Numa pandemia, a infodemia e desinformação podem prejudicar a saúde pública e ser mesmo responsáveis por mortes. Estão a circular informações imprecisas e falsas sobre todos os aspectos da Covid-19: como o vírus SARS-CoV-2 se originou, o diagnóstico através de PCR, o tratamento, mecanismos de propagação e, mais recentemente, as vacinas. A desinformação circula sem obstáculos, multiplicada exponencialmente pelas redes sociais, alterando e influenciando o comportamento das pessoas, podendo contribuir para a disseminação da Covid-19 e para a hesitação ou mesmo recusa de vacinas. A única maneira de combater esta desinformação é recorrer a fontes de confiança baseadas na evidência científica.

Numa resposta anterior com base na evidência científica disponível a um artigo, de Tiago Mendes, fui objecto nos comentários do Observador e nas redes sociais de uma série de insultos: charlatão, ignorante, vendido, assassino, não cumpridor do juramento de Hipócrates, que lucro com os testes PCR, que irei ser julgado no “Nuremberga 2” por crimes contra a humanidade, etc, etc. Apesar disso, e sabendo novamente que serei insultado, o artigo de opinião de Miguel Menezes e Tiago Mendes (MM-TM), com o título “Da fraude científica à ruína dos povos: o mito da transmissão por assintomáticos”, publicado a 9 de Maio no Observador, deve ter uma resposta. Está escrito de tal maneira, que muitos acharão convincente devido à citação de artigos científicos. No entanto, não é mais do que uma série de más interpretações ou deturpações desses trabalhos, com incorreções graves, distorções, erros grosseiros aliados a pura desinformação.

A evidência científica actual mostra que os assintomáticos podem ter um papel menor na disseminação da doença quando comparados com os sintomáticos. No entanto, indivíduos pré-sintomáticos (indistinguíveis dos assintomáticos) podem disseminar o vírus 24 a 72 horas antes do início dos sintomas e podem ser importantes para a dinâmica da Covid-19 numa comunidade.

Vamos então ver os vários pontos do artigo de MM-TM que começa com a seguinte pergunta:

1. Como surgiu a crença de que os assintomáticos são agentes de transmissão?

MM-TM analisam as declarações da Dra. Maria van Kerkhove, da OMS, numa conferência de imprensa em 8 de Junho de 2020. Basicamente, o que sucedeu nessa altura foi uma insuficiente diferenciação entre assintomáticos, pauci-sintomáticos (sintomas muito ligeiros dificilmente valorizáveis) e pré-sintomáticos. Estes últimos, são aqueles com um teste PCR positivo, sem sintomas aquando da realização do teste, desenvolvendo posteriormente sintomas. Na conferência de imprensa em 9 de junho de 2020 para clarificação do que foi dito, esta diferenciação está bem explicada aos 16m40s. Em resumo, os pauci-sintomáticos e pré-sintomáticos parecem ter grande importância na disseminação da doença.

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No artigo publicado na revista Science sobre os primeiros quatro doentes na Alemanha, também comentado por MM-TM por apresentar alguns erros metodológicos, a conclusão é realçada numa actualização em 2 de Junho onde se lê: “Está estabelecido que indivíduos com sintomas muito ligeiros, tão ligeiros que dificilmente serão reconhecidos como relacionados com a Covid-19 podem infectar outros e mesmo desencadear grandes surtos da doença.”

MM-TM falam novamente sobre o teste PCR. Não sendo um teste perfeito, é o melhor teste disponível no momento, utilizado por muitos como teste de referência. Os falsos positivos existem, mas numa proporção relativamente pequena e não são problemáticos no contexto global da pandemia como já foi discutido anteriormente. Peculiar, é que todos os artigos citados a seguir por MM-TM se baseiam no teste PCR para chegar a conclusões sobre a importância dos assintomáticos e do seu papel na transmissão do SARS-CoV-2. Realça-se que as polémicas mencionadas sobre o primeiro protocolo de PCR publicado por Victor Corman e co-autores em 23 de Janeiro de 2020, não existem no meio científico e médico, ao contrário do que afirmam MM-TM, pois os alegados problemas nunca foram publicados em revistas científicas, apenas difundidos na internet e redes sociais.

2. O que dizem os estudos científicos?

Comentário sobre o estudo Mercedes et al., artigo publicado em 3 de Novembro de 2020 na revista PLOS ONE. O comentário de MM-TM (“Falta de qualidade geral de revisões sistemáticas. Por exemplo, grande heterogeneidade dos estudos”) é erróneo. O artigo (uma revisão sistemática e meta-análise ) não escreve que a qualidade das revisões sistemáticas é má. A conclusão, como se pode ler no resumo do artigo, é a seguinte: “Apesar da grande heterogeneidade dos estudos, a proporção de infeções assintomáticas entre pessoas com Covid-19 parece alta e o potencial de transmissão elevado.” Ou seja, conclui o contrário do que o que MM-TM pretendem demonstrar.

Comentário sobre o estudo He et al. Artigo publicado em 15 de Abril de 2020 na revista Nature Medicine. Também ao contrário do que MM-TM escrevem no comentário, o trabalho não se baseia num modelo matemático, mas sim em testes PCR colhidos em doentes hospitalizados com Covid-19. A conclusão do trabalho é a seguinte: “Estima-se que 44% dos casos secundários foram infectados durante o estádio pré-sintomático”. Mais uma vez, o comentário de MM-TM não tem relação com aquilo que se lê no artigo.

Comentário sobre o estudo Wei et al. Publicado na Morbidity and Mortality Weekly Report em 10 de Abril de 2020. O artigo nem é comentado por MM-TM por ser da China e, por isso, considerado de qualidade duvidosa. É grave esta afirmação, pois o trabalho é realizado e escrito por autores de Singapura. E lê-se no resumo do estudo: “Foram identificados sete surtos onde provavelmente ocorreu transmissão pré-sintomática” e “a transmissão pré-sintomática ocorreu 1-3 dias antes do aparecimento dos sintomas”. E, finalmente, na conclusão: “A evidência da transmissão pré-sintomática realça a importância crítica do distanciamento social e evitar ajuntamentos de pessoas para o controlo da pandemia Covid-19.”

Efeito Moderado na Transmissão segundo MM-TM

Estudo publicado no Official Journal of the Association of Medical Microbiology and Infectious Disease Canada de autores australianos, em Dezembro de 2020. Trata-se de outra revisão sistemática e meta-análise e não de um estudo retrospectivo como escrito por MM-TM. A proporção de casos assintomáticos foi 17%. O risco relativo de transmissão assintomática foi 42% inferior ao risco de transmissão sintomática. Este número é, segundo os autores do trabalho, suficiente para serem tomadas medidas de prevenção.

Efeito Reduzido ou Nulo na Transmissão segundo MM-TM

MM-TM escrevem que “vários estudos (…) concluíram que a transmissão entre assintomáticos era muito reduzida ou até mesmo nula”. Como iremos ver, uma parte dos trabalhos apresentados não chega a essa conclusão.

a) Assim o primeiro trabalho foi publicado na revista Respiratory Medicine, de autores chineses, em Agosto de 2020. O estudo analisa apenas os contactos de um único indivíduo assintomático, que os autores indicam como limitação do estudo. Como tal, não permite tirar conclusões sólidas e generalizáveis sobre a transmissão por assintomáticos. Críticas ao trabalho podem ler-se nesta carta ao editor.

b) Segundo trabalho. É um estudo prospectivo efectuado na China e publicado na revista Annals of Internal Medicine em Dezembro de 2020. É um trabalho que estudou os contactos próximos (3410 indivíduos) de 391 pacientes. A maior possibilidade de transmissão deu-se em casa (1 em cada 10 contactos), sendo infectadas no total 127 pessoas. Os casos mais graves tinham maior probabilidade de transmitir a doença, enquanto que os casos assintomáticos apresentavam uma menor probabilidade de transmissão. A conclusão que os autores tiraram é que é necessário o uso de máscara e a quarentena dos contactos próximos.

c) Terceiro trabalho. Publicado em Dezembro de 2020, na revista JAMA Network Open, de autores dos EUA. É uma revisão sistemática e meta-análise para estudo da transmissão de SARS-CoV-2 em casa e não na comunidade. Uma das conclusões é que a transmissão por casos assintomáticos em casa é pequena. Os autores relembram que existe evidência de transmissão por pré-sintomáticos, existindo o máximo de infecciosidade na altura do aparecimento dos sintomas. Pode ler-se neste artigo do Politifact uma crítica e resumo do estudo que foi muito divulgado nas redes sociais por meios conservadores nos EUA como sendo evidência que os assintomáticos não transmitem a doença, o que não corresponde de todo à realidade.

d) Quarto trabalho. Revisão sistemática efectuada por autores suíços publicada na revista PLOS Medicine em Setembro de 2020. Ao contrário do que escrevem MM-TM, existe, segundo os autores, uma contribuição das infecções pré-sintomáticas e assintomáticas para a transmissão de SARS-CoV-2. E pode ler-se na conclusão do artigo o seguinte: “A maior parte das pessoas infectadas por SARS-CoV-2 não permanece assintomática” e que isto “significa que tem que existir uma combinação de medidas de prevenção, como lavagem de mãos, máscaras, pesquisa de contactos, isolamento e distanciamento social”.

e) Quinto trabalho. É um outro estudo chinês com colaboração britânica, publicado na Nature Communications, em Novembro de 2020, sobre o rastreio do SARS-CoV-2 em quase 10 milhões de habitantes após o confinamento em Wuhan, China. Foram feitos quase 10 milhões de testes PCR, num local onde houve eliminação efectiva do vírus devido a medidas não farmacológicas muito rigorosas. Neste caso de baixa prevalência, deveriam aparecer milhões de falsos positivos que MM-TM dizem que inevitavelmente existem quando se faz um teste PCR. Pois bem, em 10 milhões de testes, foram detectados apenas 300 casos com PCR positivo, considerados assintomáticos e nenhum transmitiu a doença a contactos próximos. Onde estão os falsos positivos que MM-TM tanto apregoam? Nas redes sociais, este trabalho foi divulgado como sendo a prova final que os assintomáticos não transmitem o vírus. No entanto, as culturas virais que foram efectuadas nesses indivíduos mostraram que o vírus já não era viável e 2/3 estiveram previamente infectados como revelaram os estudos com anticorpos. A hipótese mais provável é que mantiveram a positividade PCR desde a altura em que foram infectados durante o surto em Wuhan. O autor principal deste estudo também esclareceu que a conclusão sobre os assintomáticos não transmitirem a doença era abusiva e uma má interpretação do trabalho. E acessoriamente, acrescento, demonstra também que o número de falsos positivos num teste PCR é mínimo.

3. O que dizem as agências de saúde?

Aqui neste ponto, MM-TM tiraram umas frases fora do contexto e deturpam a opinião oficial das agências de saúde, a OMS e ECDC.

No caso da OMS, dizem MM-TM, que a posição oficial seria a seguinte: “Com base no que sabemos atualmente, a transmissão de Covid-19 ocorre principalmente em pessoas quando elas apresentam sintomas (…)”, com base nesta ligação. Mas no documento lê-se também o seguinte: “A evidência sugere que o RNA do SARS-CoV-2 pode ser detectado 1 a 3 dias antes do aparecimento de sintomas.” Os peritos da OMS afirmam: “Os indivíduos infectados com SARS-CoV-2 sem sintomas podem infectar outros”, seguindo-se vários parágrafos a desenvolver este tema, com numerosas referências científicas apoiando a afirmação. Nos pontos-chave do documento voltam a reforçar: “A transmissão ocorre primariamente com indivíduos com sintomas e pode ocorrer antes de desenvolver sintomas. Aqueles que nunca desenvolveram sintomas podem também transmitir o vírus, mas ainda não é clara a dimensão desta ocorrência.” Ou seja, MM-TM escolheram um parágrafo como sendo a conclusão final e posição da OMS, quando na realidade não o é.

A posição do ECDC é semelhante à da OMS e pode ser lida aqui: “Sabemos que o vírus é transmitido quando um indivíduo apresenta sintomas como tosse. Uma pessoa que está infectada pode também transmitir o vírus até dois dias antes de apresentar sintomas; não é clara a influência destas infecções assintomáticas para a transmissão global.”

Em resumo, a evidência científica disponível actualmente parece demonstrar que pessoas assintomáticas e pré-sintomáticas podem infectar outras. No entanto, aferir o contributo destes assintomáticos na transmissão global apresenta muitas dificuldades metodológicas.

Recentemente, e não comentados por MM-TM, apareceram mais alguns artigos a suportar a importância dos assintomáticos na disseminação da Covid-19. Um dos artigos mais recentes e interessantes foi publicado no The Lancet Regional Health, no dia 1 de Maio de 2021. É um trabalho efectuado no Luxemburgo, onde foi feito um rastreio em massa (Maio a Setembro de 2020 coincidente com a segunda vaga no país) de 49% da população residente e 29% da população transfronteiriça, utilizando o teste PCR (dois genes alvo; sensibilidade e especificidade de 100%). Verificaram que os indivíduos assintomáticos infectaram, em média, o mesmo número de indivíduos que os indivíduos sintomáticos. Concluem que os indivíduos assintomáticos, incluindo os pré-sintomáticos, são um factor importante no início e sustentação de cadeias de infecção.

E finalmente, outro estudo publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, neste mês de Maio de 2021, com base num rastreio efectuado na saliva (72.500 amostras no Outono de 2020, analisadas por PCR) na Universidade de Boulder Colorado, EUA. Curiosamente todos os 1405 indivíduos positivos para o SARS-CoV-2 eram assintomáticos ou pré-sintomáticos, mas com uma distribuição da carga viral semelhantes a indivíduos sintomáticos. Observaram também, que apenas 2% dos indivíduos eram responsáveis por 90% dos vírus a circular na comunidade e levar à sua disseminação. Realçam a importância de efectuar rastreios para encontrar estes indivíduos assintomáticos e pré-sintomáticos na população geral, pois parecem ser importantes na disseminação da Covid-19.

4. Conclusão

Ao contrário do que afirmam MM-TM não foi um único caso na Alemanha (mencionado nos primeiros parágrafos do artigo) que levou a colocar a hipótese da transmissão do vírus SARS-CoV-2 por indivíduos assintomáticos. Tal não está correcto, como se vê nos estudos acima mencionados e a maior parte deles não dependendo de modelos matemáticos. Como foi também demonstrado ao longo deste texto, a maior parte dos estudos citados por MM-TM não foram bem interpretados, alguns deles apresentando conclusões opostas às advogadas por MM-TM. Para mais, MM-TM escrevem que “os assintomáticos nunca foram considerados decisivos em epidemias ou pandemias” o que não corresponde à verdade. Para mais, transmissão por assintomáticos ou pré-sintomáticos parece existir também na gripe.

Assim, conclui-se, ao contrário de MM-TM, que os assintomáticos (incluindo os pré-sintomáticos) podem ter um papel na transmissão do SARS-CoV-2, que as medidas tomadas por quase todos os países não foram exageradas, os pressupostos não foram errados e o escrutínio científico foi muito acima do que seria de esperar com numerosos trabalhos a serem publicados. Sem estas medidas haveria o risco da situação da pandemia da Covid-19, o número de mortes e a crise económica serem ainda mais devastadores.