Em 1930, no tempo dos sonhos a preto e branco, o pequeníssimo Uruguai derrota o inimigo figadal, a Argentina, na primeira final de um Mundial. 20 anos depois, nos escombros de uma guerra de proporções titânicas, o mesmo país sul-americano haveria de levar ao desespero o gigante brasileiro: 2-1, o resultado que ficou para a eternidade como Maracanazo.

Já em Portugal, Lisboa, um povo de gente humilde e pobre levou às lágrimas de comoção o seu presidente ao erguer, do seu sangue e suor, uma nova Luz para a cidade. Envolto em mistério, pouco menos de uma década volvida, um jovem português de Moçambique chegava à costa lisboeta para romper o cinzento de um país que já não sonhava para o encher de utopias vermelhas e brancas.

Um dia, algures na transição para a cor, um holandês aterrou em Barcelona e, em jeito de desafio ao poder central, deu ao seu filho um proibido nome catalão, o mote das periferias contra o poder central. Em Inglaterra, marinheiros e operários puderam crer grandiosamente numa vida melhor, carregando com as suas vozes jogadores de qualidade técnica duvidosa, mas liderados por timoneiros revolucionários e corajosos.

Depois, um pequenino argentino deitou por terra 11 ingleses e ganhou uma guerra sem derramar uma gota de sangue; comandou uma revolução do Sul contra o Norte de Itália; e ensinou os fortes a temerem e a admirarem os fracos. Noutras paragens, aquele holandês que anteriormente desafiara um ditador voltou às margens da Catalunha para nos ensinar que vale a pena lutar pelos nossos sonhos e morrer pelas nossas ideias.

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E tantas mais recordações, tantas mais imagens saíram desta enorme indústria de sonhos que é o futebol: uma equipa italiana vingou em campo os seus adeptos esmagados na bancada, uma Croácia ensanguentada sarou feridas num Verão em França, Lisboa fez-se Olissipo em 2004, um jovem inglês filho de Liverpool acendeu os corações dos seus numa noite turca há 16 anos, Paris foi portuguesa durante uma tarde de 2016, e a estes poder-se-iam acrescentar todos os momentos épicos que este desporto, digno de todos os filmes, já nos permitiu viver.

Eusébio, Cruyff, Maradona, Bill Shankly, Brian Clough, Suker, Gerrard, Éder: as suas histórias e façanhas, a sua coragem dentro e fora de campo, a sua virtuosidade ou falta de jeito fazem do futebol, verdadeiramente, uma questão maior que a vida e a morte.

Maior que a vida e a morte? Sim, e meço bem as minhas palavras, porque não há morte que assuste quem sonha, não há vida que satisfaça a alegria de uma vitória, não há nada que se compare à certeza de que o pobre vale tanto quanto o rico; de que a valentia pode suprir a falta de talento; de que até nos podem faltar palavras e armas, mas os pés de uns quantos podem vencer as nossas guerras e curar as nossas dores.

Por tudo isto, o dia 18 de Abril de 2021 marca uma página negra na centenária história da redondinha. Agora, os 12 meninos mais ricos do bairro pegaram na bola e disseram-nos que só poderíamos jogar mediante pagamento. Sentimo-nos defraudados: assim sendo, as lendas que nos contaram são mentira, porque os meninos de pais ricos controlam tudo, não nos deixam sonhar, têm medo de perder connosco e, portanto, cancelam unilateralmente o justo duelo que viveríamos em campo.

Os fundadores da Superliga Europeia cometeram, no entanto, um erro crasso. Como muitos revolucionários ao longo de História, supuseram, erradamente, que poderiam construir tudo de novo sem escutar o passado e que, nesse processo, os adeptos de todo o mundo aceitariam com bonomia esta competição antinatural que nos querem impingir.

Esta taça de elitistas poderá sobreviver praticando um desporto com bola, mas que não mais se poderá chamar futebol. Um dia, o espectador da China aborrecer-se-á e pedirá um jogo sem foras-de-jogo, essa regra chata; ou um golo dado a cada 30 passes seguidos, para aumentar o escasso número de bolas na baliza que oferece o jogo médio; ou pausas para publicidade, para cheerleaders, e para concursos de remates à barra que só bancadas despidas de público verão.

Desligado dos seus adeptos, os mais perdedores dos 15 clubes fundadores não terão mãos para os amparar nos momentos mais difíceis. Onde andará o fã americano quando o Manchester United ficar em último três anos seguidos? O que farão ao Tottenham e Arsenal os outros 13 clubes, ao observar que os jogos que disputam são os menos rentáveis? Quem socorrerá as feridas de um Real Madrid ou de um Barcelona em crise de resultados, quando estes forem, num dia, Real de Moscovo e Barcelona de Nova Deli e, noutro, Real de Joanesburgo e Barcelona de Manilla?

Sem surpresa, sem capacidade de superação, sem a história do povo que derrota os nobres na base exclusiva do seu mérito, aquele sucedâneo de futebol tornar-se-á um outro desporto, triste, sem arte nem génio, desprovido de uma narrativa que eleve os tristes e oprimidos. Não sobreviverá muito tempo e perceberá, tarde de mais, que só o que gera êxtase (e não somente uma alegria medíocre) pode gerar receita.

A Superliga Europeia está condenada a falhar porque ama a nota e não o sonho, e por isso esquece o conto uruguaio no Rio, a história portuguesa em Londres, a cruzada napolitana contra o Norte; olvida-se das lições de dignidade de Cruyff, Shankly, e Clough; e não tem a seu lado a loucura dos gregos, nem a raiva de Gerrard, nem a insensatez vitoriosa de Éder.

Querem roubar a bola ao povo? Já perderam. Querem tirar o brilho dos olhos do menino? Já perderam. Querem remover a emoção e o delírio? Já perderam. Não há impressora de cifrões que possa vencer as noites em branco de uma criança, as lágrimas de um pai, um golo no último segundo, o grito de uma nação, a liberdade de um povo.

Afinal, esta é a eterna lição do futebol: a fábrica de notas perderá sempre contra a fábrica de sonhos.