humano, muitas vezes acamado e sem conseguir libertar-se da sua cama no hospital, possa decidir a hora em que deseja morrer, salvaguardando todas as suas plenas capacidades de decisão, e avaliando que a pessoa está consciente da sua plena vontade de morrer. Os “inimigos da eutanásia” querem, à boa maneira populista, tentar fazer-nos acreditar que a eutanásia é o mesmo que querer “matar os velhinhos” só porque estão velhinhos, passe a redundância. Mas não é. A eutanásia pode perfeitamente coexistir com cuidados paliativos até ao fim da vida, são apenas duas formas distintas de olhar para uma situação. Mas a forma como se olha para a situação devia depender do olhar de cada ser humano e não do olhar de uma lei e de um Estado que parece que age por encomenda às vontades de um Deus todo soberano que se quer que seja o único com poder de “encomendar a morte”. Não consigo imaginar situação mais lamentável e pouco digna do que um paciente que deseje morrer porque já não tem qualquer qualidade de vida e que do outro lado exista um sistema, uma lei, um médico que não o permita fazer. E não, os médicos não devem ser todos obrigados a praticar a eutanásia (é para isso que serve a objeção de consciência).

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Há pouco escrevi que a eutanásia deve apenas ser realizada em circunstâncias muito específicas e estudadas. Não foi por acaso. A eutanásia é um tema fracturante e que deve ser estudado com cuidado. A eutanásia psiquiátrica é um tema ainda mais fracturante. Em 2010, a Holanda teve 2 casos de eutanásia psiquiátrica, ou seja, relativos a sofrimento psicológico. Em 2023, o número subiu para 138. Será que o sofrimento psicológico aumentou? Provavelmente não, mas a forma como se aborda este sofrimento pode estar a seguir por um caminho problemático. O sofrimento associado à doença mental, à depressão, ao luto ou a outras questões do foro psicológico não pode ser considerado igual ao sofrimento causado por exemplo por uma doença física incurável como um cancro terminal. Atualmente, sabe-se que a dor psicológica é uma das causas mais consistentes do suicídio. Num estudo onde acompanhou 50 pacientes deprimidos, Aaron Beck, pai da Terapia Cognitivo-Comportamental e criador da Escala de Depressão de Beck, (1963) concluiu que os pensamentos sobre o suicídio surgiam quando os indivíduos percepcionavam a sua situação como impossível de solucionar.

Na doença mental, existe muitas vezes uma percepção sobre os acontecimentos, sobre os outros, sobre o mundo e sobre nós próprios que não corresponde à realidade. É por isso que a eutanásia psiquiátrica é um tema que pode tornar-se problemático. Para ser enquadrável na morte medicamente assistida, o paciente deverá ter uma percepção realista, clara e consciente dos acontecimentos, mas a depressão nem sempre permite ao paciente ter essa plena consciência, uma vez que pode “escurecer as lentes” com que o paciente olha para si e para o mundo.

Zoraya tinha 29 anos e recorreu à eutanásia psiquiátrica para pôr termo à vida. Zoraya revela ter tentado tudo, desde medicação a terapia electroconvulsiva. Zoraya estaria em sofrimento inegavelmente, mas tinha apenas 29 anos e o Estado do seu país permitiu que médicos a ajudassem a consumar a sua morte. Nunca saberemos o que teria acontecido se Zoraya tivesse encontrado um psicólogo, um psiquiatra, um psicanalista, um psicoterapeuta que tivesse conseguido diminuir a sua dor psicológica. Segundo o psiquiatra norte americano Beck, a desesperança é um factor precursor fundamental para a intenção suicida em pacientes deprimidos, uma vez que o paciente vê o suicídio como uma oportunidade de fuga para os problemas que considera impossíveis de resolver. Muitas vezes o sofrimento do paciente deprimido, borderline ou bipolar pode ser parcialmente ou totalmente “resolvido”, ou digamos, ressignificado, reconstruído.

A saúde mental não pode ser metida no mesmo “saco” de uma metástase que não pode ser retirada de maneira nenhuma, de um coração que não pode ser substituído, de uns pulmões que já não conseguem respirar. Que um paciente deprimido retire a sua vida sozinho não posso questionar nem me cabe a mim nem a Deus nem a ninguém. Mas como psicóloga e como ser humano lamento todas as vidas terminadas voluntariamente por sofrimento psicológico (e mais lamento se os cuidados de apoio psicológico não chegarem a estas pessoas), mas questiono também os limites da eutanásia psiquiátrica e o seu significado sobre a forma como olhamos para a saúde mental. Se fosse oncologista, duvido que questionasse os limites da eutanásia não psiquiátrica, porque não se trata da minha profissão, mas sim da nossa percepção do mundo e de nós mesmos. A percepção de uma pessoa deprimida sobre a sua vontade de morrer não pode ser equiparada à percepção de uma pessoa com um cancro terminal que também deseje morrer. A percepção de uma pessoa deprimida é legítima e real para aquela pessoa naquele momento, mas que deve ser compreendida e enquadrada no quadro da exacerbação de pensamentos de autodesvolarização, culpa, inutilidade, pessimismo e vazio da depressão.