Plenitude (ple·ni·tu·de). Estado do que se acha completo, inteiro, cheio.
Há semanas, numa mesa de jantar com média de idades quase o dobro da minha, depois de pijaminha de sobremesas várias, ouvi um sussurro do fundo da mesa: “a tua geração está plena. Já não há nada para conquistar”.
De facto, tão certo como a morte, os impostos, e um atraso no metro superior a cinco minutos em hora de ponta, é alguém com o menor vislumbre de cabelos brancos fazer uma observação desajustada e idadista quando se encontra à frente de alguém com menos dez anos, no mínimo. Não consigo discernir se é um complexo de Velho do Restelo que acaba por nos atingir a todos, mas sei que é fatal como o destino.
Contudo, embora me tenha caído tão mal quanto possível depois de um bom jantar, e já a caminho de casa, pus-me a pensar nessas palavras. Será que não há mesmo nada mais a conquistar?
No dia em questão tinha estalado na comunicação social o testemunho de Romualda Fernandes, ex-deputada do PS, que explicou que em pleno dia, na Assembleia da República, um grupo de deputados do Chega passou por ela, e com uma imensa bazófia lhe disseram “boa-noite”. Nesse mesmo dia fui à televisão e comentei os contornos miseravelmente racistas desse episódio. Fui, saí e não liguei muito mais ao assunto. Até que após o jantar abro as redes e me assusto com o que leio.
Toda e qualquer mulher que tenha atividade profissional pública dirá que não em poucas circunstâncias foi diminuída na substância do que disse ou fez pelo pequeno facto biológico de ser mulher, e o que li naqueles comentários foi uma amostra significativa disso mesmo.
É evidente que demos um salto significativo, porque até há bem pouco tempo nem mulheres no espaço público tínhamos, mas isto não chega; nem de longe nem de perto. Temos dois partidos que trocam entre si no leme dos destinos do país, mas até agora apenas um destes teve uma presidente e a única mulher primeira-ministra que tivemos foi Maria de Lourdes Pintasilgo, uns meros sete meses.
A Lei da Paridade teve um efeito que é inegável até para os seus maiores críticos: mal foi aplicada, em 2009, subimos para 27% de mulheres deputadas na Assembleia da República, mas não chega. No limite, esta Lei não obriga a mais nada do que não poderem ser colocados mais de dois candidatos do mesmo sexo, consecutivamente, na ordenação da lista. Não é apenas desta forma que se elevam vozes femininas no espaço político e partidário.
É necessário que os partidos elevem internamente quadros femininos, que lhes permitam exercer posições de poder nas estruturas internas, e que se possam posicionar para liderar os partidos nos quais militam. Não chega criar estruturas femininas específicas dentro dos partidos para fingir que se preocupam muito com estes assuntos, mas permitir que nas estruturas diretivas estejam lá mulheres representadas.
Ainda assim, falta muito mais para a minha geração, e especialmente as mulheres da minha geração, ter plenos direitos. Vivemos num país com interrupção voluntária da gravidez despenalizada há 17 anos, mas existem entraves inconcebíveis à mesma. Primeiramente, temos um dos prazos mais restritos da Europa ocidental, dez semanas. Considerando todos os factos científicos disponíveis e conhecidos ao momento, não existe justificação para não se estender o prazo para as 14 semanas.
Além disso, temos uma relíquia moralista e absurda ainda em vigor: o período de reflexão. Estatisticamente, as IVG realizadas em Portugal não são pedidas por adolescentes pressionadas e medrosas a precisar de refletir sobre uma decisão impulsiva como nos querem fazer acreditar, e a única coisa que efetua é mais um fator de demora e arrastar de um processo por si só muitíssimo difícil para qualquer mulher.
Por fim, existem manchas do país em que uma mulher não consegue ter acesso à IVG, num claro incumprimento da Lei, mas o mesmo só acontece porque é permitido o não registo de médicos objetores de consciência. A objeção de consciência é um direito do profissional de saúde, mas está claro em todos os códigos deontológicos que o mesmo não pode ser usado para impedir o utente de ter acesso ao tratamento, algo que é manifestamente feito neste momento.
Desta forma, não. Não consigo considerar que viva numa geração plena. Especialmente não o consigo fazer sendo uma mulher que assistiu em 2015 à reintrodução do pagamento de taxas moderadoras, a obrigatoriedade de a mulher ter consultas com um psicólogo e um técnico de serviço social e os médicos objectores de consciência participarem no processo de aconselhamento da IVG. Vi o quão fácil foi retroceder em direitos fundamentais já adquiridos e por isso sei o que responder na próxima vez que me disserem que já não há nada a conquistar: existe muito ainda em falta, e ainda mais o que proteger para garantir que não falha também.
Adriana Cardoso tem um mestrado em Ciências Farmacêuticas pela Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra. É gestora de processos de comparticipação e avaliação de tecnologias de saúde no INFARMED, comentadora do programa Lei da Paridade, na SIC-Notícias e co-fundadora da Academia Próxima Geração. É membro do Clube dos 52, uma iniciativa no âmbito do décimo aniversário do Observador, na qual desafiamos 52 personalidades da sociedade portuguesa a refletir sobre o futuro de Portugal e o país que podemos ambicionar na próxima década.