No passado dia 1 de Setembro a activista de esquerda Sandra Urceira, que assina com o nome de guerra Sandra de Moz e que se apresenta a si própria apenas como “auditora interna” e “anti-racista”, escreveu o seguinte no seu Facebook: “A Igreja católica permitiu a escravatura”.
Sandra de Moz não costuma ter muitos seguidores, mas esta sua frase atraiu a concordância de uma dúzia de indignados amigos. Luísa Semedo, a conhecida colunista do Público, foi uma das pessoas que então exprimiu a sua concordância com esta palavra de ordem, acrescentando que a Igreja católica não só permitiu como lucrou com a escravatura, justificou-a e teorizou sobre ela. Duas semanas depois, no dia 16 de Setembro, Sandra de Moz repetiu ipsis verbis a sua mensagem acusatória: “A igreja católica permitiu a escravatura”, escreveu de novo e, desta vez, essa inteligente frase teve a adesão de uma vintena de aprovadores.
É bem possível que Sandra de Moz continue a repetir mecanicamente este slogan político, e é igualmente possível que recolha cada vez mais aplausos e anuências de amigos facebookianos extasiados com a profundidade das descobertas desta senhora “anti-racista”. Eu próprio, se tivesse nascido ontem e se não soubesse aquilo que sei, poderia ser tentado a anuir, porque isto que Sandra de Moz afirma está aparentemente correcto. Sim, a Igreja católica permitiu a escravatura. Mas, como já nasci há muitos anos e como investiguei alguma coisa sobre este assunto, sei que o que parece verdade é apenas uma meia-verdade, ou seja, como dizia o poeta António Aleixo, é a forma mais insidiosa e eficaz de mentir.
De facto, até uma determinada altura, e com uma excepção apenas — a excepção que confirma a regra —, todas as instâncias políticas e correntes religiosas ou espirituais permitiram a escravatura. Repito: toda a gente permitiu a escravatura. Não foi apenas a Igreja católica que o fez. Os Estados protestantes permitiram-na, o mundo islâmico também, o mesmo se diga dos reinos e impérios do Extremo-Oriente até à longínqua Coreia, e dos reis do Congo e de outros potentados africanos. Todos autorizaram a escravatura, todos lucraram com ela e arranjaram formas de a justificar.
Se Sandra de Moz, Luísa Semedo e outros activistas alinhados com as suas ideias a respeito da história do tráfico de escravos e da escravidão tivessem nascido em meados do século XX e estivessem sujeitos aos métodos de ensino primário que então se usavam, seriam, muito provavelmente, obrigados pelos respectivos professores a escrever cinquenta vezes nos cadernos diários, ou no quadro, o seguinte: “Toda a gente permitia a escravatura.” Como esses métodos acabaram e Sandra de Moz e apoiantes pertencem, suponho, àquilo que se designa por “geração mais preparada de sempre”, podem continuar a repetir inanidades convencidos de que descobriram a pólvora.
Estou igualmente convencido de que se Sandra de Moz tivesse vindo ao mundo no século XV e se tivesse, por acaso ou por mérito próprio, sido papisa ou rainha de um dos reinos da Península Ibérica, o tráfico transatlântico de escravos nunca teria começado, e tanto a Cristandade como as costas da África subsariana teriam sido poupadas a esse horror. Infelizmente, a activista só nasceu na segunda metade do século XX quando o problema escravista já há muito estava resolvido.
Porque a verdadeira questão, como facilmente se percebe, não é saber quem permitiu a escravatura — toda a gente o fez, pois tratou-se de uma permissão universal e com a duração de milénios —, mas sim quem a proibiu. As primeiras proibições do tráfico de escravos e da escravidão nas colónias aconteceram no Ocidente e no mundo cristão. O primeiro país a avançar nesse sentido, e de forma radical, foi a França, em 1794 (se bem que em 1802 tivesse revertido essa decisão). Seguiram-se o Haiti, a Dinamarca, a Grã-Bretanha, a Holanda e outros países do Ocidente, sendo o Brasil o último a concluir o processo, em 1888. A Santa Sé pronunciou-se oficialmente contra o tráfico transatlântico de escravos em 3 de Dezembro de 1839, através do Breve De Nigritarum Commercio, do papa Gregório XVI, um documento que ameaçava os participantes no comércio negreiro com a excomunhão, e que foi difundido pelos países católicos. Acrescente-se que nesse documento a Igreja ia ao ponto de condenar a própria escravidão, apesar de, nessa época, ela ainda ser praticada no Brasil e nas colónias de outros países católicos como a França, a Espanha ou Portugal.
Ou seja, se bem que não tenha estado nos primórdios e na primeira linha de combate à escravatura, como aconteceu com várias denominações protestantes, a Santa Sé não foi, longe disso, a última a embarcar nesse comboio, e respaldou relativamente cedo o movimento abolicionista. Apontar um dedo recriminatório à Igreja católica, acusando-a, e apenas a ela, de algo que toda a humanidade fez e omitindo a referência ao momento em que a suprema autoridade do catolicismo se virou contra o que antes tolerara e justificara, é ignorância ou má-fé, muito provavelmente ambas as coisas.