Quando o direito de discordar é ameaçado, surgem críticas e críticos, consideram-se, por vezes, uma afronta à liberdade de expressão e até, por outras vezes, uma ameaça à democracia em si. Considera-se assim que se vivem tempos de tolerância, ora não fosse a ideia da sociedade e de alguns grupos, que surgiram no meio dessa tolerância, serem altamente intolerantes.

Conclui-se assim que a tolerância deu, por si só, lugar à própria intolerância. Um resultado da própria geração.

Apologista do diálogo, acreditando sempre que mais profícuo que o confronto, constato que cada dia acordamos com novas e criativas manifestações. Mas até onde estas não abandonam o direito à sua existência e transcendem a ténue linha do bom senso?

Não se deve, não se pode retirar a legitimidade à pessoa que discorda, mas essa discórdia não pode dar azos a tolerância perante a desordem, o ataque à integridade ou mesmo a difamação. Este é um risco intensificado pela era tecnológica, pelas redes sociais e pelo boato, gerado pela desinformação ou discórdia não fundamentada.

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Este tipo de conclusão até parece banal, claramente evidente e tão óbvia que nos transporta para o ridículo de ter de falar dela, quanto mais escrever, isto considerando que ao menos já se refletiu sobre isso.

Façamos uma análise prática. Parar uma via movimentada em hora de ponta, parece o suficiente para impactar e causar mediatismo, o que fará chegar a mensagem que se pretende. Mas, ao continuar esta análise, como validamos ou classificamos o “danificar” de obras de arte? E pintar um membro do governo ou outro político de verde? E até mesmo o quebrar de montras? São efeitos que claramente captam a atenção pública, ganham foco dos media e são associados a um movimento com bandeiras muito próprias, mas será essa a forma “correta” de discordar?

Não há forma correta. Existem ideias e tem de existir bom senso. A falta deste já começa a pecar e exemplo prático é o que aconteceu no Stonehenge, como se em 3.000 a.c. se andasse de jato particular.

Quando se coloca um rótulo de vandalismo, quando se movem ações judiciais ou se promove uma acusação, traduz-se automaticamente que não foi a forma “correta” de protesto? Torna-se difícil entender. Muitos são os argumentos das partes, muitos são os momentos da história, e se assim nos colocamos, como reagiremos às promoções gratuitas de ódio e difamação nas redes sociais? A manipulação de imagem é condenável, mas essa mesma manipulação já ganhou forma caricatural apenas para se posicionar como “legal”.

Em suma, a tolerância deu lugar à intolerância. A intolerância dará, por sua vez, lugar à intolerância para consigo própria. Existe uma clara necessidade de balizar o aceitável sem nunca condicionar a liberdade, mas se se parte para o objeto legislativo, poderemos dar por nós a viver numa era de tolerância e liberdade, sem qualquer tolerância ou liberdade alguma. Criando uma mera ilusão do socialmente aceite e do legalmente possível, promovendo a dado ponto o aparecimento dos “polícias do bom senso”. O que importa entender, é que faz parte. Tudo faz parte, mas nem tudo pode ou deve ser aceite, mesmo que produza os efeitos pretendidos.

O que torna tudo isto mais intrigante é a falta de coerência. Os envolvidos neste tipo de atos são, muitas vezes, os mesmos que noutros momentos metem mão ao peito, erguem a sua voz e gritam a pulmões cheios que a cultura não tem apoio e que as artes estão esquecidas.

Enquanto dirigente associativo, sempre valorizei quem fazia propostas, quem levantava a sua posição, discordando, argumentando e, acima de tudo, conversando, pois é aí que reside a base do progresso, encontro de pontos comuns e acima de tudo a esperança de um amanhã em que a história seja memória, a arte seja valorizada e que o progresso seja conjunto.