Existe uma reconhecida categoria de artigos de opinião e crónicas que principiam,  invariavelmente, pelo aviso de que de modo nenhum pode ser questionado o direito inalienável e  sagrado à greve e acrescentam, para que fique esclarecido de onde promanam esses atributos, que  o direito à greve foi conquistado com grandes sofrimentos das classes trabalhadoras ao longo de  desiguais e prolongadas lutas. Só depois o autor prossegue para o que interessa.

É algo estranho fazer preceder um texto sobre greves de uma declaração de fidelidade do seu  autor a princípios – princípios que serão eternos desde há alguns anos e impolutos para sempre.  Tão estranho, como seria antecipar uma dissertação sobre alimentação com a advertência de que  se é a favor de que as pessoas comam qualquer coisa ou, antes de discorrer sobre a morte, declarar  que se aceita a possibilidade de as pessoas morrerem de vez em quando.

Uma declaração antecipada de conformidade com uma ideia ou circunstância é sempre  preocupante. E, porque é voluntária, tem sempre um aspecto penitencial. Pode significar uma ou  várias coisas ao mesmo tempoO autor é um firme advogado do que defende e não quer que subsista a mínima dúvida sobre  isso. Ao mesmo tempo que reafirma a sua fé junto da comunidade dos crentes, faz algum  apostolado.

a) O autor é um firme advogado do que defende e não quer que subsista a mínima dúvida sobre  isso. Ao mesmo tempo que reafirma a sua fé junto da comunidade dos crentes, faz algum  apostolado.

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b) O autor tem medo de ser apontado como reaccionário e fascista, acusado de bolsonarismo, de se  opôr a uma Palestina do rio até ao mar e integrar uma ideologia que planta eucaliptos e se opõe à  proibição das viagens de avião. O autor receia ser maltratado publicamente e ver-se obrigado à  impossível tarefa de se justificar e manter a família fora de acusações vis.

 c) O autor tem a convicção de que não se está a expressar num ambiente livre. E declara, de um  modo implícito mas cristalino, que há um formato oficial para as ideias; que as opiniões são  policiadas; que os polícias da opinião não aparecem necessariamente de farda azul mas estão  disseminados de modo inorgânico, já não precisam de se esforçar todos os dias porque os seus  ditames sobre o politicamente correcto impregnam suficientemente o tecido social, tão  desapercebidos e fortes como a ideia de excelência contida nas jeans rasgadas ou nos batidos de  pepino com erva gateira.

d) O autor tem opiniões que são contrárias, ou pelo menos desconformes, com a versão oficial e dá  a entender que vai ter todo o cuidado em não as expressar claramente. Vai usar meias palavras e  frases no condicional para que a sua opinião possa ser entendida como experimental, apenas uma  ousadia respeitosa, e permita recuo.

O direito à greve foi conquistado com brutais sacrifícios dos trabalhadores e das suas famílias. A  definição desse direito acompanhou o desenvolvimento da industrialização e constituiu-se como  um recurso dramático dos trabalhadores para tentar algum equilíbrio e paridade na luta de classes.

Nos dias de hoje, esta é a única verdade que pode ser afirmada sobre o direito à greve.

O seu carácter sagrado, inalienável, intocável – todos os adjectivos com que se queira tornar  sacrílego o seu questionamento – sobrevivem menos bem à história e podem ser interrogados. A  oportunidade de questionamento advém de um princípio geral e outro particular. O princípio geral  é simples: não existe nem é conceptível qualquer construção humana imune à mudança e  aperfeiçoamento, particularmente no domínio social, tão imprevisivelmente mutável. O princípio  particular é também simples e, se aplicado à realidade, permite ilustração com quadros da vida  real: não pode ser intocável o que quer que seja que em favor de algumas dezenas de membros de  um SMTZCXP condicione centenas de milhares a transtornos repetidos, prejuízos brutais e  situações que podem ser lesivas da vida.

As primeiras greves com as características que viriam a ser as de uma greve moderna ocorreram  numa Inglaterra em processo de industrialização impiedoso – indústrias extractivas, rede  ferroviária, indústria têxtil… – ainda na primeira metade do século XIX. As acções reivindicativas  por condições de trabalho humanas e melhores salários, desde o século anterior dispersas e  inglórias, tiveram um primeiro auge em 1842, na que é considerada a primeira greve geral do  sindicalismo moderno.

Até essa data as reivindicações populares tinham tido alguma organização em torno do cartismo  inglês – da Carta do Povo de 1838, um documento dirigido ao Parlamento inglês com  reivindicações reformistas que incluíam o direito de voto universal para todos os homens – as  mulheres estavam excluídas, sem escândalo, porque os direitos sociais necessitam de  amadurecimento e têm data. Até então havia sido possível regulamentar o trabalho infantil e das  mulheres, a jornada de trabalho de 10 horas, mas não propostas mais radicais Uma última petição  cartista apresentada ao Parlamento em 1842 foi rejeitada.

Foi nesse ambiente efervescente, tendo como pano de fundo uma exploração terrível, que uma  greve começou nas minas de carvão para logo se espalhar. Paralisaram fábricas e minas por toda a  Grã-Bretanha. Não foi uma revolta desesperada de escassas centenas de trabalhadores isolados,  foi uma greve determinada, organizada, com objectivos definidos, dirigida contra patrões  identificáveis e envolvendo centenas de milhares de homens e mulheres.

Os bairros operários eram escuros, pantanosos e insalubres. As casas de construção sumária  acumulavam atmosferas pesadas onde o ar mal circulava, nas ruas os esgotos corriam a céu aberto  e os detritos acumulavam-se. Habitavam-nos os operários mal pagos, os filhos com fome, os ratos  mas, também, criminosos e vigaristas, desempregados, doentes e prostitutas. A alimentação era  pobre, baseada nas batatas e vegetais rejeitados, a carne era rara e aproveitada de animais doentes.  O vestuário não protegia, mesmo quando a sujidade já criara uma camada suplementar de  protecção. As horas de trabalho eram indeterminadas e podiam durar enquanto durava a luz do sol  – o que podia significar 15, 16 ou mais horas depois do seu início às 4-5 horas da madrugada. As  férias eram desconhecidas e o descanso semanal irregular. Mulheres e as crianças engrossavam a  população trabalhadora das fábricas sujeitas a exigências de produção sempre crescentes e  forçavam a degradação dos salários até níveis muito baixos. Homens, mulheres e crianças, eram  apertadamente vigiados de modo a impedir distracções, erros, atrasos, roubos, e as punições  podiam ser físicas, incluindo chicotadas, ou deduções no salário. As condições de trabalho, a  poluição densíssima, as doenças disseminadas nos bairros operários, a desnutrição, matavam mais  de metade das crianças antes de atingirem os 5 anos – o que, para muitos infelizes meninos e  meninas, significava apenas uma trágica emancipação da orfandade. Mas a sobrevivência nem  sempre significava chegar à idade adulta. A esperança média de vida na década de 1840 é citada  entre 17 e 30 anos para um trabalhador, menos de metade da esperança de vida de um pequeno  nobre rural.

A greve aparece neste contexto social como um recurso desesperado e último contra a exploração  dos grandes proprietários, donos e patrões. Era uma luta corpo a corpo, com protagonistas bem  identificados, igualmente expostos ao prejuízo – os trabalhadores arriscavam a fome extrema e os  patrões a ruptura na monstruosa cadeia dos lucros.

É afrontoso para os milhões de mortos da industrialização, os homens e as mulheres que  inventaram a greve no mais extremo desespero, perpetuar a figura da greve na actual sociedade de  serviços. É verdade que ainda hoje subsistem condições de vida degradadas até ao limite do  insuportável, e que em muitos redutos de exclusão a miséria é extrema, mas esses homens e  mulheres não fazem greve. Nas sociedades contemporâneas, uma greve é programada para ciclos  da evolução política, articula sindicatos em tandens de paralisação que potenciem os prejuízos  para as populações, os seus promotores procuram congregar outros grupos sociais para uma luta  que ultrapassa os seus interesses profissionais e pretende a contestação de um modelo social.  Muitos sectores de actividade têm uma organização sindical fragmentada por dezenas de  sindicatos minúsculos, cada um deles representando um pequeno número de profissionais com  funções críticas, articulados de modo a que cada um deles possa actuar à vez em intermináveis  paralisações. A generalidade dos sindicatos representa funcionários, funcionários públicos, protegidos pela massificação contratual e podendo em conjunto negociar, num programa de  greves sabiamente montado, benefícios que a cada um custam em greves umas poucas centenas  de euros e aos seus concidadãos muitos milhões.

A greve numa sociedade industrial era um espaço/tempo de confronto leal e de resultados  controláveis. Estabelecia-se entre dois adversários lutando com armas desiguais na sua natureza  mas que podiam equivaler-se nos danos que provocavam. Mais ninguém era arrastado para o  campo daquela batalha e não existiam danos colaterais significativos. Na actual sociedade de  serviços não existe confronto. O estado, detentor dos comboios e dos hospitais, é confrontado  com o sequestro das populações e é convidado a mostrar até onde vai a sua compaixão. Os  partidos políticos, que estão presentes no estado com as suas ideologias, vigiam os seus eleitores e  avaliam quanto podem beneficiar numa eleição próxima. As populações, reféns, esperam nas  estações de comboios e nos cais, têm alucinações – ouvem ruídos que lhe parecem ser o metro,  vêm bandos de patos que julgam ser um cacilheiro – voltam para a sua terra sem a consulta ou a  cirurgia, telefonam para o emprego a explicar que não podem ir outra vez, ficam em casa a olhar  para o livro de matemática dos filhos, que não compreendem e não podem explicar-lhes.

Alguma vez alguém quantificará os danos produzidos sobre milhões de pessoas sem culpa?  Alguém fará a contabilidade de quantos atrasos e impossibilidades se traduziram em desespero,  humilhações, abandono? Procurará saber quantas crianças ficaram mais umas horas sozinhas em  casa, com fome e a subir aos armários? Quantos velhos ficaram a assar nas fraldas? Quantas  consultas, tratamentos e cirurgias que não foram feitos deram origem a sofrimento desnecessário,  complicações irreversíveis, eventualmente morte? Alguém procurará a denominação técnica para  uma actuação que atinge de modo imprevisto e indiscriminadamente seres humanos, sem lhes  permitir defesa e provocando incontáveis prejuízos?

A percepção dos prejuízos colectivos associados a uma greve dos funcionários do SFDGCHJHF,  detentores de um painel com botões ou de uma password que ninguém conhece, levou à  instituição dos serviços mínimos. A ideia de que os serviços mínimos permitem acudir a casos  inadiáveis ou prioritários é falaciosa. Num grande número de situações os serviços mínimos são  para aproveitamento dos que estão mais perto, dos que têm mais tempo, dos que acedem a mais  informação – são, sem o parecerem, promotores de maior descriminação. Todos os outros, os que  chegaram tarde de mais para apanhar o único autocarro, que vão desesperar porque perderam  mais um dia de ordenado, têm por única consolação ouvir dizer que também se aprende numa  greve e que todas as greves são para o bem de todos.

Uma greve recente dos médicos – por coincidência, segundo foi asseverado pelos sindicatos,  sobreposta a uma greve dos enfermeiros – foi precipitada por um despacho que questionava a  liberalidade completa na marcação de férias. Outras razões de descontentamento e protesto foram  adjuvadas, as razões tradicionais e muito sérias que desde há muitos anos estão presentes nas  greves dos médicos.

Não é muito relevante discutir os números da adesão a essa greve – 1/3 segundo o governo e 2/3  segundo os sindicatos. É muito mais útil e informativo outro género de avaliação. E quem esteve  presente em muitas greves, como grevista ou não, sabe algumas coisas significativas.

Muitos médicos não têm uma noção precisa dos motivos de uma greve. Acham bem. Não porque  esperem a resolução de um problema ou a reposição de qualquer justiça com essa forma de luta –  forma de luta é a expressão que os sindicatos gostam e com o qual enfeitam a sua determinação.  Muitos médicos aderem a uma greve porque estão perto da exaustão e a greve lhes permite  descansar um ou dois dias, pôr em ordem relatórios ou ir com o filho à vacina. Com certeza que  há muitos médicos para os quais a greve é um momento redentor que é vivido com algum  empolgamento. Distribuem papéis à porta dos hospitais e explicam aos doentes que não vão poder  ser operados mas que tudo isso é para seu bem. São a vanguarda esclarecida dos médicos e é  nesse papel que por vezes se excedem.

Muitos médicos aderem a uma greve porque é mais fácil. Não têm de explicar porque não fazem  greve e livram-se dos ominosos rótulos de antigamente – fura-greves, amarelo… – não usados na  classe médica mas sempre de temer.

Muitos mais médicos aderem a uma greve optando, exclusivamente, por não assinar o ponto – e  desempenham as tarefas desse dia como se fosse outro dia qualquer, sem adaptações ou  encurtamentos. Discordam da greve, por vezes explícita e impacientemente, como forma de  resolver diferendos, não querem colaborar nos prejuízos que possam ser infligidos aos doentes e,  assumindo que essa seria a sua obrigação no caso de fazerem greve, não têm agenda para  remarcações em tempo útil. Normalmente, têm respeito pelo colega sindicalista, pelos colegas que  estão efectivamente parados em greve e ficaram em casa. Só desejam, eles próprios, ir também  para casa sem pesos na consciência.

Seria mau se um sindicato não soubesse essas coisas e não extraísse delas conclusões úteis para o  seu trabalho. Mas sabe. Pode ser dito que a apreciação feita é subjectiva. É, mas é informada. E,  comparada com os números divulgados para a adesão dos médicos à greve, não perde em  credibilidade.

À volta de uma greve, justificada ou não, legítima ou abusiva, existem sempre desempenhos  significativos por parte dos seus protagonistas – o que é muito adequado a uma circunstância em que se aposta também na teatralidade e na representação. Muitas vezes são cometidos erros, por  sinceridade descontrolada ou por um script mal pensado.

A interpelação pública da ministra da saúde, feita em termos vulgares e de notória grosseria, vai  exigir da sua parte alguma reflexão sobre se valerá a pena, ou até se será adequado, enfrentar os  representantes sindicais – ou não, no caso da ministra da saúde persistir no seu perfil complacente  e não se importar, segundo a argumentação sindical, de não perceber nada de saúde. Não está em  causa a legitimidade desta greve, nem a legitimidade das greves no sector da saúde, nem sequer a  legitimidade das greves. Está em causa a falta de urbanidade com que uma das partes intervém na  discussão de um problema tão grave – não as férias, mas a situação dramática em que se encontra  o SNS e que a senhora ministra ainda não resolveu em seis meses.

O discurso agressivo e descortês não deve ser próprio dos médicos. Um sindicalismo fundado em  posturas arrebitaditas, com discursos torrenciais e destratando com vigor pessoas em frente das  câmaras de televisão, é prejudicial aos interesses da saúde e, por isso, aos interesses e à imagem  dos médicos. E a imagem dos médicos precisa de ser acautelada, com urgência e cada vez mais.  Porque a imagem dos médicos está em erosão desde há bastante tempo.

São muito os sucessivos factores que para tal têm contribuído:

Durante anos os médicos foram alvo de denúncias, nem sempre infundadas, de condescendência  excessiva em relação à indústria farmacêutica. Não são, actualmente, causa de censura regular –  por sensatas modificações no relacionamento operadas por ambas as partes – mas continuam a  fazer parte do ideário popular sobre a venalidade dos médicos.

A divulgação recorrente de incidentes rotulados pelos utentes e media como casos de  negligência. Esses incidentes ocorrem inerentemente à natureza da prática clínica e a grande  maioria são identificados e resolvidos pelos médicos. Outros, raros e eventualmente resultando de  causas evitáveis, podem ter consequências graves e são publicitados. A sua divulgação é  inevitável e pode ser admitida como prova da transparência das instituições. O tom em que é  muitas vezes feita, entre o rancor vingativo e o sensacionalismo, deve ser criticado – porque se  constitui como um julgamento na praça pública que manterá o seu veredicto para além de  qualquer esclarecimento racional. E seja qual for esse esclarecimento todos os incidentes com  médicos ficarão mal resolvidos – quando a negligência ou o erro são reconhecidos, isso constitui  prova da perigosidade última dos médicos, quando existe absolvição tal é visto como  corporativismo e a demonstração de que se encobrem uns aos outros.

A difusão de profissionais com origem académica estranha, por vezes sem vínculo às  instituições, por vezes com dificuldades técnicas e de expressão, por vezes privilegiando um  regime de serviços casuais em sucessivas urgências. As pessoas julgam conhecer esse tipo de  prestação de serviços de outras áreas económicas e identificam como mercenarismo um modo de  vida que pode ser, em alguns casos, um modo de sobrevivência.

A proletarização dos médicos. Decorrendo dela, o recuo do médico para o anonimato é cada vez  mais acentuado. É um movimento em grande parte inevitável, porque o exercício da medicina está  na dependência crescente de equipas e equipamentos próprios de grandes instituições  empregadoras. Actualmente, o acto médico é muito menos personalizado e dificulta uma relação  de confiança e respeito por parte do doente. Ainda não foram definidos meios para devolver à  relação médico-doente a profundidade que já teve e que, em épocas de escassíssimos recursos,  permitia tratar quando não era possível curar, permitia dar alívio quando não existia salvação. Os  doentes sentem essa mudança sem a perceberam. O médico é hoje visto por alguns desses doentes  como um advogado interesseiro a quem entregaram a defesa da sua saúde e não como o juiz  equilibrado que percebe as duas partes, a doença e ele próprio enquanto doente, e é capaz de  arbitrar a melhor solução possível.

É também notória uma insidiosa vulgarização da imagem do médico, na sua presença social e na  sua apresentação física. Um jovem de calções e havaianas, de bata aberta deixando ver uma T -shirt a dizer “Caution: I have no filter”, não é bem recebido pela maioria dos doentes. Esse visual,  próximo do extremo, mas real, não pode ser defendido como expressão de liberdade. São  igualmente de discutível gosto as atitudes histriónicas por vezes exibidas nas manifestações  médicas, perigosamente parecidas com reclamações adolescentes contra a falta de bilhetes para os  Imagine Dragons, mais do que com a grave demonstração (significativamente o termo anglo saxónico para manifestação é “demonstration”) de um grave desacordo. A avaliação inicial das  situações e das pessoas é visual e é a partir dessa avaliação que se estabelecem juízos e  expectativas.

Finalmente, a mudança no estatuto do médico, o real e aquele que é moldado pelos media. A sua  transformação em funcionário remunerado, em particular, originou a transposição para os  sindicatos de muitos meios de regulação da actividade médica. O enorme peso tradicional da  Ordem dos Médicos – que sempre teve uma preocupação essencial com os princípios, vinda dos  tempos em que o exercício privado da medicina era predominante – encontra-se em deslocamento  para os sindicatos médicos, vocacionados principalmente para os fins – condições de trabalho,  carreira, salários, férias… A presença pública de uns e outros inverteu-se. O trabalho sindical,  com muito maior visibilidade, transmite uma representação mais funcionalizada do médico. Em  muitos meios é interpretada pela população como um sinal da precariedade em que está a ficar  face aos cuidados de saúde – ou seja, o médico pode não lhe acudir porque já terminou o seu  horário de trabalho.

É neste panorama que os sindicatos médicos actuam. As esparrelas contidas nesse solo alagado  são bastantes e pode abrir-se um buraco súbito a seus pés. A tolerância das populações a sucessivas ameaças à sua saúde tem sido grande, mas percebe-se o esforço que fazem para  continuar a perceber o que é que justifica a falta de serviços e de médicos. Em condições de  saturação cognitiva as pessoas facilmente aderem a uma explicação mais fácil e que  imediatamente lhes permita orientar uma frustração contida durante anos. Os médicos não podem  arriscar-se a que tal venha a acontecer e que sejam eles os eleitos para essa expiação.

É necessário que os médicos recuperem a gravitas e a dignitas que já tiveram. Não são virtudes  latinas obsoletas, nem fazem parte de um tempo em que os médicos eram donos da saúde e dos  doentes, ditadores de tratamentos arbitrários e censores dos costumes. Foram sempre qualidades  determinantes da intervenção clínica, quase únicas enquanto os recursos técnicos e terapêuticos eram pouco mais do que nada. A profusão de meios que hoje estão ao dispor da Medicina  alimenta a ilusão de que não são necessários mais do que boas guidelines, fluxogramas bem  construídos, equipamentos de última geração e prontuários terapêuticos actualizados. Não é  verdade.

O menosprezo pelas virtudes relacionais afecta todas áreas da sociedade dita moderna. Os  médicos não são os únicos ameaçados pela superficialização, pela vulgaridade e pelo  esvaziamento emocional. Os médicos têm de reflectir sobre as prioridades do seu modo de vida e  sobre as escolhas que fazem. O seu estatuto tem de se manter único e não advém de poderem  fazer férias em Agosto, ou em Fevereiro – seja como fôr, desde que seja sem regulamentação do  ministério que lhes paga ao fim do mês – ou de qualquer outra impaciência. O Serviço Nacional  de Saúde é o que é. É mau para todos, para os doentes e os médicos. Estamos num buraco. Parem  de cavar. Olhem para cima.