A Comissão de Educação e Ciência da Assembleia da República está a realizar um conjunto alargado de audições sobre o Ensino Superior Politécnico, essencialmente para obter resposta a quatro questões suscitadas pelas propostas de alteração legislativa em apreciação na respetiva comissão*:
1 De que forma as alterações legislativas propostas contribuem ou prejudicam o aprofundamento do sistema binário, a coesão territorial e/ou a ligação das instituições de ensino superior ao tecido social e económico? A preservação de um modelo binário é uma vantagem estratégica ou é irrelevante para o ensino superior no seu conjunto a médio e longo prazo? Porquê?
O primeiro comentário que se impõe é questionar o que é feito do modelo binário, ou seja, como se comportam hoje as universidades e politécnicos relativamente à legislação em vigor que supunha objetivos e práticas diferenciadas dos dois subsetores. O verbo está no passado, exatamente porque todos sabemos que o modelo está adulterado praticamente desde o início da existência dos politécnicos, em meados dos anos 80 do século passado, e hoje há inúmeras áreas de sobreposição tendo as universidades entrado em áreas que, em teoria, seriam de natureza politécnica e os politécnicos em áreas de natureza universitária.
Convém recordar que as atividades dos politécnicos se iniciaram com a abertura das Escolas Superiores de Educação, em 1985, e desde logo se manifestaram dúvidas sobre a natureza politécnica dos estudos de ciências da educação e até hoje o debate não esmoreceu, bem pelo contrário.
Não deixa de ser curioso que nos processos eleitorais para as presidências dos politécnicos quase todos(as) os(as) candidatos(as) colocam como prioridade a transformação dos mesmos em universidades. Raramente se questionam os objetivos, as metodologias, o papel da investigação, mas requer-se a transformação em universidades, ficando pendente a questão do modelo binário.
Ora é aqui que se devia centrar o princípio da discussão, o modelo binário é para manter ou para extinguir? E esta não é uma questão académica, é puramente política. E se for para manter, é para aprofundar, em linha com os objetivos iniciais, ou para se continuar a permitir a promiscuidade funcional de todos conhecida?
A coesão territorial e/ou a ligação das instituições de ensino superior ao tecido social e económico nada contendem com o regime binário, mas sim com a rede existente pois em termos práticos universidades e politécnicos desenvolvem hoje estratégias muito semelhantes de ligação aos territórios e aos seus agentes económicos.
A preservação de um modelo binário é uma vantagem estratégica ou é irrelevante para o ensino superior no seu conjunto a médio e longo prazo? O modelo binário foi concebido como um instrumento visando dotar o país de uma vantagem estratégica criando um modelo de ensino superior mais diretamente profissionalizante, essencialmente vocacionado para formações técnicas de primeira linha, sem grandes exigências de investigação e focado, sobretudo, nas aprendizagens práticas diretamente utilizáveis no mercado de trabalho e correspondendo a exigências dos empregadores dos vários setores.
Uma outra característica é a sua distribuição por todo o país com uma forte identidade territorial e promovendo o acesso de estudantes de regiões periféricas sem acesso, até ao início das suas atividades, ao ensino superior de proximidade.
Entretanto passaram cerca de quarenta anos, o país mudou e o mundo também, o enquadramento formativo dos docentes foi profundamente alterado, o doutoramento, que não era um requisito no início, tornou-se obrigatório para a progressão nas carreiras, a investigação idem, paulatinamente foram-se acrescentando exigências que foram aproximando os politécnicos das universidades, de tal forma que há hoje grandes politécnicos em tudo superiores a universidades.
E tudo isto só reforça a interrogação sobre o que é hoje o sistema binário, pelo que nos parece despicienda a interrogação de ser ou não ser estratégico, o que verdadeiramente é estratégico é o que fazem universidades e politécnicos, independentemente dos qualificativos que se atribuem aos cursos que promovem porque ambos fazem coisas muito idênticas, mais dependentes da sua história, das suas estruturas e dos financiamentos que conseguem, do que do subsistema em que estão integrados. Tal como existe, o sistema binário é uma falácia.
2 Que impactos terão as alterações propostas na consolidação de identidades académicas distintas nos dois subsistemas de ensino superior? No cenário de aprovação das alterações legislativas propostas, devem as ofertas de graus académicos e diplomas ser diferenciadas consoante o subsistema? Se tanto as instituições politécnicas como as instituições universitárias organizarem cursos conducentes à atribuição do grau de doutor, devem os doutoramentos ter as mesmas características nos dois subsistemas ou devem constituir uma oferta diferenciada? Em que sentido?
Os impactos dependem do que vier a ser consignado, podem não ter nenhum se apenas se tratar de maquilhar, podem ser profundos caso se vá pelo caminho do aprofundamento do sistema binário e do regresso à matriz inicial, o que se afigura difícil, senão mesmo impossível.
Nunca esteve em causa que os graus académicos sejam diferentes, o que aliás criaria mais problemas do que resolveria. A questão da identidade dos politécnicos, que continua em causa, tem a ver com questões culturais e com atavismos passados de desvalorização do ensino de cariz mais técnico relativamente às universidades. A herança do ensino secundário do Estado Novo transferiu-se para o ensino superior e perdura contra tudo e todos. É isso que explica a síndroma de inferioridade dos politécnicos e do estatuto de segunda que muitos continuam a atribuir-lhe.
Obviamente que em linha com o conceito de sistema binário os doutoramentos têm de ser diferenciados ou, pelo menos, têm de apresentar algumas características que reflitam as instituições em que são realizados. Mas é preciso ser realista e, olhando para a situação atual, verifica-se que grande parte dos mestrados realizados nos politécnicos em nada se distinguem dos realizados nas universidades e isto não é culpa do sistema, decorre da mentalidade dos respetivos órgãos e corpos docentes que mimetizam as universidades, para o bem e para o mal.
3 Quais as vantagens e desvantagens da alteração de designação dos Institutos Politécnicos? Em cenário de aprovação da alteração de nomenclatura, deve a atribuição da designação de Universidades Politécnicas ser automática para todos os Institutos Politécnicos? Deve a nova nomenclatura ser aprovada para uso em território nacional ou exclusivamente para utilização internacional?
A transformação dos institutos politécnicos em universidades politécnicas pode ser mera nomenclatura, mantendo tudo como está, mas há duas vantagens imediatas, acaba-se com uma reivindicação de institutos, autarcas e forças regionais que ambicionam ter uma universidade e internacionalmente torna-se menos esforçada a afirmação da respetiva identidade pois todos sabemos que nem sempre é fácil explicar, quando se está lado a lado em missões, congressos ou projetos, o que faz a universidade e o politécnico que muitas vezes coexistem na mesma cidade e trabalham em projetos conjuntos sem qualquer lógica diferenciadora.
A mudar-se a nomenclatura deve ser para todos pois não está em causa o que vale cada politécnico, mas a designação de cada instituição do respetivo subsistema. As universidades são uma categoria indistinta, independentemente do número de estudantes, dos cursos, dos docentes, da investigação que realizam, das relações internacionais que promovem, da ligação ou não às comunidades em que estão inseridas.
A ser aprovada a nova designação só pode ser para valer nacional e internacionalmente, pois até se afigura ridículo manter o que hoje acontece no exterior com vários politécnicos que já se fazem passar por aquilo que não são legalmente para disfarçarem o seu verdadeiro cariz.
4 Numa reflexão sobre o futuro do ensino superior, depois de uma fase de grande expansão do sistema, em que medida a existência de Universidades e de Universidades Politécnicas implicará (num cenário a 10 anos) modificações na rede das instituições de ensino superior? As alterações propostas suscitam a alteração futura de orgânica das instituições de ensino superior, dos seus recursos humanos ou outras? As alterações propostas suscitam a adaptação ou alteração futuras de outras matérias, como diplomas conexos? Quais?
A dez anos, com universidades politécnicas ou sem elas, com sistema binário ou sem ele, a realidade que se antecipa é de uma diminuição significativa no número de candidatos e de alunos, impossível de colmatar com a reestruturação da rede a não ser que se limitassem as grandes instituições das cidades mais importantes a receber tantos estudantes e se aplicasse um regime drástico de numerus clausus regionais para distribuir “os poucos, pelas muitas instituições”.
Como esta hipótese é política e socialmente inviável, resta uma solução, de resto já em marcha, transformar o ensino superior num produto de exportação e aumentar a quota de estudantes estrangeiros, preenchendo as vagas que os portugueses não ocupam. Há um mercado mundial inesgotável a explorar, mas é urgente que as instituições se preparem e se faça da fileira do ensino superior uma área de negócio assumida sem pruridos e não uma atividade envergonhada como ainda acontece quando alguns apregoam que a educação não pode ser um negócio.
Aliás, esta é uma área onde o ensino privado tem vindo a apostar embora arrostando com as limitações que o Estado sempre gosta de colocar à sua atividade limitando drasticamente as admissões, impedindo o encaixe financeiro para o país de milhares ou milhões de euros que seriam gerados pela vinda massiva de estudantes para as instituições portuguesas.
Infelizmente, o que tem acontecido é que, por um lado, se impede a acreditação de cursos de instituições privadas, medicina é o melhor exemplo, levando a que centenas de estudantes portugueses vão estudar para o estrangeiro investindo o pecúlio das famílias em terra alheia, por outro, impedem-se os estudantes estrangeiros de virem para Portugal ou, pior, autorizam-se esquemas de frequência pagos por todos nós com a justificação de que os cursos estatais têm poucos estudantes e podem ser completados com estrangeiros a pagarem a mesma propina dos nacionais, ainda para cúmulo distorcendo a concorrência.
Naturalmente que as alterações que agora sejam promovidas, caso isso venha a acontecer, pressupõem atualizações profundas na legislação do ensino superior, tanto mais significativas quanto mais amplas forem as reformas a efetuar. No entanto, não se antevê como a Assembleia da República possa promover grandes mudanças nesta matéria, pese embora a necessidade de clarificação da relação do conceito de sistema binário com a sua prática, com todas as implicações que daqui decorrem, desde logo para a acreditação de cursos, cujos critérios são profundamente marcados pela matriz universitária, para o financiamento e para tudo o que distingue os dois subsetores, pois nenhum partido concorreu a eleições com o objetivo anunciado de mudar o sistema binário.
Em síntese, abrir a possibilidade de os politécnicos poderem realizar cursos de doutoramento, desde que tenham as condições para isso parece ser da mais elementar justiça, ficando para definir que condições são essas por similitude com as universidades. Mudar a designação dos politécnicos para Universidades Politécnicas é mera maquilhagem que não prejudica ninguém e dá satisfação a muita gente.
Como costuma acontecer bastas vezes em Portugal, talvez estejamos apenas num momento de mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma. E o sistema binário? O que fazer com ele? Esta é que é a questão, o elefante no meio da sala que todos veem, mas fingem ignorar.
* Grupo de Cidadãos: “A iniciativa apresenta como principais objetivos: 1. a eliminação da limitação legal que impede os Institutos Superiores Politécnicos de outorgar o grau de doutor, ficando a acreditação em cada caso dependente dos requisitos atuais, já contemplados no Regime Jurídico dos graus e diplomas do ensino superior, na sua redação atual (Decreto-Lei n.º 65/2018, de 19 de agosto); 2. a possibilidade dos Institutos Superiores Politécnicos adotarem, em substituição, a designação de Universidade Politécnica.”
PCP: “Com esta iniciativa visam os proponentes conferir às instituições de ensino superior politécnico a faculdade de conferir o grau de doutor, uma vez cumpridos os devidos requisitos.”
BE: “Cria a possibilidade de administração de doutoramentos no subsistema de ensino superior politécnico, através da alteração da Lei de Bases do Sistema Educativo e do Regime Jurídico das instituições do ensino superior”.